RELATÓRIO
ANUAL 2000
D.
Análise da Comissão
1.
Do direito à vida
93. Das
provas coletadas conclui a Comissão que os policiais militares
acusados executaram extrajudicialmente a Marcos de Assis Ruben.
Neste sentido manifestou-se o Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, ao julgar a respectiva ação indenizatória, concluindo
que os policiais militares envolvidos na morte de Marcos exorbitaram
de suas funções.
94. O
grande número de inquéritos abertos contra os policiais Orlando
Aparecido Garcia, Edison Donizeti e Waldemar José de Oliveira Tenório
- todos concluindo por sua culpabilidade em relação às mortes de
oito pessoas - recolheram diversas provas da violência desmedida de
sua atuação. Os
delegados envolvidos nas investigações, assim como o Ministério Público,
convenceram-se plenamente de sua responsabilidade, sendo seus atos
abusivos reconhecidos até mesmo pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo (ver acórdão relativo à ação indenizatória).
95. Os
ferimentos – cinco tiros de arma de fogo direcionados à cabeça da
vítima – igualmente atestam sua execução, sem que lhe fosse possível
defender-se de qualquer forma. Para
tal entendimento contribuem também o depoimentos das testemunhas
ouvidas.
96. Do
conjunto probatório apresentado, conclui a Comissão ter sido violado
o direito à vida de Marcos de Assis Ruben pelo Estado brasileiro,
conforme dispositivo previsto no Artigo I da Declaração Americana.
2.
Garantias Processuais e Devido Processo Legal
97. Oito
anos após a denúncia, o processo-crime ainda aguardava fixação da
data para julgamento. Em
1995 o Governo brasileiro admitiu que sequer a etapa de instrução
criminal havia sido finalizada após sete anos dos fatos.
98. A
excessiva demora no desenrolar dos atos processuais contraria os padrões
exigidos para realização de um processo eficaz. O prazo decorrido foi irrazoável, em desrespeito às
garantias processuais e ao princípio do devido processo legal,
assegurados pela Convenção Americana.
Considera a Comissão que o prazo decorrido sem que se chegasse
a uma decisão final sobre o caso é excessivo.
Por isso, entende ser o Estado brasileiro responsável pela
violação aos artigos 8 e 25 do mencionado documento internacional.
Caso 11.412 (Wanderlei Galati)
A.
Resumo
99. Segundo
a denúncia apresentada em setembro de 1994 à Comissão, Wanderlei
Galati, mecânico de 28 anos de idade, foi morto a coronhadas de revólver
pelo policial militar Ademar Cavalcante Dourado na data de 26 de
agosto de 1983, na cidade de São Paulo.
100. O
Senhor Galati teria sido morto após uma colisão entre seu automóvel
e a viatura do mencionado agente policial.
Segundo a denúncia, apesar do Senhor
Galati assumir a responsabilidade pelo acidente e comprometer-se
a indenizar o prejuízo causado, foi agredido e morto por Ademar
Cavalcante Dourado.
101. Em
2 de dezembro de 1983, o agente da Polícia Militar foi denunciado
perante a 1a. Instância da Justiça Militar do Estado de São Paulo.
A sentença foi ditada em 15 de outubro de 1991, ocasião em que
Ademar Cavalcante Dourado foi absolvido por insuficiência de provas.
Posteriormente, em que pese o seu crime foi promovido na carreira
policial.
102. A mãe
da vítima ajuizou ação de indenização por danos morais e
materiais contra o Estado de São Paulo, que foi julgada procedente
pela 2ª Vara da Fazenda Pública do Estado e confirmada pelo
tribunal.
B.
Trâmite perante a Comissão
103. A
denúncia foi recebida pela Comissão em setembro de 1994 e em 13 de
dezembro do mesmo ano foi transmitida ao governo brasileiro. O mesmo contestou em junho de 1995. Informações posteriores foram fornecidas pelo peticionário
e pelo governo. Em 25 de abril de 1996 a Comissão reiterou ao governo
o pedido de envio de suas observações finais.
104. Em
30 de julho de 1996 a Comissão informou ao peticionário que, com a
manifestação final do governo, o trâmite regulamentar estava
encerrado. Em 1998, em
seu 98º período de sessões, a Comissão aprovou o Relatório de
Admissibilidade do caso 11.417, que foi publicado no Relatório Anual
de 1997.
C.
Posição das partes
105. O
peticionário alegou que Wanderlei Galati fora executado sumariamente
por um sargento da Polícia Militar que exercia a função de
supervisor de trânsito, simplesmente por haver danificado
ligeiramente o veículo do militar. A vítima entrara erradamente numa
avenida, na contramão, batendo levemente na viatura policial que
havia bloqueado o seu carro para impedir que prosseguisse. O policial
reagiu com violência. Depois de identificar-se mandou que Wanderlei
saísse do carro e agrediu-o com a coronha da sua arma, atingindo-o
repetidamente na cabeça, enquanto Wanderlei e seus acompanhantes
suplicavam “pelo amor de Deus”, que o policial deixasse de agredi-lo.
Entrementes, o policial ordenou com ameaças que os acompanhantes não
saíssem do carro para socorrer a vítima. Uma ambulância que passava
pelo local recolheu a vítima, mas o policial não permitiu que ela
fosse levada ao hospital antes da chegada de reforço policial.
Finalmente, ao chegar ao hospital, a vítima foi declarada sem vida. A
denúncia formulada à Comissão em 1994 sustenta que, decorridos
cinco anos dos acontecimentos, ainda não tinha sido ouvidas as
testemunhas da acusação, tanto pelas repetidas postergações das
audiência como por distintas razões, entre as quais a promoção do
acusado a Oficial da Polícia durante o período de audiência de
testemunhas.
106. Segundo
o peticionário, quando finalmente realizou-se o julgamento em 15 de
outubro de 1991, o acusado foi absolvido por insuficiência de provas,
apesar das diversas testemunhas oculares.
A sentença absolutória, por sua vez, somente foi assinada e
publicada mais de três anos após o julgamento, o que impediu, neste
intervalo de tempo, a interposição de recursos pelo Ministério Público.
Assim, oito anos se passaram até que fosse concluída a
primeira parte do processo, e doze anos após a morte de Wanderlei
Galati ainda não se havia chegado a uma decisão definitiva quanto às
circunstancias que a envolveram.
107. O
peticionário argumentou que a injustificada parcialidade e lentidão
com que atuara a Justiça Militar no caso constituía violação aos
artigos XVIII e XXIV da Declaração Americana e aos artigos 8.1 e 25
da Convenção Americana.
108. Em
outubro de 1996 o peticionário informou que não conseguia obter
informações perante a Auditoria da Justiça Militar.
109. Em
sua contestação, o Governo brasileiro informou a abertura de um
processo para investigar a morte de Wanderlei Galati, na qual figurava
como réu o policial militar Ademar Cavalcante Dourado.
Posteriormente, informou que em tal processo o acusado havia
sido absolvido por unanimidade de votos, estando o mesmo agora nas mãos
do Ministério Público para apresentação das razões de apelação
e que a ação indenizatória havia sido definitivamente julgada,
fixando uma pensão mensal a ser paga à mãe da vítima até o ano em
que Wanderlei completaria 65 anos de idade.
No entanto, os fatos narrados na denúncia não foram negados,
nem o mérito do caso abordado em qualquer de suas manifestações.
D.
Análise da Comissão
1.
Do direito à vida
110. As
diversas testemunhas que depuseram no processo confirmam que, depois
da colisão, Wanderlei se oferecera imediatamente para ressarcir os
danos causados, sem agredir de nenhuma forma o agente acusado. Por
outro lado, Ademar Cavalcante Dourado desfechou diversos golpes em
Wanderlei, causando-lhe a morte.
111. Os
próprios depoimentos do policial, ao ser ouvido durante o inquérito
e posteriormente em juízo, apontam para a fragilidade de suas alegações.
Primeiro ele teria dito que a vítima se ferira sozinho, numa
queda acidental ao sair do carro; depois, que o ferimento teria sido
resultado da própria colisão entre os automóveis.
112. As
demais pessoas que encontravam-se no carro são unanimes e apresentam
testemunhos harmônicos de que a agressão sofrida por Wanderlei foi
gratuita e completamente desproporcional.
113. Some-se
a isso o fato de que é incontestável a morte de Wanderlei decorrente
de lesões corto contusas na cabeça, como demonstra o laudo pericial.
As especificidades das lesões são incondizentes com
ferimentos normalmente provocados em acidentes automobilísticos.
Além disso, verifica-se que apenas um acidente de grande
impacto poderia ter causado lesões mortais como as sofridas por
Wanderlei. No entanto,
nenhum dos outros ocupantes do veículo por ele conduzido, e tampouco
o policial acusado, apresentavam qualquer ferimento grave.
114. Em
face dessas provas, a Comissão não pode senão concluir que
Wanderlei Galati foi vítima de homicídio intencional, resultante dos
atos despropositados e injustificados do agente da Polícia Militar
Ademar Cavalcante Dourado, envolvendo responsabilidade estatal tanto
pela investidura do criminoso como por sua identificação como
policial na presença da vítima e de seus acompanhantes no momento do
ato, pelas ordens que deu aos mesmos e ao motorista da ambulância
usando sua autoridade de policial e utilizando a arma da corporação
para golpear fatalmente a vítima na cabeça. Nesse sentido, o Estado
brasileiro incorreu em violação do direito a que se refere o Artigo
I da Declaração Americana.
2.
Garantias Processuais e Devido Processo Legal
115. O
conjunto probatório coletado durante as investigações e durante o
processo judicial foi suficiente para convencer ao delegado e ao
promotor que trabalharam na ação criminal, assim como ao juiz e ao
tribunal que decidiram sobre a ação indenizatória.
Também a Comissão entende serem os indícios apresentados
fundamentos demonstrativos da materialidade e da autoria do crime
cometido por Ademar Cavalcanti Dourado.
116. Contudo,
apesar das claras evidências existentes e apresentadas em juízo, a
Justiça Militar do Estado de São Paulo absolveu Ademar Cavalcante
Dourado por insuficiência de provas. E não apenas isto: também
prolongou clara e grosseiramente o processo, ao ponto de evitar por
mais de três anos a publicação da decisão absolutória de primeira
instância a fim de a mesma não fosse apelada e com risco de prescrição
do prazo para a ação. Tudo isto, enquanto o criminoso gozava de
liberdade e era promovido pela corporação militar.
117. Entende
a Comissão, que os depoimentos e exames periciais realizados bastavam
a uma decisão de mérito sobre o caso, decisão esta a que tinham
direito os familiares de Wanderlei.
O Estado brasileiro, neste sentido, não garantiu o acesso das
vítimas a um recurso judicial eficaz e a um processo acorde com os
ditames internacionalmente reconhecidos.
Sendo-lhes negado tal direito, violou o Governo brasileiro aos
artigos 8 e 25 da Convenção Americana.
Caso 11.415 (Carlos Eduardo Gomes Ribeiro)
A.
Resumo
118. Segundo
denúncia apresentada em setembro de 1994, em 03 de maio de 1989
Carlos Eduardo Gomes Ribeiro, de 19 anos, teria sido agredido pelos
policiais militares Donizeti Aparecido Bezerra da Silva, Dorival
Bernardo de Senna, Marcos Aparecido Corrêa Cesar e Mauro Garofo.
119. Segundo
a denúncia, Cláudio estava em companhia de dois amigos, quando foram
abordados pelos agentes da Polícia Militar que, sob o pretexto de
revistá-los, passaram à agressão física e psicológica. Consta nos
autos que os três jovens foram obrigados a entrar numa viatura, onde
sofreram novas sevícias, sendo a seguir levados ao posto policial,
onde foram advertidos de que não comentassem o acontecido. Carlos
Eduardo foi o único que se animou a denunciar os fatos, o que fez
imediatamente.
120. Em
6 de julho de 1990, os agentes da Polícia foram denunciados pela
Promotoria. As audiência foram sucessivamente proteladas e marcadas
para prazos muito longos, de modo que, em 29 de julho de 1994, sem que
o caso tivesse sido resolvido, a 2a. Instância da Justiça Militar
decretou a prescrição da ação punitiva do Estado, assim
extinguindo-se a possibilidade de sancionar os acusados.
121. Em
13 de abril de 1994, a vítima ajuizou uma ação de indenização
contra o Estado, que foi remetida à 7a. Jurisdição da Fazenda Pública.
Até a data da denúncia, a Fazenda Pública nem sequer havia sido
citada, aguardando-se por enquanto a decisão a respeito da assistência
judiciária gratuita à vítima.
B.
Trâmite perante a Comissão
122. A
denúncia foi recebida em setembro de 1994.
As partes pertinentes foram enviadas ao Estado brasileiro em
dezembro do mesmo ano, tendo o mesmo contestado em junho de 1995. Em setembro e novembro de 1995 e em abril e setembro de 1996
a Comissão solicitou informações adicionais ao governo brasileiro,
sem obter qualquer resposta. O
caso foi então admitido em 1998, por meio do Relatório de
Admissibilidade 17/98.
C.
Posição das partes
123. O
peticionário alegava na denúncia que Carlos Eduardo foi
arbitrariamente atacado e detido por policiais militares e que o
respectivo processo criminal teria prescrito em razão do descaso das
autoridades atuantes no caso. Afirmava,
ainda, que prescrição de processos criminais militares é freqüente
em casos semelhantes de lesões corporais, devido à lentidão com que
são tramitados. Por fim,
declarava que a extinção da punibilidade no caso era de
responsabilidade da Justiça Militar, que não cumpriu sua função,
garantindo a impunidade dos responsáveis pelas violações dos
direitos fundamentais da vítima.
124. O
Governo em sua contestação reafirmou as informações sobre o
processo apresentadas pelo peticionário, limitando-se a confirmar a
extinção da punibilidade dos réus.
No entanto, o Estado brasileiro em nenhum momento abordou a
questão da ocorrência ou não de violação ao direito à
integridade física e garantias judicias da vítimas, conforme alegado
pelos peticionários.
D.
Análise da Comissão
1.
Do direito à integridade física
125. O
exame de corpo de delito confirmou as lesões sofridas pela vítima.
Todas as testemunhas ouvidas que presenciaram os fatos alegam
que efetivamente o policial acusado fez uso excessivo e desnecessário
de força física contra a vítima, que não havia cometido nem estava
para cometer delito algum. A
defesa não apresentou qualquer testemunha que apoiasse a versão dos
policiais sobre o motivo da abordagem e prisão dos meninos que, assim,
restou injustificada.
126. Tais
elementos levaram a Comissão à conclusão de que policiais militares
do Estado de São Paulo violaram a integridade física e psicológica
de Carlos Eduardo Gomes Ribeiro, em ofensa ao artigo I da Declaração
Americana.
2.
Garantias Processuais e Devido Processo Legal
127. Os
dados apresentados demonstram que o processo judicial foi lento e que
tal morosidade deu-se pela ineficiência do aparato judicial
brasileiro. Contribuiu
para a demora o repetido adiamento de audiências.
O interrogatório do réu deu-se apenas dois anos após os
fatos e a as testemunhas só foram ouvidas quatro anos após o crime.
128. Tais
atitudes levaram à prescrição da pretensão punitiva do Estado e à
conseqüente extinção da punibilidade dos réus.
Assim ocorrendo, negou-se à vítima seu direito a ver
processados, julgados e condenados aqueles que lhe ofenderam. Não foi garantido à Carlos Eduardo um processo rápido e
eficaz para determinação de seu direito.
Neste sentido, o Estado brasileiro violou aos artigos 8 e 25 da
Convenção Americana.
3.
Oferta de solução amistosa
129. Em
várias ocasiões, a Comissão colocou-se à disposição do Estado e
dos peticionários nos diversos casos para iniciar o trâmite de solução
amistosa prevista nos artigos 48 e 49 da Convenção Americana, sem
haver recebido resposta afirmativa das partes a esse respeito. Essa oferta foi reiterada no Relatório de Admissibilidade
conjunto 17-98, novamente concedendo um período de 30 dias, sem
receber resposta. III. CONSIDERAÇÕES COMUNS A RESPEITO DOS MÉRITOS
NOS OITO CASOS
130. Em
todos os casos acima descritos alegam os peticionários a violação
dos artigos I (direito à vida, à liberdade, à segurança e à
integridade da pessoa), XVIII (direito à justiça) e XXIV (direito de
petição) da Declaração, e aos artigos 8 (garantias judiciais) e 25
(proteção judicial) da Convenção Americana, conjuntamente com o
artigo 1(1) da mesma (obrigação de garantir e respeitar os direitos
estabelecidos na Convenção).
131. Em
todas as denúncias consta que indivíduos que não cometiam nem
estavam para cometer qualquer delito foram abordados imotivadamente
por policiais militares. As
informações indicam, ainda, que tais indivíduos foram mortos ou
sofreram graves lesões em razão da ação, no mínimo
desproporcional, de tais agentes públicos.
132. Em
suas manifestações o Governo brasileiro não refutou os fatos
conforme narrados pelos peticionários.
Assim, sendo, as descrições apresentadas pelos peticionários
são consideradas pela Comissão como incontestes e verdadeiras.
133. Todos
os casos ocorreram na cidade de São Paulo, envolvendo agentes da Polícia
Militar paulistana. Os fatos, ademais de denotarem a violência com
que atuam os policiais dessa corporação, demonstram a impunidade
gerada pela ação protelatória, parcial e ineficaz da Justiça
Militar, responsável, na época, pela investigação, o processo e a
punição dos delitos cometidos por policiais.
134. A
juízo da Comissão, não surgiram da análise de todos os elementos
de convicção disponíveis outros que permitissem chegar, no tocante
aos temas analisados, a conclusões distintas das que são
apresentadas a seguir. Como
já foi indicado pela Comissão em seus relatórios de admissibilidade
sobre estes casos[3]
é competente para conhecer destes casos por tratar-se de alegações
de violação dos artigos 26 e 51 de seu Regulamento[4]
e com respeito aos reconhecidos na Convenção por violação ou
denegação continuada posteriores a sua ratificação pelo Brasil, em
particular os artigos 8 e 25 (direito ao devido processo legal e a
garantias judiciais) com relação ao artigo 1(1) da Convenção.
Responsabilidade do Estado em relação aos atos ou omissões
de seus órgãos, agentes e dos estados membros da federação
135. O
artigo 1(1) da Convenção estabelece claramente a obrigação do
Estado de respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e de
garantir o pleno exercício dos mesmos, de tal modo que toda violação
dos direitos reconhecidos na Convenção que possa ser atribuída,
segundo as normas do direito internacional, à ação ou omissão de
qualquer autoridade pública, constitui um ato de responsabilidade do
Estado.[5]
A Declaração Americana assinala, em seu artigo XVIII, o
direito a garantias judiciais para a proteção contra atos de
autoridade e indica, em seu preâmbulo, que as instituições jurídicas
e políticas dos Estados têm como finalidade principal a proteção
dos direitos humanos.
136. Nos
termos do artigo 28 da Convenção, quando se tratar de um Estado
parte constituído como Estado federal, como o Brasil, o governo
nacional responderá na esfera internacional por atos praticados pelas
entidades que compõem a federação.
Os casos aqui tratados envolvem alegações de violações de
direitos humanos praticadas por policiais militares do Estado do São
Paulo.
Direito à vida, à liberdade, à segurança e à integridade física
(artigo I da Declaração)
137. O
artigo I da Declaração indica que:
“Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à
segurança de sua pessoa”. As
vítimas Aluísio Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim, Delton Gomes da
Mota, Marcos de Assis Ruben, Wanderlei Galati, Cláudio Aparecido de
Moraes, Celso Bonfim de Lima, todos contando à época de sua morte
com menos de 30 anos de idade, eram trabalhadores ou estudantes, foram
abordados quando em meio as suas atividades rotineiras e executados
extrajudicialmente por policiais militares.
Cláudio Aparecido de Moraes, Celso Bonfim de Lima e Marcos
Almeida Ferreira sofreram, nas mesmas circunstancias, atentados contra
sua vida. Essas violações
ocorreram em diversos incidentes verificados no período de março de
1982 e agosto de 1989.
138. A
Comissão deve considerar se a ação dos agentes da segurança pública
que custou a vida ou a integridade física das vítimas atendia à
necessidade de evitar um crime maior ou foi a prática de um ato de
legítima defesa. Para
tanto, leva em consideração[6]
os “Princípios básicos sobre o uso de força e de armas de fogo
por agentes da lei”, da Organização das Nações Unidas, que
definem claramente os casos em que seu uso é legítimo.[7] Mesmo
não tendo o Estado invocado tal defesa, a Comissão entende que cabe
fazer referência a esse ponto.
139. Não
há em nenhum dos casos em tela evidência que sustente qualquer das
situações onde o uso da força é aceitável, nos termos dos
mencionados princípios, e tampouco prova de que os jovens atingidos
estivessem armados ou ameaçando de morte tanto os policiais como
outras pessoas. Pelo
contrário, nos casos em questão há testemunho de que as vítimas
sequer teriam praticado ou estavam para praticar qualquer ilícito.
Isso indica que a atuação policial mais que desproporcional,
foi injustificada.
140. Os
dados fornecidos indicam que, em todos os casos em que os corpos não
foram ocultados, os policiais simularam confrontos diretos entre as vítimas
e a força policial, inclusive alegando ocorrência de tiroteios, de
forma a encobrir os violentos atos por eles gratuitamente praticados. Observa-se que em 7 casos aqui discutidos, com 8 vítimas,
temos uma proporção de 5 mortos para três feridos, saldo bastante
assustador, mesmo para situações de confronto.
Tal número vai de acordo com pesquisas realizadas no Brasil
que indicam que em casos de confronto entre policiais e civis o número
de mortos é sempre superior ao número de feridos, o que indica, de
forma geral, que a polícia brasileira “atira para matar” e não
para subjugar o suspeito.
141. Para
justificar suas ações, os policiais acusados alegam haverem
confundido várias das vítimas com acusados ou procurados pela prática
de atos delituosos. Contudo, mesmo neste caso, as provas demonstram o
mais absoluto desprezo pela presunção de inocência e que as vítimas
nem sequer puderam defender-se de alguma forma e não foram levadas à
dependência policial para os trâmites pertinentes, e que os
testemunhos e laudos forenses dão conta de execuções ou violações
à integridade, praticadas sumariamente.
142. Os
casos aqui discutidos mostram-se de relevante gravidade pois verifica-se
que as investigações concluíram, como já salientado, que não
houve qualquer confronto entre os jovens e os policiais.
Não estavam as vítimas a praticar atos delituosos, tendo sido
suas mortes causadas sem qualquer motivo aparente (como nos casos de
Clarival e Delton) ou por motivo absolutamente fútil (Wanderlei
Galati), quando encontravam-se indefesas, sob controle e custódia da
polícia. As provas
apresentadas apontam tanto para a arbitrariedade da abordagem como da
execução.
143. Assim,
as circunstancias dos crimes demonstram um quadro geral de despreparo
para atuação nos serviços de manutenção da ordem e segurança
daqueles que conduzem a guarda ostensiva no Estado de São Paulo e a
consciente e espontânea prática de atos de brutalidade pelos mesmos.
144. O
curto espaço de tempo entre os sete casos aqui analisados (1982 –
1989) demonstra tal panorama de violência.
Vemos que em um destes casos - o de Marcos de Assis Ruben - os
policiais acusados foram denunciados na mesma época pelo homicídio
de outras sete pessoas em circunstancias semelhante.
Estes dados levam à conclusão de que prisões e execuções
arbitrárias praticadas por policiais militares eram uma realidade
comum no Estado de São Paulo naquele período.
145. A
Comissão, em casos anteriores, já pronunciou-se contra tais práticas,
que constituem uma das violações sistemáticas do direito à vida e
à integridade pessoal mais abomináveis, e implica na renúncia do
Estado à sua obrigação de garantir os direitos de seus cidadãos.
A Comissão, ao analisar os casos, considerou como elementos
centrais de convicção os depoimentos e evidências emanados dos
respectivos processos judiciais.
É de opinião que cabe fazer referência a esse quadro geral a
fim de deixar claro que estes não são casos isolados e anômalos,
mas, antes, o exemplo de uma atitude sistemática adotada na época
por alguns agentes da polícia.[8]
146. Com
base nos depoimentos e provas que constam dos expedientes dos casos e
que foram acima brevemente apresentados, a Comissão considera que
existem evidências claras e contundentes que levam à plena convicção
de que agentes da Polícia de São Paulo violaram o direito à vida de
Aluísio Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim, Delton Gomes da Mota,
Marcos de Assis Ruben, Wanderlei Galati, Cláudio Aparecido de Moraes,
Celso Bonfim de Lima e Marcos Almeida Ferreira.
Garantias e proteção judiciais (artigos 8 e 25) 147. O Brasil depositou seu instrumento de adesão à
Convenção Americana em 25 de setembro de 1992.
Os processos judiciais relativos aos casos aqui analisados
foram ajuizados antes dessa data e referem-se a crimes cometidos no
final da década de 80. No
entanto, os processos judiciais estenderam-se, e em alguns casos ainda
se estendem, por vários anos após a entrada em vigor da Convenção
para o Brasil. Uma situação como esta, que começa como violação
do artigo XVIII da Declaração e a seguir se insere nas violações
previstas nos artigos 8 e 25 da Convenção, tem sido reiteradamente
interpretada pela Comissão como violação continuada.
Com base nesse entendimento, a Comissão considera que são
aplicáveis aos processos pendentes em cada Estado membro na
respectiva data de início da vigência da Convenção as garantias
nela previstas. Tal como deixa claro no seu relatório conjunto de
admissibilidade, tem a Comissão competência para decidir sobre a
violação aos artigos 8 e 25 da Convenção Americana.[9]
148. O
artigo XVIII da Declaração assinala que: “Toda
pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitas os seus
direitos. Deve poder contar, outrossim, com processo simples e breve,
mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridades que
violem, em seu prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais
consagrados constitucionalmente.” Os
artigos 8 e 25 da Convenção outorgam a toda pessoa o direito de
acesso a recursos judiciais quando seus direitos forem violados e a
ser ouvida por uma autoridade ou tribunal competente.
O artigo 25 da Convenção assim dispõe: Toda pessoa tem direito a um
recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante
os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que
violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição,
pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação
seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas
funções oficiais. Respeito à competência da Justiça
Militar
149. A
Justiça Militar interveio tanto nas investigações como na acusação
e julgamento de todos estes casos. É o que assinalou a Comissão, no
seu Relatório Especial de 1997:
A Justiça Militar do Estado é competente para processar e
julgar os integrantes das polícias militares acusados de cometer
crimes, definidos como militares, contra a população civil. Em
outras palavras, este foro é regido pelo direito penal militar (Código
Penal Militar – CPM), próprio dos militares, que contém normas
substantivas de direito penal e que constitui “um complexo de normas
jurídicas destinado a assegurar a realização dos fins essenciais
das instituições militares, cujo objetivo principal é a defesa da Pátria”.
Neste foro, prevalecem “a hierarquia e a disciplina”.[10] Também
é regulamentado pelo Código de Processo Penal Militar (CPPM), que
contém normas de direito formal ou adjetivo. A nova Lei 9.299/96
submete à jurisdição penal ordinária os casos de delitos dolosos
contra a vida, mas mantém o restante da jurisdição da justiça
militar sobre a Polícia.[11]
Trata-se de uma ordem normativa especial, com princípios e
diretrizes próprias, em que a maioria de suas normas é aplicável
somente aos militares e civis que cometem crimes contra as instituições
militares, à diferença do que ocorre no direito penal comum, em que
suas normas são aplicáveis a todos os cidadãos.[12]
150. A
mesma competência ocorre em relação ao poder de promover a ação
penal pública e a investigação. Com efeito: Como
um remanescente de sua criação sob o regime militar, cabe ao Ministério
Público Militar Estadual a competência para promover a ação penal
pública perante a justiça militar e, ademais de outras atribuições,
as de instaurar o inquérito policial-militar e exercer o controle
externo da atividade da polícia militar. Isto representa, a juízo da
Comissão, uma falha crítica do sistema de garantias da ação
policial, pois se extrai do ministério público civil o controle da ação
policial comum (a cargo das chamadas polícias “militares”,
justamente aquelas às quais se atribui o maior número de violações
de direitos humanos).
151. A
Comissão indicou, no mencionado Relatório Especial, que esse foro
especial para a polícia emanou do regime militar que vigorava no
Brasil em 1977, mediante emenda constitucional (N°
7, de 1977), à raiz da qual o Supremo Tribunal Federal mudou de critério
e considerou que a justiça militar do Estado era competente para
julgar os policiais “militares”.
A Comissão assinalou, então, que: Esta
mudança fundamental na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
trouxe como conseqüência o aumento dos crimes cometidos por
policiais militares que permaneceram impunes.
152. Tal
como então se indicou:
Os processos perante tribunais militares muitas vezes prolongam-se
por anos,[13]
devido em parte à carga de trabalho,[14]
à escassez de juizes e promotores, às excessivas formalidades de
procedimento e a incidentes dilatórios. A Comissão pôde determinar
que esses tribunais tendem a ser indulgentes com os policiais acusados
de abusos de direitos humanos e de outros atos delituosos, o que
facilita a impunidade dos culpados.
Nesse clima de impunidade,[15]
propício para a violência da corporação policial militar,[16]
os policiais envolvidos em atividades desta ordem são alentados a
intervir em execuções extrajudiciais, no abuso dos detidos e em
outros tipos de atividade delituosa. A violência estendeu-se
eventualmente aos promotores que insistiam em continuar a investigar
os crimes cometidos por policiais “militares”, que passaram a ser
ameaçados, inclusive de morte. Também não é de surpreender que
testemunhas chamadas a depor contra policiais processados sejam objeto
de ameaças intimidatórias.[17]
Em carta dirigida à
Comissão em 1996, o Centro Santos Dias manifesta, a respeito: “Nos
inquéritos militares, formalizados nos órgãos da justiça militar,
a parcialidade em favor dos policiais incriminados é
escandalosa, chegando ao ponto de transformar a vítimas em réus.
Também é muito comum a intimidação de testemunhas, cujos
depoimentos em juízo são tomados na presença dos policiais acusados.
Nessas condições, não é de estranhar a freqüência com que se
determina o arquivamento dos inquéritos por deficiência de provas.
Se, cumprida essa etapa, chegasse a ser formulada ou acolhida uma denúncia,
surgiriam novas dificuldades no avanço do processo, deliberadamente
moroso e repleto de incidentes dilatórios: demora na constituição
dos conselhos, sucessivos adiamentos motivados por pequenos vícios
formais, etc.”
Assim não surpreende que uma instrução[18]
se arraste por quatro ou cinco anos ou indefinidamente, por tempo
suficiente para apagar a lembrança dos fatos nas páginas dos jornais
e na memória das pessoas. Passado tanto tempo, as famílias das vítimas
já perderam a esperança, as testemunhas mudaram de domicílio e as
evidências probatórias se desvaneceram.[19] 153.
A Comissão reitera sua convicção de que julgar delitos
comuns como se fossem militares pelo simples fato de terem sido
cometidos por militares é uma violação da garantia de um tribunal
independente e imparcial. Para fundamentar seu argumento, invoca um
pronunciamento da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas [20],
os princípios básicos terceiro e quarto das Nações Unidas sobre
independência judicial, o artigo 16(4) dos Padrões Mínimos de
Normas de Direitos Humanos em Situações de Emergência (Paris, 1984)
e, finalmente, a doutrina da própria Comissão Interamericana [21].
No que se refere à
investigação, ao processo e à sanção nos casos analisados
154. Conforme
antes assinalou a Comissão, quando, como nos casos de Aluísio
Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim, Delton Gomes da Mota, Marcos de
Assis Ruben e Wanderlei Galati, a vítima não se encontre em condições
de buscar uma reparação judicial, o direito de recorrer a esse meio
transfere-se necessariamente aos seus familiares.
A Comissão
chegou à conclusão de que as vítimas e/ou seus parentes têm
direito a uma investigação judicial, a cargo de uma corte de justiça
criminal, destinada a estabelecer e punir responsabilidades em casos
de violações de direitos humanos.
Ver, em geral, os relatórios número 28/92 (Argentina) e 29/92
(Uruguai) no Relatório Anual da CIDH 1992-93, OEA/Ser.L/V/II.83, doc.
14 corr. 1, 12 de março de 1993, págs. 51-53 e 169-174.
Tal direito emana da obrigação do Estado de “investigar
seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações cometidas no
âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis,
impor-lhes as sanções pertinentes e assegurar à vítima uma
adequada reparação”. Caso
Velásquez Rodrigues (Fundo), supra, parágrafo 174.[22]
155. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos assim se pronunciou a
respeito da obrigação do Estado de investigar os fatos violatórios
dos direitos humanos protegidos pela Convenção: [A obrigação de] investigar é, como a de prevenir,
uma obrigação de meio ou comportamento que não é incumprida apenas
pelo fato de que a investigação não produza um resultado satisfatório. Cumpre, entretanto, que ela seja empreendida com seriedade e
não como mera formalidade condenada de antemão a ser infrutífera.
Deve ter um sentido e ser assumida pelo Estado como um dever
jurídico próprio e não como uma simples gestão de interesses
particulares, que dependa da iniciativa processual da vítima ou de
seus familiares ou da contribuição privada de elementos probatórios,
sem que a autoridade pública busque efetivamente a verdade.[23]
156. Os
peticionários informaram que as autoridades judiciárias, por falta
de diligência, não tomaram providências para prosseguir com o
processamento dos autores dos crimes relatados acima, apesar das evidências
claras que constavam dos depoimentos de vítimas e testemunhas e dos
resultados dos laudos necroscópicos que claramente indicavam a prática
de sérios crimes.
157. Os
processos foram extremamente lentos, verificando-se a reiterada não
realização de audiências e sua redesignação, a declaração da
nulidade de provas e anulação de diversos atos processuais, o que
levou a um desenrolar demasiadamente lento dos procedimentos.
Com isso, vários dos julgamentos realizaram-se muitos anos após
a ocorrência dos crimes, sendo que algumas das testemunhas foram
ouvidas sobre fatos que haviam presenciado há mais de 5 anos.
O decurso de tamanho lapso temporal colabora para a
inefetividade da prestação jurisdicional já tão tardiamente obtida.
158. Os
artigos 8 e 25 da Convenção Americana estabelecem que as garantias e
proteção judiciais, asseguradas pelo Estado sob aquele instrumento
internacional, devem realizar-se dentro de um prazo razoável.
Para determinar a razoabilidade de tal prazo[24]
a Comissão deve proceder à análise global da aludida investigação
policial.
159. Tanto
a Comissão e a Corte Européia de Direitos Humanos como a Comissão
Interamericana estabeleceram uma série de critérios ou considerações
que devem ser levados em conta para determinar se no caso de que se
trate houve ou não atraso injustificado na administração de justiça,
“o que não impedirá que, se cabível, um só deles pese
decisivamente” (a ênfase foi acrescentada).[25]
São estes os critérios estabelecidos pela doutrina para
determinar a razoabilidade do prazo: 1. A
complexidade do caso. 2. A conduta da parte prejudicada com relação à sua cooperação
no andamento do processo. 3.
A forma pela qual tramitou a etapa de instrução do processo. 4. A atuação
das autoridades judiciais.
160. Para
uma análise apropriada da complexidade do caso, é necessário que
nos refiramos aos antecedentes do mesmo:
a violação do direito à vida.
Em conseqüência, cumpre avaliar objetivamente as características
dos delitos cometidos e as condições pessoais de seus presumidos
autores. Em um único
caso estamos diante de dois supostos delitos, um de homicídio e outro
de tentativa de homicídio. Nos
demais casos, os processos envolviam a ocorrência de um único tipo
penal. Em todos os casos
os crimes foram praticados em circunstâncias definidas e simples com
diversas testemunhas e laudos periciais a serem utilizados como meios
de prova. Tais características
apontam para a não complexidade dos casos em discussão.
161. Segundo
a informação em poder da Comissão, alguns dos processos criminais
ainda pendem de decisão judicial definitiva até a presente data.
162. No
Brasil os crimes praticados nos sete casos aqui analisados são
processados através de ações penais públicas, cuja competência é
exclusiva do Ministério Público, não havendo portanto como avaliar
a conduta das partes prejudicadas quanto ao andamento dos processos.
163. O
desenrolar moroso das investigações e sua realização pela própria
polícia militar indicam para irregularidades na realização dos
relativos inquéritos policiais e da fase de instrução processual.
164. Por
fim, a já mencionada anulação de atos processuais e a reiterada não
realização de audiências demonstram certo descaso no rápido e
efetivo desenrolar dos processos criminais por parte das autoridades
judiciais envolvidas.
165. Por
todo acima, a Comissão considera que a ineficiência, negligência ou
omissão no desenvolvimento das investigações e processos por parte
das autoridades estatais brasileiras, que culminou em demora
injustificada na conclusão dos processos, não só eximiu os peticionários
da obrigação de esgotar os recursos da jurisdição interna,
conforme consta da parte relativa à admissibilidade, como também
infringe o artigo XVIII da Declaração e os artigos 8 e 25 da Convenção,
ao privar os familiares das vítimas do direito de obter justiça
dentro de um prazo razoável pela via de um recurso simples e rápido.
O artigo 1(1) da Convenção estabelece que os Estados partes
nessa Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades
nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda
pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição.[26] IV. AÇÕES POSTERIORES AO RELATÓRIO
74/00 166. A Comissão aprovou o Informe 74/00 no dia 3 de
outubro de 2000 durante o 108º período de sessões. O referido Relatório
foi transmitido ao Estado Brasileiro em 14 de novembro de 2000,
concedendo-lhe o prazo de dois meses para dar cumprimento às
recomendações formuladas e informou os peticionários sobre a aprovação
de um relatório nos termos do artigo 50 da Convenção.
O prazo concedido transcorreu sem que a Comissão recebesse a
resposta do Estado sobre essas recomendações, motivo pelo qual a
Comissão considera que as mencionadas recomendações não foram
cumpridas.
V.
CONCLUSÕES
167. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado
Brasileiro as seguintes conclusões:
1.
A Comissão reitera a sua conclusão de que é competente para
conhecer deste caso e de que a petição de denúncia é admissível,
de conformidade com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção
Americana.
2.
A Comissão reitera a sua conclusão de que a República
Federativa do Brasil é responsável pela violação do direito à
vida, à integridade e à segurança pessoal (artigo I da Declaração
Americana), do direito às garantias e à proteção judiciais (artigo
XVIII da Declaração e artigos 8 e 25 da Convenção) e pela obrigação
que tem o Estado de garantir e respeitar os direitos (artigo 1(1)
reconhecido na Convenção Americana sobre Direitos Humanos), em conexão
com o homicídio de Aluísio Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim,
Delton Gomes da Mota, Marcos de Assis Ruben, Wanderlei Galati e em
conexão com as agressões e tentativas de homicídio, Celso Bonfim de
Lima e Marcos Almeida Ferreira e Carlos Eduardo Gomes Ribeiro,
praticados por policiais militares do Estado de São Paulo, bem como
pela falta de investigação e punição efetiva dos responsáveis.
VI.
RECOMENDAÇÕES
168. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado
Brasileiro as seguintes recomendações:
1.
Que o Estado brasileiro leve a cabo uma investigação, séria,
imparcial e eficaz dos fatos e circunstâncias em que ocorreu a morte
de Aluísio Cavalcanti, Clarival Xavier Coutrim, Delton Gomes da Mota,
Marcos de Assis Ruben, Wanderlei Galati e as agressões e tentativas
de homicídio de Celso Bonfim de Lima e Marcos Almeida Ferreira e
Carlos Eduardo Gomes Ribeiro, submeta a processo os responsáveis e os
puna devidamente;
2.
Que essa investigação inclua as possíveis omissões, negligências
e obstruções da justiça que tenham tido como conseqüência a falta
de condenação definitiva dos responsáveis, incluindo as possíveis
negligências e incorreções do Ministério Público e dos membros do
Poder Judiciário que possam haver determinado a não aplicação ou
redução do caráter das condenações correspondentes;
3.
Que sejam tomadas as medidas necessárias para concluir, com a
maior brevidade possível e dentro da mais absoluta legalidade, os
processos judiciais, administrativos referentes às pessoas envolvidas
nas violações indicadas anteriormente; 4. Que o Estado brasileiro ofereça reparação das conseqüências das violações de direitos às vítimas e seus familiares ou aos que têm direito, pelos danos sofridos mencionados neste relatório. 5.
Que se adotem as medidas necessárias para abolir a competência
da Justiça Militar sobre delitos cometidos por policiais contra civis,
tal como propunha o projeto original oportunamente apresentado para a
revogação da alínea f do artigo 9 do Código Penal Militar, e que
se aprove a modificação no parágrafo único no mesmo proposta.[27] 6.
Que o Estado brasileiro adote medidas para que se estabeleça
um sistema de supervisão externa e interna da Polícia Militar do Rio
de Janeiro, independente, imparcial e efetivo. 7.
Que o Estado brasileiro apresente à Comissão no prazo de 60
dias da transmissão do presente, um relatório sobre cumprimento de
recomendações com a finalidade de aplicar o disposto no art. 51(1)
da Convenção Americana. VII. PUBLICAÇÃO
169. Em 12 de março de 2001 a Comissão remeteu este
Informe ao Estado brasileiro, de acordo com o artigo 51 da Convenção,
concedendo o prazo de um mês a contar de seu envio para que fossem
cumpridas as recomendações acima indicadas. Vencido esse prazo a
Comissão não recebeu qualquer resposta do Estado a esse respeito. 170. Em virtude das considerações anteriores e em
conformidade com os artigos 51(3) da Convenção Americana e 48 de seu
Regulamento, a Comissão decide reiterar as conclusões e recomendações
dos parágrafos 1 e 2, fazendo público este informe e incluindo-o em
seu Informe Anual à Assembléia Geral da OEA.
A Comissão, no cumprimento de seu mandato, continuará
avaliando as medidas tomadas pelo Estado brasileiro com relação às
recomendações mencionadas, até que sejam cumpridas por completo.
Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, na cidade de Santiago de Chile, aos 4 dias do mês
de abril de 2001. (Assinado): Presidente,
Claudio Grossman; Primer-Vicepresidente, Juan Méndez; Segundo-Vicepresidente,
Marta Altolaguirre; Comissionados:
Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo e Peter Laurie. [3].CIDH, Relatório 17/98 publicado em seu Relatório
Anual 1997. [4].Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Parecer
consultivo 10 parágrafo 45, 14 de julho de 1989, sobre a
“interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem no contexto do artigo 64 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos”. Ver também CIDH Relatório 24/98 sobre violações
continuadas e a aplicabilidade da Convenção Americana. [5].Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez
Rodrigues, sentença de 29 de junho de 1988, parágrafo 164. [6].Embora tais princípios não possam ser tomados como
norma corrente por datarem de 1990 e as violações discutidas neste
relatório terem ocorrido na final da década de 80, serão eles
aqui considerados como princípios gerais do direito internacional e
utilizados na interpretação e análise dos oito casos. [7].Nações Unidas:
“Princípios básicos...” adotados no Oitavo Congresso
sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento de Transgressores,
realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990.
Aplicam-se, inter alia,
as seguintes cláusulas: Os oficiais da lei não usarão armas de fogo contra
pessoas, exceto em defesa própria ou de terceiros contra a ameaça
iminente de morte ou de injúria grave, para impedir a execução de
um crime particularmente grave que envolva ameaça séria de morte,
para deter uma pessoa que represente tal perigo e resista à sua
autoridade, ou para prevenir sua fuga, e isso tão-somente quando
medidas menos extremas forem insuficientes para a consecução
desses objetivos. Em
todo caso, o uso intencional e letal de armas de fogo só poderá
ser feito quando for absolutamente inevitável à proteção de
vidas humanas. Nas circunstâncias previstas no Princípio 9, os
oficiais da lei deverão identificar-se como tais e anunciar de
forma clara a sua intenção de usar armas de fogo com tempo
suficiente para que tal advertência seja acatada, a menos que ela
possa pôr indevidamente em risco o oficial da lei ou gerar risco de
morte ou injúria grave para outras pessoas, ou seja nitidamente
imprópria ou vã nas circunstâncias do incidente. [8] CIDH,
Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil.
Capítulo sobre Violência e Impunidade Policial, 1997. [9].CIDH, Relatório 60/99, Caso 11.516 (Ovelário Tames). [10] Ver Vicenzo Manzini, Diritto penale militare, Padova, 1932, ano X, pág. 1, e Ildefonso M. Matíanez Muñoz, Derecho militar y derecho disciplinario militar, Buenos Aires, 1977, No. 20 e 87, págs. 36 e 149, op. cit. por Jorge Alberto Romeiro, Curso de Direito Penal Militar (Parte Geral), pág. 1, Ed. Saraiva (1994). [11] Um projeto de lei já aprovado pelo Senado amplia a competência da justiça comum, incluido outros crimes cometidos por policiais militares. O projeto só não inclui os crimes de formação de quadrilha e extorsão. [12] Reinahrt Maurach, Deutsches Strafrecht, ein Lehrbuch, Allgemeiner Teil, Karksruhe, 1971, #8, IV, c, págs. 93-4: “O direito penal especial de maior importância prática é o direito penal militar” (Das praktisch wichtgiste Sonderstrafrecht ist das Wehrstrafrecht). Manzini, Diritto penale militare, cit., pág. 2; Giuseppe Ciardi, Istituzioni di diritto penale militare, Roma, s.d. v. 1 p. 12; Rodolfo Venditti, Il diritto penale militare nel sistema penale italiano, Milano, 1978, págs. 23-5; e Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Geral, Rio de Janeiro, Forense, 1960, pág. 5, op. cit., Curso de Direito Penal Militar, Parte Geral, Jorge Alberto Romeiro. [13] Indica-se que, no fim de 1992, havia 14.000 casos pendentes em quarto tribunais de São Paulo, que dispunham tão somente de um promotor. HUMAN RIGHTS WATCH/AMÉRICAS, Final Justice, supra, nota 18, pág. 41 (1994) [14] EMBAIXADA DO BRASIL, SOCIETY, CITIZENSHIP AND HUMAN RIGHTS IN CONTEMPORARY BRAZIL, pág. 19 (1995). [15] Em março de 1992, a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, afirmava que a causa principal do aumento de mortes em mãos de policiais militares era a impunidade gerada pelo sistema especial de justiça utilizado para o seu julgamento (Folha de São Paulo, 7 de março de 1982). CONSELHO ESTADUAL DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA HUMANA, Por uma nova política de segurança e cidadania, Comissão Permanente de Justiça, Segurança e Questão Carcerária, Série Documentos-1, pág. 14 (1994). [16] Ver COUNTRY REPORTS ON HUMAN RIGHTS PRACTICES FOR 1990, Report Submited to the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, and the Committee on Foreign Relations, U.S. Senate, by the Department of State, pág. 332 (1994). [17]
Ver HUMAN RIGHTS WATCH/AMERICAS, final Justice, supra nota 18, págs. 41-42 (1994). [18] Entende-s por instrução de um processo penal a etapa processual destinada a reunir os elementos probatórios a fim de queo Conselho de Justiça possa formar seu próprio critério a respeito dos fatos. A etapa tem início com o interrogatório do acusado (artigo 404 do Código de Processo Penal Militar – CPPM) e continua até as alegações finais (artigo 428 do mesmo Código). [19] Carta do Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, dirigida á Secretaria Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (29 de junho de 1994). [20] O Comitê de Direitos Humanos da ONU também se pronunciou sobre a impropriedade da justiça militar por ocasião de suas observações finais ao 1º Relatório Periódico submetido pelo Governo Brasileiro a esse órgão em 1996: “O Comitê está preocupado com a prática do sistema brasileiro de administração de justiça de ajuizar os policiais militares acusados de violações de direitos humanos em tribunais militares e lamenta que ainda não se tenha transferido a jurisdição nesses casos para os tribunais civis.” No mesmo sentido o Relatório preparado por Sr. Joinet para a Sub-Comissão de prevenção sobre discriminação e proteção de minorias da Comissão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, ao estabelecer princípios referentes à administração da justiça, afirmou: “Com o objetivo de impedir que as cortes militares, naqueles países onde estas ainda não foram abolidas, ajudem a perpetuar a impunidade devido a ausência de independência resultante da rede de comando sob a qual quase todos os seu membros estão sujeitos, sua jurisdição deve ser limitada especificamente às infrações militares cometidas por membros das forças armadas, excluindo-se os crimes de direitos humanos que constituem crimes graves de acordo com o direito internacional, os quais devem ser levados à jurisdição das cortes ordinárias, ou, se necessário, às cortes internacionais.” (Relatório n. E/CN.4/Sub.2/1997/20, 26 de junho de 1997, princípio n. 34)
[21]
Ver CIDH, Relatório Anual 1999, Relatório n.34/00,
Caso 11.291- Carandirú (Brasil), par. 80. No mesmo sentido,
ver CIDH, Relatório Anual 1999, Relatório 7/00, caso 10.337
(Colômbia); par.53 a 58; CIDH, Terceiro Informe sobre a situação
de direitos humanos na Colômbia (1999),pag.175. [22] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodrigues, sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 77, páginas 74-75. [23] “O direito a um processo justo previsto na Convenção fundamenta-se, entre outras razões, na necessidade de evitar demoras indevidas que se traduzam em privação e denegação de justiça em prejuízo de pessoas que invocam a violação de direitos protegidos pela citada Convenção” (Relatório 43/96, Caso 11.411, México, página 483, parágrafo 30, Relatório Anual 1996, CIDH). [24] Ver, por exemplo, CIDH, Resolução No 17/89, Relatório do Caso No 10.037 (Mario Eduardo Firmenich). In Relatório Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos 1988-1989, página 38; Tribunal Europeu de Direitos Humanos: Caso “Konig”, sentença de 28 de junho de 1978, Série A, No 27, páginas 34 a 40, parágrafos 99, 102-105 e 107-111; Caso Guincho, sentença de 10 de julho de 1984, Série A, No 81, página 16, parágrafo 38; Unión Alimentaria Sanders S.A., sentença de 7 de julho de 1989, Série A, No 157, página 15, parágrafo 40; Caso Buchholz, sentença de 6 de maio de 1981, Série A, No 42, página 16, parágrafo 51, páginas 20-22, parágrafos 61 e 63; Caso Kemmache, sentença de 27 de novembro de 1991, Série A, No 218, página 27, parágrafo 60. [25] CIDH, Relatório Anual 1997, página 655 e seguintes. [26] Esse dever constitui, conforme indica a Corte Interamericana de Direitos Humanos, obrigação do Estado de organizar o seu aparelho governamental e as estruturas administrativas por meio das quais manifesta o exercício do poder público, de forma que seja possível garantir juridicamente o livre exercício dos direitos humanos. Como conseqüência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção. [27]
O texto do projeto que
tramita no Congresso diz: Oficiais e praças das polícias militares do Estados nos exercício de funções policiais não são considerados militares para efeitos penais, sendo competente a justiça comum para processar e julgar os crimes por eles ou contra eles cometidos.
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