RELATÓRIO ANUAL 2000

INFORME Nº 36/01*

CASO 11.694

EVANDRO DE OLIVEIRA E OUTROS

BRASIL

22 de fevereiro de 2001

 

 

          I.            RESUMO

 

          1.          Em 24 de julho de 1996, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Comissão“ ou “CIDH”) recebeu uma denúncia do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/Americas (doravante denominados “Peticionários”) contra a República Federativa do Brasil (doravante denominada “Estado” ou “Estado Brasileiro” ou “Brasil”) pela suposta execução extrajudicial de Evandro de Oliveira, Andre Luis Neri da Silva, Alberto dos Santos Ramos, Macmillea Faria Neves, Adriano Silva Donato, Alex Viana dos Santos, Alexandre Batista de Souza, Alan Kardec Silva de Oliveira, Sergio Mendes de Oliveira, Clemilson dos Santos Moura, Robson Genuino dos Santos, Fabio Henrique Fernades Vieria e Ramilson Jose de Souza além de suposto abuso sexual contra J.F.C., C.S.S. e L.R.J. durante uma operação da  polícia civil na favela Nova Brasília no Rio de Janeiro no dia 18 de outubro de 1994.  Os peticionários alegam a responsabilidade do Estado Brasileiro pela violação dos artigos referentes ao direitos a vida (artigo 4), direito à integridade pessoal (artigo 5), direito à garantia judicial (artigo 8), direito à privacidade (artigo 11(1)) e direito a inviolabilidade do lar (artigo 11(2) e 11(3)) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “Convenção Americana” ou “Convenção”).

 

2.          O Estado aportou informação sobre as providências tomadas no âmbito interno para apurar as circunstâncias em que ocorreram os delitos, embora não tenha questionado expressamente o cumprimento do  requisito referente ao esgotamento dos recursos internos.

 

3.          Ao analisar as alegações das partes, a Comissão decidiu declarar o caso admissível.

 

II.            TRÂMITE PERANTE À COMISÃO

 

4.          A Comissão solicitou informações ao Estado Brasileiro a respeito dos fatos alegados na denúncia em 19 de novembro de 1996. O Estado pediu prorrogação do prazo para a sua contestação por mais 30 dias em 19 de fevereiro de 1997 e novamente em 31 de março de 1997, tendo ambos pedidos sido  atendidos pela Comissão. Face a inércia do Estado, a Comissão, em 7 de julho de 1998, enviou carta ao Estado solicitando as informações necessárias e advertindo-o sobre a aplicação do artigo 42 do Regulamento.  O Estado apresentou sua resposta em 7 de agosto de 1998. Em 1 de setembro de 1998, a Comissão remeteu as informações do Estado para os peticionários, os quais  aportaram informação adicional em 17 de novembro de 1998. A Comissão solicitou que o Estado Brasileiro procedesse as suas observações finais em 25 de novembro de 1998 e novamente em 1 de maio de 2000, sem que o Estado tenha respondido a estas solicitações.

 

III.            POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.            Posição dos peticionários

 

5.          Os peticionários informam que um grupo composto de 110 policiais civis da Divisão de Repressão a Entorpecentes (DRE) do estado do Rio de Janeiro invadiram a favela Nova Brasília na cidade do Rio de Janeiro em 18 de outubro de 1994 às 5:00 horas da manhã a pretexto de cumprir 104 mandatos de prisão temporária. Adicionam que houve confronto armado entre traficantes e policiais e alegam que as supostas violações de direitos humanos foram cometidas de várias maneiras como se passa a descrever.

 

6.          Segundo os peticionários, um primeiro grupo de policiais invadiu a casa de J.F.C. e de seu namorado “Paizinho ordenando-lhes rendição. Após terem algemado Paizinho, os policiais chutaram-no e desferiram golpes em sua cabeça com o propósito de saber sobre o paradeiro de um dos líderes do tráfico local, e ao final prenderam-no e ameaçaram matá-lo. Os policiais também agrediram J.F.C. com golpes nas pernas e barriga.

 

7.          Os peticionários alegam igualmente que os mesmos policiais invadiram outra casa de traficantes, sendo que, ao entrarem atirando, mataram Adriano Silva Donato e Alan Kardec de Oliveria, que os corpos foram arrastados para fora da casa e levados até a praça principal. Em seguida, Clemilson dos Santos foi arrastado de sua casa pelos policiais e supostamente executado sumariamente na mesma praça.

 

8.          Conforme o relato dos peticionários, um segundo grupo de policiais invadiu uma casa e supostamente executaram sumariamente a Sergio Mendes Oliveria, Fabio Herique Vieira e Evandro de Oliveira, sendo que este último foi-lhe desferido um tiro em cada olho. Em seguida invadiram outra casa e também executaram Robson Genuino dos Santos, Ranílson José de Souza e Alberto dos Santos Ramos.

 

9.          Os peticionários alegam ainda que um grupo de dez policias invadiu outra casa onde estavam C.S.S., L.R.J. e André Luiz Neri Silva e que alguns dos policiais abusaram sexualmente de C.S.S. e L.R.J. Além disso, os policiais espancaram L.R.J. e André a fim de colherem informação sobre o paradeiro de um dos líderes do tráfico local. Em seguida os policiais prenderam André, cujo corpo foi posteriormente localizado na praça central juntamente com os demais cadáveres.

 

10.          Os peticionários informam que a operação policial terminou as 9:30 hs da manhã com o saldo de quatorze (14) mortes entre o grupo de supostos traficantes.

 

11.          Assinalam os peticionários que o inquérito policial n. 184/94 foi instaurado em 18 de outubro de 1994 pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) para apurar as irregularidades da ação policial. Paralelamente, o governo do Rio de Janeiro criou uma comissão especial para supervisionar as investigações (inquérito n. 52/94), as quais foram conduzidas pela Corregedoria-Geral da Polícia Civil e a Delegacia Especial contra a Tortura e Abuso de Autoridade (DETAA). Quanto ao inquérito n. 52/94 realizado pela DETAA, os peticionários aduzem que este concluiu que os policiais haviam praticado execução sumária e outros abusos, mas que, no curso das investigações, nenhum dos agressores identificado pelas vítimas prestou depoimento ou foi preso.

 

12.          Os peticionários informam que a Promotora Maria Inês Pimentel, responsável pelo acompanhamento dos inquéritos n. 184/94 e 52/94 se recusou sistematicamente a prestar qualquer tipo de informação sobre os mesmos.

 

13.          Assinalam os peticionários que, segundo o artigo 10 do Código de Processo Penal Brasileiro,  o prazo para a conclusão do inquérito policial é de trinta dias, podendo ser prorrogado por mais trinta dias mediante autorização judicial. No caso sob análise, os peticionários aduzem que os inquéritos instaurados para apurar os eventos ocorridos na Favela Nova Brasília não haviam sido concluídos até novembro de 1998, momento em que enviaram informação adicional, isto é, quatro anos depois de abertos o inquéritos.

 

14.          Com relação ao esgotamento dos recursos internos, os peticionários defendem a admissibilidade da petição com base no retardo injustificado dos recursos internos, artigo 46.2.(c). Acrescentam os peticionários que  a demora de quatro anos na condução do inquérito policial, sem que tenha sido interposta a competente ação penal contra os responsáveis, demonstra que os recursos internos são ineficazes para a reparação das violações de direitos humanos no presente caso.

 

B.            Posição do Estado

 

15.          O Estado Brasileiro respondeu às alegações dos peticionários, informando:

 

2. De fato, a versão decorrente das informações coligidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro coincide em que os assassinatos decorreram de uma ação repressiva – uma verdadeira operação de guerra, envolvendo cento e dez policiais da Divisão de Repressão a entorpecentes da 21a Delegacia Policial e outras unidades da Polícia Civil do Rio de Janeiro – para desbaratar uma quadrilha de traficantes de entorpecentes que estava refugiada na Favela Nova Brasília e dispunha de armamento pesado: fuzis, metralhadoras, granadas, etc.

 

3. Também ficou evidenciado que houve reação violenta dos traficantes, e que três policiais civis ficaram feridos em consequência dessa reação.

 

4. Em decorrência do incidente foram instaurados dois instrumentos investigatórios.

 

Assim, o Inquérito Policial promovido pela Divisão de Repressão a Entorpecentes objetivou a investigação da atuação repressiva policial, se houve excesso culposo ou doloso.

 

O outro Inquérito Policial, promovido pela Delegacia Especial de Tortura e Abuso de Autoridade, buscou investigar a denúncia de que teria ocorrido execuções sumárias e outras violências praticadas pelos policiais civis.

 

Os dois inquéritos tiveram o acompanhamento de representantes do Ministério Público.”

 

16.          Com respeito ao trâmite das investigações, o Estado transcreveu as informações fornecidas por representantes do Ministério Público, conforme segue:

 

“Cumpre esclarecer que o primeiro inquérito em curso na DRE apura se houve excesso doloso ou culposo na ação policial, já estando anexado ao mesmo algumas peças técnicas, tais como os autos de exame cadavérico, onde este Promotor de Justiça efetivamente  verificou que alguns cadáveres apresentam perfurações nos dois olhos, o que demanda uma investigação mis apurada, aos  moldes da citada acima, com a intimação de pessoas, havendo apenas falta de tempo hábil.

 

Em desdobramento a tal investigação outra foi instaurada na Delegacia Especial de tortura e Abuso de Autoridade tendo em vista declarações de alguns envolvidos de que no confronto teria havido execução sumária e até mesmo abuso sexual por parte dos policiais.

 

Ocorrem que tais declarações igualmente demandam investigação mais minuciosa, eis que os denunciados guardam ligação com os mortos, sendo de curial sabença que a lei do silêncio é reinante no local, havendo um consenso que visa desmoralizar a polícia, inclusive com oferecimento de prêmios pelos traficantes para quem o fizer. (…)

 

IV.            ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.            Competência ratione materiae, personae, temporis e loci

 

17.          A Comissão tem competência ratione personae (em razão da pessoa)  para examinar a denúncia porque a petição assinala, como alegada vítimas, indivíduos para o qual o Estado Brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção. Adicionalmente, os fatos alegados estão vinculados à atuação de agentes do estado do Rio de Janeiro, e tendo em vista o artigo 28 da Convenção, quando se trata de um Estado Federativo como o Brasil, o governo nacional responde na esfera internacional por atos cometidos por agentes dos Estados Membros da Federação.

 

18.          A Comissão tem competência ratione materiae (em razão da matéria) por tratar-se de alegações sobre a violação de direitos reconhecidos na Convenção, a saber: direitos a vida (artigo 4), direito à integridade pessoal (artigo 5), direito à garantia judicial (artigo 8), direito à privacidade (artigo 11(1)) e direito a inviolabilidade do lar (artigo 11(2) e 11(3)) da Convenção.

 

19.          A Comissão tem competência ratione temporis (em razão do prazo)  tendo em vista que os fatos alegados datam de 18 de outubro de 1994, quando a obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na Convenção encontravam-se em vigor para o Estado Brasileiro, que a ratificou em 25 de setembro de 1992.

 

          20.          A Comissão tem competência ratione loci (em razão do lugar) porque os fatos alegados ocorreram na cidade do Rio de Janeiro, isto é, em território sujeito à jurisdição do Estado Brasileiro.

 

B.            Esgotamento dos recursos internos

 

21.          De acordo com o artigo 46(1)(a) da Convenção, para que uma petição seja admissível pela Comissão é necessário o esgotamento prévio dos  recursos da jurisdição interna, conforme os princípios de direito internacional.  Não obstante, o artigo 46(2) da Convenção estabelece que as mencionadas disposições não se aplicam nas seguintes hipóteses:

 

a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

 

22.          No presente caso, segundo as informações aportadas pelos peticionários e confirmadas pelo Estado Brasileiro, foram instaurados dois inquéritos policiais para apurar os fatos ocorridos na Favela Nova Brasília: a) o inquérito n. 184/94, conduzido pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes e que teve início em 18 de outubro de 1994; b) o inquérito n. 52/94, conduzido pela Delegacia Especial contra a Tortura e Abuso de Autoridade, embora não se tenha a informação sobre a data em que este foi iniciado.

 

23.          Conforme a informação disponível, a Comissão observa que a legislação brasileira determina que o prazo para a conclusão do inquérito policial é de trinta dias, podendo ser prorrogado por mais trinta dias mediante autorização judicial. Entretanto, de acordo com a informação disponível no expediente, os inquéritos não foram concluídos até o momento, apesar do transcurso de seis anos.

 

24.          O Estado não questionou expressamente o cumprimento do  requisito referente ao esgotamento dos recursos internos, limitando-se a informar que foram abertos dois inquéritos policiais para apurar as alegadas violações durante a operação policial na favela Nova Brasília e que os procedimentos investigatórios contam com a supervisão do Ministério Público.  A Comissão assinala que o Estado deve invocar de maneira expressa e oportuna a regra de não esgotamento dos recursos de jurisdição interna para que possa opor-se à admissibilidade da denúncia. No presente caso, o Estado não valeu-se desta prerrogativa, o que resulta na sua renúncia tácita.[1]

 

25.          Em face do  exposto, a Comissão assinala que o transcurso de seis anos, desde o início das investigações abertas em 1994, sem que se tenha completado os inquéritos policiais implica em uma demora injustificada conforme estipula o artigo 46 (2)(c) da Convenção.  A demora na condução das investigações referentes impede a propositura da ação penal e a possibilidade de punição dos responsáveis. Pelo exposto, a Comissão considera que está cumprido o requisito referente ao esgotamento dos recursos de jurisdição interna.

 

C.            Prazo de apresentação da petição

 

26.          Em face do atraso injustificado na condução dos recursos internos e da correspondente aplicação do artigo 46(2)(c) da Convenção e do artigo 37(2)(c) do Regulamento, a Comissão considera que opera também, em conformidade com o artigo 46(2) da Convenção, a exceção do aludido requisito referente ao prazo que deve ser apresentada a petição.  A Comissão considera que a mesma foi apresentada em tempo razoável.

 

D.            Litispendência ou coisa julgada material

 

27.          A Comissão não tem conhecimento de que a matéria da petição encontra-se pendente de em outra instância internacional, nem que a mesma reproduza uma petição examinada por este ou outro órgão internacional. Portanto, a Comissão decide que os requisitos dos artigos 46(1)(c) e 47(d) estão satisfeitos.

 

E.            Caracterização dos fatos

 

28.          Se provados verdadeiros, os fatos alegados pelo peticionário podem caracterizar violações de direitos amparados pela Convenção Americana.

 

            V.            CONCLUSÕES

 

          29.          A Comissão conclui que é competente para considerar o presente caso e que a petição atende às exigências de admissibilidade estabelecidas pelos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

          30.          Com fundamento nos argumentos de fato e de direito anteriormente expostos, e sem prejudicar o mérito da questão,

 

          A COMISSÃO INTER-AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

DECIDE:

 

          1.          Declarar o caso admissível no que se refere aos fatos denunciados que, se comprovados verdadeiros, constituem violações dos artigos 4, 5, 8, 11(1), 12(2) y 12(3), y 25 da Convenção Americana.

 

          2.          Notificar o Estado Brasileiro e os peticionários desta decisão.

 

          3.          Continuar com a análise de mérito do caso.

          4.          Publicar esta decisão e inclui-la no Informe Anual da CIDH dirigido à Assembléia Geral da OEA.

 

(Assinado):  Presidente; Claudio Grossman, Primer Vicepresidente; Juan Méndez, Segundo- Vicepresidente; Marta Altolaguirre, Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo e Peter Laurie.

 

     


* O membro da Comissão Hélio Bicudo, de nacionalidade brasileira, não participou do debate nem da adopción deste caso em cumprimento ao artigo 19(2)(a) do Regulamento da Comissão.

[1]Corte I.D.H., Caso Velasquez Rodriguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Serie C No. 1, pár. 88 e Corte I.D.H., Caso Loayza Tamayo, Exceções Preliminares, Sentença de 31 de janeiro de 1996, Serie C No. 25, pár. 40.