RELATÓRIO ANUAL 2000

RELATORIO Nº 61/01*

CASO 12.058

GILSON NOGUEIRA CARVALHO

BRASIL  
3 de outubro de 2000

 

 

 

I.                    RESUMO

 

          1.       Em 11 de dezembro de 1997, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Comissão”) recebeu uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante denominada “Estado” ou “Brasil”) apresentada pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), pelo Holocaust Human Rights Project (HHRP) e pelo Group of International Human Rights Law Students (GIHRLS).[1]  A petição refere-se ao assassinato do advogado defensor dos direitos humanos Gilson Nogueira Carvalho, ocorrido em 26 de outubro de 1996, em Natal, Rio Grande do Norte, presumidamente em conseqüência das denúncias e ações judiciais em defesa dos direitos humanos relacionadas com as atividades de um esquadrão de extermínio conhecido como “Meninos de Ouro”, o qual seria integrado por agentes da polícia civil e por funcionários da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Norte.  Também trata da omissão de um julgamento justo, com o devido processo legal, e do pagamento de indenização pelo dolo cometido.

 

          2.       A petição alega que os atos nela referidos constituem violações dos direitos garantidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada “Convenção”), especificamente no artigo 4 (direito à vida), artigo 8 (direito a garantias judiciais) e artigo 25 (direito à proteção judicial) conjugado com o artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos).

 

          3.       O Estado respondeu que há evidência de ação criminosa no caso de Gilson Nogueira, bem como indícios de seu autor, e que o respectivo processo se encontra atualmente nas etapas preliminares, especificamente na fase de pronúncia, o que indica que a instrução do processo atingiu o estágio em que há convicção quanto à existência de crime e indícios da autoria.[2]

 

          4.       Tendo analisado a petição e concluído que as exigências para a aplicação da Convenção haviam sido cumpridas, a Comissão decidiu declarar o caso admissível no que respeita às alegadas violações da Convenção relativamente ao artigo 4 (direito à vida), ao artigo 8 (direito a garantias judiciais) e ao artigo 25 (direito à proteção judicial) conjugado com o artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos).

          II.        TRAMITAÇÃO NA COMISSÃO

 

          5.       Em 11 de dezembro de 1997, a Comissão recebeu a petição inicial redigida em inglês e em 21 de janeiro de 1998 a transmitiu ao Estado, ao qual solicitou que se pronunciasse a seu respeito dentro do prazo de 90 dias.  Atendendo ao pedido do Estado no sentido de que a petição lhe fosse encaminhada em português, a Comissão solicitou ao peticionário que fornecesse sua tradução, sendo esta recebida em 13 de outubro de 1998 e na mesma data transmitida ao Governo brasileiro, com a solicitação de uma resposta dentro do prazo de 90 dias.

 

6.                  Em virtude da omissão do Estado em pronunciar-se sobre a petição, em 1° de abril de 1999 a Comissão renovou o pedido de resposta feito ao Governo brasileiro, estipulando para a mesma o prazo de 30 dias.  Em 1° de maio de 1999, a Comissão reiterou ao Estado que consideraria a aplicação do artigo 42 de seu Regulamento se dentro dos 30 dias seguintes não recebesse uma resposta.

 

          7.       Em 29 de junho de 2000, o Estado remeteu uma nota de um parágrafo, informando que o processo para esclarecer o assassinato do advogado Gilson Nogueira fora instaurado e que o arquivo anterior havia sido apelado.  Nenhuma outra resposta foi recebida.  (Ver a nota de rodapé 2 para o texto integral da mencionada resposta).

 

          8.       Em 25 de agosto de 2000, os peticionários enviaram nova informação atualizando a situação do processo que foi remetida em 30 de agosto ao Estado, ao qual se solicitou que se manifestasse a seu respeito dentro dos 30 dias seguintes.  Até a data deste relatório a Comissão não havia recebido qualquer resposta a essa solicitação.

 

III.             FATOS ALEGADOS NA PETIÇÃO

 

            A.        Antecedentes

 

          9.       Os peticionários assinalam o alto grau de violência policial que prevalecia em 1995 no Estado do Rio Grande do Norte e de modo especial em sua capital, Natal.  Afirma-se que o Subsecretário de Segurança Pública, Maurilio Pinto de Medeiros (Pinto), participava da coordenação de um esquadrão da morte conhecido como “Meninos de Ouro”, formado por policiais civis e funcionários da Secretaria Estadual de Segurança Pública sob a direção do Subsecretário de Segurança Pública.

 

          10.     Segundo a petição, durante a permanência de Pinto no cargo de Subsecretário de Segurança Pública, os “Meninos de Ouro”, atuando na condição de agentes do Estado sob a orientação de Pinto, cometeram uma série de violações dos direitos humanos, incluindo assassinatos e tortura.

 

 

          11.     A petição cita casos ilustrativos de violência policial[3], inclusive o massacre de Mãe Luiza ocorrido em 5 de março de 1995.  Alegadamente, o policial Jorge Luiz Fernandes, conhecido como Jorge Abafador[4], derrubara a pontapés a porta da casa de Maria Lúcia Costa a 1h30 da madrugada, desferira-lhe um tiro no rosto e alvejara com dois disparos à queima-roupa seus dois filhos que dormiam perto dela, causando ferimentos no braço e na coxa de sua filha e cegueira de um dos olhos de seu filho.  Alegou-se que Fernandes disparara mais oito tiros, que causaram a morte do marido da Senhora Costa, e atirara em seguida contra uma mulher grávida que de uma janela vizinha observava o massacre, matando-a.  A evidência apresentada sugere que esse ato criminoso teve o propósito de impedir que o marido da Senhora Costa testemunhasse sobre o envolvimento do policial Fernandes em outro crime.  Desde o massacre, a Senhora Costa e seu filho vêm sendo vítimas de pressões e ameaças relacionadas com seus depoimentos.[5]

 

          12.     A petição também assinala, como parte dos atos atribuídos ao grupo “Meninos de Ouro”, a tortura sofrida por Arivone Gonçalves, o qual alegadamente fora levado ao gabinete de Pinto na Secretaria Estadual de Segurança Pública por três Meninos de Ouro (Ranulfo Alves Filho, Admilson Fernandes e Maurilio Pinto de Medeiros Jr.), em 2 de abril de 1993.  Os três policiais interrogaram, chutaram e seviciaram Gonçalves em cujas costas, rosto, língua, dentes e testículos aplicaram choques elétricos.[6]  Não obstante as queixas apresentadas por Gonçalves e por seu advogado, Gilson Nogueira (o principal objeto desta petição), não se procedeu a nenhuma investigação séria desses atos de tortura.

 

          13.     O terceiro exemplo de violência policial assinalado na petição refere-se aos alegados tiros disparados por Fernandes e Ranulfo para matar Wanderley Dantas Marques, em 18 de dezembro de 1993, em troca do pagamento de 200.000 cruzeiros.[7]  Ato seguido, Fernandes havia supostamente atirado sobre a aglomeração de espectadores da cena e matado Jeferson do Nascimento, um rapaz de 16 anos de idade.[8]  A família de Nascimento relatou esse fato a policiais no hospital, na delegacia de polícia local e na Secretaria de Segurança Pública.[9] Entretanto, somente dois anos depois se abriu o inquérito policial sobre o caso, quando Gilson Nogueira pressionou os promotores de justiça a que investigassem esse fato em conexão com muitos outros homicídios atribuídos a Fernandes.

          14.     De acordo com a petição, graças ao trabalho realizado por Nogueira e a pressões de ONGs, uma comissão especial federal fora formada para investigar os crimes cometidos pelos “Meninos de Ouro”.  A Comissão Especial ouviu mais de 100 testemunhas, investigou cerca de 30 casos, apresentou sete acusações contra integrantes do esquadrão “Meninos de Ouro” e dois contra Pinto, bem como apresentou dois relatórios nos quais declarou que policiais civis e funcionários da Secretaria Estadual de Segurança Pública eram responsáveis por todos os crimes investigados.

 

          15.     A petição declara que, em 7 de agosto de 1995 a Promotoria Pública havia finalmente indiciado Ranulfo e Fernandes por seus atos criminosos e solicitado que os mesmos fossem detidos com caráter preventivo, tendo sido ordenada medida nesse sentido.  Ranulfo, entretanto, fora posto em liberdade quatro meses depois e Fernandes tem sido autorizado com freqüência a sair da prisão.

 

          16.     A petição informa que posteriormente ao relatório de 18 de dezembro de 1995,[10] a Comissão Especial governamental dispersou-se, e os processos foram efetivamente postos de lado, dada à evidente falta de apoio institucional no âmbito do aparelho estatal e às ameaças de morte proferidas contra promotores de justiça que os desanimara de dar prosseguimento aos processos judiciais.  Até a data, ninguém foi condenado pela prática de qualquer dos crimes investigados pela Comissão Especial.

 

            B.        Violações específicas alegadas na petição

 

          17.     De acordo com a petição, o advogado e defensor dos direitos humanos Gilson Nogueira havia liderado investigações sobre os atos acima citados de homicídio e tortura praticados por agentes da polícia sob as ordens do Subsecretário de Segurança Pública, Maurílio Pinto de Medeiros (Pinto).  O advogado Gilson Nogueira prestara assistência profissional aos familiares e às vítimas sobreviventes de torturas e homicídios executados com a conivência do Estado e de outras violações dos direitos humanos alegadamente cometidas pelos “Meninos de Ouro”.  Além disso, havia pressionado o gabinete do Procurador-Geral de Justiça do Estado no sentido de que empreendesse investigações independentes sobre a ação em Natal do esquadrão da morte liderado pela polícia e atuara como assistente de acusação em vários desses casos.[11]  Nogueira também havia denunciado o clima de impunidade reinante em Natal que permitia aos “Meninos de Ouro” escapar reiteradas vezes de processo penal pelos atos criminosos praticados.

 

          18.     A petição alega que, em conseqüência dos esforços de Nogueira para trazer a público a violência policial, seu nome encabeçava uma “lista de execuções”.[12] Além disso, Nogueira recebera ameaças de morte que havia levado ao conhecimento das autoridades federais durante uma audiência promovida pela Comissão Federal de Direitos Humanos em Brasília, em 14 e 15 de agosto de 1995.

 

          19.     A petição assinala que, graças a essa audiência, Nogueira passara a receber proteção da polícia federal a partir de 6 de setembro de 1995.  Esta, entretanto, fora retirada em 3 de junho de 1996.

 

          20.     De acordo com a petição, em 20 de outubro de 1996, no Estado do Rio Grande do Norte, Nogueira foi abatido a tiros à porta de sua residência pouco depois da meia-noite.  A petição informa que foram disparados 17 tiros contra ele, por três pistoleiros, do interior de um automóvel Volkswagen Golf de cor vermelha, chapa número KCP171Z, cujo roubo fora denunciado três semanas antes por seu proprietário, Bruno Netto Ferraz.  Segundo a petição, os exames médicos atestaram que os ferimentos sofridos por Nogueira provieram de tiros disparados por uma espingarda de caça calibre doze e por um rifle de nove milímetros.

 

          21.     A petição alega que os três atiradores haviam fugido da cena do crime e incendiado o veículo roubado, na tentativa de destruir provas judiciais.

 

          22.     A petição informa que, em 28 de outubro de 1996, as autoridades federais de Brasília enviaram uma delegação para investigar o assassinato de Nogueira.  A comissão de deputados federais havia exortado as autoridades locais a que investigassem a morte de Nogueira e processassem seus responsáveis.

 

          23.     De acordo com a petição, o Procurador-Geral da República também havia visitado Natal e pressionado o Governador do Rio Grande do Norte no sentido de que suspendesse Pinto de suas funções de Subsecretário de Segurança Pública.  Esforços persistentes para impedi-lo de reassumir esse cargo vêm sendo realizados pelo Advogado-Geral da União para a Defesa dos Direitos do Cidadão.[13]

 

          24.     A petição registra que, não obstante essas visitas, os agentes federais haviam encerrado as investigações sobre a morte de Nogueira sem apontar suspeitos para pronúncia, apesar de existir evidência significativa do envolvimento de membros do esquadrão “Meninos de Ouro” no crime.  A petição alega que um dos principais suspeitos do assassinato de Nogueira é um policial civil, Jorge Luiz Fernandes.  Os investigadores federais o identificaram, porém as sindicâncias realizadas sobre o seu envolvimento no crime foram inadequadas, por não se haver seguido diferentes pistas nem interrogado testemunhas potencialmente importantes.

          25.     De acordo com a petição, como indício da impunidade e falta de prevenção por parte do Estado, Fernandes já se encontrava preso sob custódia aguardando julgamento por motivo de sua participação em outros homicídios, porém fora liberado no fim de semana em que ocorreu o crime, conforme documentado pelo registro oficial do centro de detenção e pelo depoimento de Pinto.  Autoridades judiciárias de Natal haviam permitido que Fernandes fizesse visitas à sua mulher para encontros íntimos, o que contraria a legislação brasileira, segundo a qual somente a reclusos é permitido que recebam visitas com essa finalidade (mas não é permitido sair da prisão).[14]  Com freqüência Fernandes deixava o lugar onde se encontrava preso, em horas não especificadas na competente ordem judicial, na companhia de Maurílio Pinto de Medeiros Jr. e do motorista particular do Subsecretário de Segurança Pública Medeiros Pinto.  Alega-se que, enquanto se encontrava fora da prisão, Fernandes e os demais “Meninos de Ouro” haviam ameaçado e intimidado testemunhas, a fim de impedi-las de depor e de informar sobre a ação criminosa da polícia.

 

            IV.       POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.         Posição do peticionário 

          26.     O peticionário alega que o Estado é diretamente responsável pelo assassinato de Gilson Nogueira, em virtude de nele estarem envolvidos agentes do Estado. Este omitiu-se de impedir a prática rotineira de atos de violência por parte de policiais, com isso permitindo que se criasse um clima de impunidade.  O Estado omitiu-se também de proceder a investigações minuciosas e rigorosas do assassinato de Nogueira, de submeter os responsáveis por esse ato a processo criminal e de proporcionar adequado e efetivo recurso judicial.

 

          27.     O peticionário alega que o Estado não cumpriu as obrigações assumidas nos termos da Convenção:

 

a)      porque retirou prematuramente a proteção policial prestada a Gilson Nogueira;

 

b)       porque permitiu que criminosos violentos integrantes do esquadrão da morte “Meninos de Ouro” prosseguissem no exercício de suas atividades policiais, gerando com isso o risco de que continuassem a abusar de sua autoridade sob a forma de tortura e assassinato daqueles que, como Nogueira, se atreviam a questionar seu comportamento;

 

 

c)       porque permitiu a liberação freqüente de Jorge Luiz Fernandes da prisão, sabendo que punha em perigo não só a vida das testemunhas dos crimes por ele cometidos como a daqueles que, a exemplo de Nogueira, trabalhavam para submetê-lo à justiça;

 

d)       porque se omitiu de investigar de forma rigorosa o envolvimento da polícia no assassinato de Nogueira; e

 

e)       porque deixou de proporcionar adequada proteção a testemunhas ou recurso judicial a vítimas da violência policial e às famílias destas.

 

          28.     No que respeita à admissibilidade, os peticionários alegam que se esgotaram os recursos internos, dado que as investigações foram encerradas antes da pronúncia de qualquer suspeito do crime cometido e que o envolvimento da polícia no assassinato de Nogueira havia sido descartado, sem que maior consideração lhe fosse dada.  O investigador da Polícia Federal Gilson Campos não questionou a credibilidade do álibi de Fernandes nem investigou devidamente o envolvimento da polícia no assassinato de Nogueira, declarando que não dispunha de recursos para realizar investigações minuciosas. Em 19 de junho de 1997, após sete meses de investigações, Campos e o promotor público local recomendaram que a juíza Talita de Borba Maranhão e Silva arquivasse o processo. Em conseqüência, não foram proferidas sentenças de pronúncia, e as investigações policiais foram encerradas.

 

          29.     Os peticionários afirmam que o arquivamento do processo constitui uma decisão definitiva, posto que nos termos da legislação brasileira o processo que tiver sido arquivado somente será reaberto se fatos novos forem descobertos, e que os peticionários não estão autorizados a reabrir casos arquivados.

 

          30.     Os peticionários declaram que, embora a decisão de arquivar um processo não seja necessariamente definitiva, ela pode, para os efeitos do artigo 46.l, b, ser considerada como “definitiva” no tocante à admissão de petição que interponha recurso contra violações da Convenção.  Uma vez que a petição foi apresentada dentro dos seis meses subseqüentes à data do arquivamento do processo, o peticionário afirma que a mesma atendeu às exigências do artigo 46 da Convenção.

 

          31.     O peticionário solicita que a Comissão declare que o Estado do Brasil violou os artigos 4 (direito à vida), 8 (direito a garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial) conjugado com o artigo 1.1 (obrigação de respeitar direitos) da Convenção e recomenda ao Estado que 1) reabra a investigação sobre a morte de Gilson Nogueira mediante sindicâncias minuciosas e rigorosas do envolvimento da polícia, em especial de Jorge Luiz Fernandes; 2) processe, nos limites máximos permitidos pela lei, os que forem direta e indiretamente responsáveis por essa morte; 3) proporcione proteção às pessoas que se disponham a testemunhar contra agentes da polícia e do Estado; e 4) pague indenização à família de Gilson Nogueira.

 

          32.     No que respeita ao Subsecretário de Segurança Pública, Pinto, os peticionários solicitam que a Comissão recomende a ação do Estado no sentido de 1) investigar seus antecedentes e revelar o seu envolvimento em atividades criminosas, bem como processá-lo de conformidade com a legislação brasileira; 2) destituí-lo do cargo de titular da Delegacia de Capturas, e 3) suspendê-lo das funções de policial.

 

          33.     Os peticionários também solicitam à Comissão que recomende ao Estado que 1) monitore a independência e a integridade do Poder Judiciário; 2) apóie os esforços realizados pela Procuradoria-Geral do Estado no sentido de pronunciar criminalmente e processar membros da polícia local; 3) suspenda imediatamente de suas funções os policiais estaduais envolvidos em ações criminosas e reverta as ordens judiciais que permitem a Jorge Luiz Fernandes deixar regularmente o local de sua detenção; e 4) esclareça e fortaleça o poder do Governo Federal nas controvérsias com autoridades estaduais.

 

          34.     Em 5 de agosto de 2000, os peticionários atualizaram a informação sobre a investigação e o processo criminal.  Segundo essas informações, em 1998 um dos atuais peticionários, James Cavallaro, na época diretor do escritório do Human Rights Watch (HRW) no Brasil e produtores de documentários filmados ligados à British Broadcasting Corporation (BBC) tiveram a oportunidade de encontrar-se com um ex-policial do Rio Grande do Norte.  Este ex-policial (cujo nome é reservado por motivo de segurança e que é chamado de “Luis”) proporcionou-lhes informação sobre policiais e funcionários civis da Secretaria de Segurança Pública, que teriam participado em ações atribuídas aos “Meninos de Ouro”, com os quais teria trabalhado vários anos como agente policial.

 

          35.     Essas informações indicaram também que Luis lhes havia revelado a existência de um local, distante de 10 a 15 quilômetros de Natal, onde os corpos das vítimas dos esquadrões de extermínio “Mão Branca” e “Meninos de Ouro” eram enterrados.  Luis também proporcionou detalhes sobre a conspiração para matar o advogado Gilson Nogueira e sobre seu assassinato.  De acordo com Luis, quatro integrantes do esquadrão da morte (dois de cada subdivisão do “Meninos de Ouro”) participaram no assassinato sob a direção do Subsecretário de Segurança Pública, Maurílio Pinto de Medeiros.  Os quatro participantes, segundo Luis, seriam Maurílio Pinto Jr., Otávio Ernesto, Jorge Luis Fernandes (conhecido como o Abafador) e o policial Admilson Fernandez.

 

          36.     O então Diretor do HRW e os jornalistas da BBC teriam se encontrado com Luis em diversas ocasiões, obtendo em cada caso maiores informações sobre o padrão das mortes e a localização do cemitério clandestino.  Luis informou também o nome das vítimas.  Os profissionais da BBC e do HRW verificaram esses nomes nos arquivos dos jornais locais e encontraram vários deles como mortos ou desaparecidos.  Os profissionais da BBC filmaram uma das entrevistas em que Luis apresentou ampla informação e, em particular, os detalhes do assassinato de Gilson Nogueira.

 

          37.     Segundo estas informações prestadas pelo peticionário, os profissionais do HRW e da BBC também entraram em contato com o repórter investigativo Caco Barcellos, da rede Globo de televisão, o qual por sua vez entregou essa informação às autoridades da Polícia Federal em Brasília.  Com base nos dados sobre a existência de um cemitério clandestino, combinados com a informação sobre a morte de Gilson Nogueira, a Polícia Federal obteve um mandado de busca para entrar na propriedade em que estaria localizado o local onde eram descartados os corpos.  O terreno pertencia ao ex-policial civil Otávio Ernesto.

 

          38.     Em 16 de novembro de 1998, agentes da Polícia Federal entraram no terreno de propriedade de Otávio Ernesto para executar esse mandado, acompanhados de jornalistas da rede Globo, da BBC e profissionais da Human Rights Watch.  Depois de uma manhã de busca infrutífera dos cadáveres, a polícia decidiu suspendê-la.  Os peticionários alegam que, com o método de busca empregado (de tipo geológico), teriam sido necessários 20 dias para rastrear completamente a área.  Em sua busca, os policiais encontraram armas e detiveram Otávio Ernesto por posse ilegal de armas.  Dias depois, Otávio Ernesto foi libertado.

 

          39.     As autoridades da investigação decidiram fazer uma perícia contrastando as armas apreendidas com os cartuchos deflagrados encontrados no lugar onde Gilson Nogueira havia sido assassinado.  A análise de balística demonstrou conclusivamente que os cartuchos correspondiam a uma dessas armas.  Com base nisto e na entrevista filmada com Luis, o Promotor de Justiça apresentou denúncia contra Otávio Ernesto, e foi ordenada sua detenção.  Até a data deste relatório, não havia sido marcada data para processá-lo.

 

          40.     Ainda segundo estas informações, em abril de 1999, a juíza Doutora Patrícia Gondim Moreira Pereira citou James Cavallaro, Diretor do HRW, para depor.  Nesse depoimento, ele informou os nomes dos policiais e civis que segundo Luis estavam envolvidos na morte de Gilson Nogueira, bem como detalhes da conspiração e assassinato e que Maurílio Pinto de Medeiros havia coordenado esse crime.

 

          41.     No dia seguinte, James Cavallaro concedeu uma entrevista ao Diário de Natal, na qual repetiu os dados que havia informado à juíza.  Em conseqüência, Maurílio Pinto de Medeiros instaurou uma ação civil contra Cavallaro, solicitando indenização por danos morais.  Também apresentou uma denúncia criminal no Ministério Público, o qual a acolheu, dando início a processo por crime de difamação, processo no qual foram ouvidas testemunhas em 4 de agosto de 2000.

 

          42.     Estas informações adicionais foram transmitidas ao Estado, solicitando-lhe, em 30 de agosto de 2000, resposta dentro de 30 dias, sem se haver recebido resposta alguma do Estado.

 

            B.        Posição do Estado

 

          43.     O Estado não refutou os fatos alegados na petição; contudo, numa carta sucinta, respondeu que há evidência de ação criminosa no caso de Gilson Nogueira, bem como indícios de seu autor, e que o respectivo processo se encontra atualmente reaberto em fase de “pronúncia” (indiciamento), havendo sido dado parecer contrário à decisão judicial pelo Ministério Público.[15]  (Ver na nota de rodapé 2 o texto integral dessa resposta.) O Estado não deu resposta com relação à informação adicional que lhe foi remetida em 30 de agosto de 2000.

 

         C.        Solicitação de medidas cautelares ligadas ao caso

 

          44.     Em 8 de novembro de 1996, a Comissão recebeu uma solicitação de medidas cautelares para proteger diversas autoridades judiciais e defensores dos direitos humanos no Rio Grande do Norte que constariam de uma lista de pessoas marcadas para morrer por obra dos “Meninos de Ouro”, em conseqüência da luta que travavam contra as ações desse grupo de extermínio, bem como de suas denúncias motivadas pelo assassinato de Gilson Nogueira, ocorrido um mês antes.  Listavam a respeito, a título de informação, 31 episódios de repressão, assassinato e torturas no âmbito policial que atribuíam aos “Meninos de Ouro” sob a orientação do Subsecretário de Segurança Pública do Estado.

 

          45.     A Comissão informou o Governo sobre essa denúncia em 13 de novembro de 1996, solicitando-lhe que formulasse seus comentários.  A Comissão não recebeu nenhuma resposta do Estado a essa solicitação.  Entretanto, em 17 de dezembro de 1996, o peticionário informou que fora constituída pelo Ministro da Justiça, do Governo Federal, e pelo Presidente do Conselho de Defesa da Pessoa Humana uma comissão para proceder ao levantamento da situação no Rio Grande do Norte, embora tal resolução não previsse a proteção das pessoas “marcadas para morrer”.

 

          46.     Em 19 de dezembro de 1996, a Comissão decidiu, em conformidade com o artigo 29.2 de seu Regulamento, solicitar medidas cautelares para proteger essa lista de pessoas ameaçadas que incluía o Procurador-Geral de Justiça do Estado, o Procurador de Justiça, cinco promotores de justiça e um delegado, bem como dois defensores dos direitos humanos do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular.

 

          47.     Em abril de 1997, a Comissão foi informada de que uma dessas pessoas havia renunciado ao cargo que ocupava na Câmara dos Deputados por não ter condições de trabalho seguras.  Informou-se também que não foram tomadas medidas de segurança, havendo ocorrido um atentado contra a casa de um dos defensores dos direitos humanos, Doutor Roberto Monte.  Além disso, o Subsecretário de Segurança Pública, Maurílio Pinto de Medeiros, presumido comandante do grupo de extermínio “Meninos de Ouro”, fora reintegrado nesse cargo, do qual havia sido temporariamente afastado.

 

          48.     A Comissão recebeu posteriormente novas informações, em 19 de maio e 16 de outubro de 1998 e em 19 de abril de 1999, que atualizavam a situação das investigações em torno dos processos judiciais relacionados com as ações suscitadas pelo referido pedido de medidas cautelares.  Essa informação sustentava e descrevia a situação de perigo que persistia no Rio Grande do Norte.  Entre outras informações prestadas, assinalavam que novas provas da ação dos “Meninos de Ouro” haviam sido descobertas e que vários defensores públicos e privados dos direitos humanos foram forçados a abandonar o Estado do Rio Grande do Norte por razões de segurança.

 

          49.     Em cada um desses casos, a informação foi transmitida ao Governo dentro do processo de solicitação de medidas cautelares, sem que se houvesse recebido qualquer resposta do Estado.

 

 

            V.        ANÁLISE DA JURISDIÇÃO E ADMISSIBILIDADE

 

            A.        Competência da Comissão ratione materiae, ratione tempori, ratione personae e ratione loci

 

          50.     A Comissão tem jurisdição ratione materiae (em razão da matéria), ratione loci (em razão do lugar) e ratione tempori (em razão do prazo), uma vez que o caso em tela refere-se a direitos amparados pelos artigos 4, 8, 25 e 1 da Convenção e que sua alegada violação ocorreu no Brasil, em 20 de outubro de 1996, posteriormente à ratificação da Convenção por esse país, efetuada em 25 de setembro de 1992.[16]

 

          51.     A Comissão tem jurisdição ratione personae (em razão da pessoa).  No que respeita à sua competência passiva ratione personae, os peticionários alegam que as violações foram cometidas por funcionários (membros da polícia estadual) do Governo do Brasil, um Estado membro.  O artigo 1.1 da Convenção assinala que todo desrespeito aos direitos garantidos pela Convenção passível de ser atribuído, segundo as normas do Direito Internacional, à ação ou à omissão por parte de qualquer autoridade pública constitui ato imputável ao Estado.[17]  Nos termos do artigo 28 da Convenção, quando se tratar de um Estado Federal, como o Brasil, o governo nacional responderá internacionalmente pelas ações dos agentes de entidades que formem a federação.

 

          52.     No tocante à sua competência ativa ratione personae, o artigo 26.1 do Regulamento da Comissão dispõe que “qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização pode apresentar à Comissão petições ... em seu próprio nome ou no de terceiras pessoas ...”.  Por conseguinte, as organizações não-governamentais CDHMP, HHRP e GIHRLS estão habilitadas a apresentar petição a favor de Nogueira.

 

B.      Exigências para admissibilidade

 

            i.          Esgotamento dos recursos internos

 

          53.     A disposição constante do artigo 46.1, a, da Convenção, segundo a qual é indispensável que os recursos da jurisdição interna tenham sido interpostos e esgotados, estipula que a matéria de todas as petições apresentadas à Comissão deverá ter sido submetida primeiramente aos tribunais nacionais.  Essa norma permite aos Estados solucionar controvérsias no âmbito de seus próprios sistemas jurídicos antes de submetê-las aos procedimentos internacionais.  Os peticionários assinalam que as investigações sobre a morte de Nogueira foram encerradas e que o processo foi arquivado.  Nos termos da legislação brasileira, uma vez que um processo tenha sido arquivado, somente poderá ser reaberto se novos fatos forem descobertos.  Por conseguinte, a Comissão deve analisar a) se o Estado invocou essa exceção e se o fez oportuna e subsidiariamente; e b) se os fatos novos incidem na admissibilidade do caso.

 

          54.     Em sua única resposta, o Estado não invoca a exceção de não esgotamento dos recursos internos.  Segundo o artigo 46.1, a, da Convenção, é necessário o esgotamento dos recursos da jurisdição interna para que uma petição seja admissível perante a Comissão.  Tal como assinalou a Corte Interamericana, esta é uma regra a cuja invocação o Estado pode renunciar de forma expressa ou tácita, mas que, para ser oportuna, deve ser invocada nas primeiras etapas do procedimento, à falta do que se poderá presumir a renúncia tácita do Estado interessado a dela valer-se.[18]  A Comissão considera que o silêncio do Estado constitui no presente caso uma renúncia tácita à invocação dessa exigência, que a releva de levar mais além a consideração de seu cumprimento, e declara por conseguinte o caso admissível no que respeita à dita exigência.

 

          55.     Como argumento de reforço e mesmo na hipótese de que a Comissão não considerasse como tal a “renúncia tácita” por parte do Estado a invocar oportunamente o não cumprimento da mencionada exigência, a Comissão considera que haveria tal cumprimento no caso das exceções estipuladas nas alíneas a, b e c do artigo 46.2 da Convenção, que permitem a admissão de casos quando 1) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; 2) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los.  Motivam a convicção da Comissão sobre essa hipotética situação os fatos indicados a seguir.

 

          56.     É fato incontestável que o Estado arquivou o caso e encerrou as investigações sete meses depois da morte de Nogueira, sem haver realizado esforços sérios para identificar e processar o culpado ou os culpados.

 

          57.     Também é fato incontestável que a reabertura do processo que o Estado menciona em sua nota de junho de 2000 se refere a apenas um dos acusados pelo assassinato de Gilson Nogueira e que essa reabertura não atendeu ao afã do Estado de impulsionar a investigação e o processo, mas, antes, foi forçada pelas diligências realizadas por defensores dos direitos humanos e jornalistas nacionais e estrangeiros que conseguiram que um ex-policial envolvido nas atividades do grupo de extermínio “Meninos de Ouro” se dispusesse a fornecer-lhes informação sobre essas ações e sobre o plano para assassinar Gilson Nogueira e seus autores.  Essa informação foi confirmada em boa parte pelo aparecimento da arma do crime no sítio de um dos policiais acusados.  Somente a ação desses defensores dos direitos humanos foi capaz de mobilizar a Polícia Federal (e não a estadual, nem os investigadores da Justiça Militar), conseguindo a reabertura parcial do processo.

 

          58.     É igualmente fato incontestável que a reabertura do processo só foi feita contra um dos cinco policiais diretamente envolvidos, já que a investigação se limitou a determinar a responsabilidade do policial civil Otavio Ernesto.  O Estado não empreendeu nenhuma outra diligência séria e efetiva para investigar a associação criminosa dos demais policiais e autoridades civis acusados com o que está sendo processado, embora no processo os defensores dos direitos humanos tivessem apresentado evidências ligando os mesmos ao ato criminoso cometido.

 

          59.     Houve atraso injustificado na tramitação deste processo devido, primeiramente, à falta de investigação adequada que levou ao seu arquivamento e, depois, à falta de investigação e de medidas judiciais contra a maioria dos responsáveis.  A Comissão recebeu informação de que até a data deste relatório não se havia fixado a data de julgamento do único acusado.

 

          60.     A Comissão considera que a exigência de esgotamento dos recursos internos está sujeita, nos termos do artigo 46.2, a, à existência de recursos internos efetivos.  A Comissão sustentou, no caso Fairén Garbi e Solís Corrales, que a mera existência teórica de recursos legais não é suficiente para a possível invocação dessa exceção, posto que os mesmos devem ser eficazes, não o sendo quando “na prática tropeçavam em formalismos que os faziam inaplicáveis ou porque as autoridades contra as quais eram dirigidos simplesmente os ignoravam, ou porque advogados e juízes executores eram por elas ameaçados e intimidados”.[19]

 

          61.     Tal como se depreende da informação constante da petição, na informação adicional e nas distintas solicitações de medidas cautelares, nunca contestadas pelo Estado, houve – e ainda há no caso – ineficácia da investigação por parte da Justiça Militar, da polícia estadual e da ação do Ministério Público e de autoridades judiciais no tocante a este caso.  A Comissão lembra que teve de pedir ao Estado que adotasse medidas cautelares para a proteção de altas autoridades da Procuradoria Pública, de promotores de justiça, de advogados e de defensores dos direitos humanos, todos eles ameaçados e intimidados. 

 

 

          62.     A intimação aparentemente prosseguiria sob a forma das ações judiciais instauradas contra dois advogados defensores dos direitos humanos por presumidos delitos de calúnia por eles cometidos ao repetirem para a imprensa os dados do depoimento que haviam prestado perante o juiz do caso.

 

            ii.         Prazo para apresentação

 

          63.     Nos termos do artigo 46.1, b, da Convenção, para que uma petição seja admissível, a mesma deve ser apresentada à Comissão dentro do prazo de seis meses contado a partir da data em que o peticionário tenha sido notificado da decisão definitiva. No presente caso, a Comissão entende que o arquivamento do processo constitui uma decisão definitiva para o efeito de fixar-se o prazo para a apresentação da petição.  Dado que esta foi apresentada à Comissão em 11 de dezembro de 1997, dentro do prazo de seis meses contado a partir da data em que o processo foi arquivado (19 de junho de 1997), a Comissão conclui que essa exigência foi cumprida.  Alternativamente, havendo a Comissão constatado que o peticionário se inclui em pelo menos uma das exceções consignadas no artigo 46.2 da Convenção, o prazo de seis meses fixado para a apresentação da petição não é aplicável nos termos do mesmo artigo 46.2.

 

            iii.        Duplicação de processos e res judicata

 

          64.     No tocante à exigência disposta no artigo 46.1, c, Convenção, segundo a qual a matéria da petição não deve estar pendente de outro processo de solução internacional, a Comissão não recebeu nenhuma informação que indicasse a existência de tal situação.  A Comissão entende, portanto, que essa exigência foi cumprida.  Conclui, ademais, que foi cumprida a exigência constante do artigo 47, d, dado que a presente petição não é substancialmente reprodução de outra anterior já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional.

 

            iv.        Natureza das violações

 

          65.     O artigo 47, b, da Convenção declara que a Comissão considerará como inadmissível toda petição ou comunicação que “não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção”.  O peticionário alega que o Estado, por intermédio de seus agentes, assassinou Nogueira, violando o direito deste à vida (artigo 4), e que ao omitir-se de proceder à adequada investigação do crime violou o direito de Nogueira às garantias judiciais (artigo 8).  Finalmente, os peticionários afirmam que, ao permitir que crimes permanecessem impunes, o Estado propiciou um clima de impunidade que levou a violações dos direitos humanos, com a transgressão do direito à proteção judicial e da obrigação de respeitar os direitos estipulada na Convenção (artigo 1).  Se provados verdadeiros, os fatos alegados pelos peticionários constituiriam violações de direitos amparados pela Convenção.  Por conseguinte, a Comissão conclui que essa exigência foi cumprida.

 

          66.     A Comissão conclui que é competente para considerar do presente caso e que a petição atende às exigências de admissibilidade, de conformidade com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana e com os artigos 1 e 20 de seu Estatuto.

 

            A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 

DECIDE:

 

1.       Declarar, sem prejulgar o mérito do caso, que esta petição é admissível com relação aos fatos denunciados e no que se refere ao artigo 4 (direito à vida), artigo 8 (direito a garantias judiciais) e artigo 25 (direito a proteção judicial), em conjunção com o artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), todos os quais da Convenção.

 

2.       Transmitir este relatório ao Estado e aos peticionários.

          3.       Colocar-se à disposição das partes interessadas com vistas a lograr uma solução amistosa, em conformidade com o artigo 48, f, da Convenção.

 

          4.       Dar prosseguimento à tramitação do presente caso com a análise dos méritos da petição.

 

          5.       Publicar este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

          Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 3 dias do mês de outubro de 2000.  (Assinado):  Primeiro Vice-Presidente, Claudio Grossman; Segundo Vice-Presidente, Juan Méndez; Comissionada: Marta Altolaguirre e Comissionados: Robert K. Goldman, Peter Laurie e Julio Prado Vallejo.



* O membro da Comissão Hélio Bicudo, de nacionalidade brasileira, não participou da discussão nem da votação sobre este caso, em conformidade com o disposto no artigo 19.2, a, do Regulamento da Comissão.

[1] A partir de 25 de agosto de 2000 o Centro de Justiça Global foi incluído como peticionário, com a anuência dos demais peticionários.

[2] A resposta do Estado diz textualmente o seguinte:

Com referência ao caso 11.852 (Gilson Nogueira de Carvalho), informo Vossa Excelência de que, segundo dados recebidos recentemente da Procuradoria-Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, o processo que visa a solucionar a morte do advogado Gilson Nogueira de Carvalho encontra-se em fase de pronúncia, o que equivale ao reconhecimento por parte da Justiça de que há elementos de convicção quanto à existência do crime e indícios de autoria.  Informo, por outro lado, que, devido ao parecer contrário do Ministério Público à decisão judicial, caberá ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte decidir sobre o seu provimento.

[3] Em petições relacionadas com o caso, solicitando medidas cautelares, os peticionários mencionam 31 casos de matanças, assassinatos, maus tratos e tortura atribuídos a este grupo de extermínio denunciado.

[4] No laudo sobre a investigação levada a efeito pela Procuradoria-Geral de Justiça, datado de 31 de julho de 1995, registra-se que Jorge Luis Fernandes (conhecido como Jorge Abafador) é acusado de ser o responsável material único ou em associação com terceiros por cinco homicídios e três tentativas de homicídio e por quatro casos de lesões graves.

[5] Depoimento de Maria Lúcia Costa prestado em 8 de novembro de 1995, no curso do Processo No 5.030/95, perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e posteriormente reiterado, em 6 de outubro de 1996, na Assembléia Legislativa Estadual do Rio Grande do Norte, perante o Presidente da Comissão Federal de Direitos Humanos da Câmara Federal de Deputados.

[6] Depoimento de Arivone Gonçalves assinado por este e por seu advogado, Gilson Nogueira, e confirmado numa entrevista entre Gonçalves e um representante do peticionário.

[7] Equivalente na época a US$770,00.

[8] Human Rights Watch/Americas em 1997.

[9] Entrevista de Jeane do Nascimento, realizada em 13 de agosto de 1997.

[10] Neste relatório a Comissão Especial declarou que os policiais civis sob investigação faziam parte do esquadrão da morte “Meninos de Ouro”, um grupo informal de vigilantes diretamente ligado à Subsecretaria de Segurança Pública.

[11] Segundo os peticionários, nos termos dos artigos 268-273 do Código Penal Brasileiro, é permitido à vítima ou a seus familiares designar um assistente de acusação.  Os peticionários declaram que este é um dos recursos de que se valem tanto as organizações de direitos humanos como aqueles que dispõem de suficientes recursos financeiros para pressionar o sistema judicial brasileiro, notoriamente moroso, a que atue com maior presteza. Essa pessoa (que pode ser a própria vítima) pode apresentar argumentos acerca das provas, solicitar a formulação de perguntas às testemunhas, tomar parte no debate oral do caso e participar dos recursos interpostos pela promotoria pública ou interpor seus próprios recursos.

[12] A Comissão solicitou medidas cautelares ao Estado para proteger essas pessoas que estavam sofrendo ameaças, tal como se descreve neste relatório de admissibilidade, na seção sobre solicitação de medidas cautelares.

[13] A Comissão recebeu informação, não refutada pelo Governo, em agosto de 2000, de que essa pessoa fora reinstalada nesse cargo.

      [14].  Consta do expediente cópia do ofício 108/96, de 31-10-96, do juiz de direito titular da vara criminal, que autoriza Jorge Luiz Fernandes a sair acompanhado de escolta duas vezes por semana, durante seis horas, para encontros íntimos. Consta também o ofício da Procuradoria-Geral de Justiça da Comarca de Natal (RN) acatando o pedido formulado pelo acusado de permissão para essas saídas, datado de 31 de julho de 1995.

      [15].  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 164.

      [16].  A Comissão observa que a Assembléia Geral da OEA, em 5 de junho de 2000, resolveu “solicitar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que continue dispensando a devida atenção à situação dos defensores dos direitos humanos nas Américas”, “preocupada com a presença nas Américas de situações que, direta ou indiretamente, impedem ou dificultam as tarefas das pessoas, grupos ou organizações que trabalham pela promoção e proteção dos direitos fundamentais …” [AG/RES. 1711 (XXX-O/00)].

      [17].  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, parágrafo 164.

      [18].  Corte IDH.  Caso Godinez Cruz.  Exceções Preliminares.  Sentença de 26 de junho de 1987.  Série C No 3, parágrafos 90 e 91.  Assim diz: ... “90.  Dos princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos resulta, em primeiro lugar, que se trata de uma regra à cuja invocação o Estado que tem o direito de invocá-la pode renunciar de forma expressa ou tácita, o que já foi reconhecido pela Corte em oportunidade anterior.”  (Ver Asunto de Viviana Gallardo y otras, Decisão de 13 de novembro de 1981, No G 101/81, Série A, parágrafo 26).  Em segundo lugar, para ser oportuna, a exceção de não esgotamento dos recursos internos deve ser invocada nas primeiras etapas do procedimento, à falta do que se poderá presumir a renúncia tácita a invocá-la por parte do Estado interessado.  Em terceiro lugar, o Estado que alega o não esgotamento tem a seu cargo a indicação dos recursos internos que devem ser esgotados e de sua efetividade. 9l.  “Ao aplicar os princípios acima ao presente caso, a Corte observa que o expediente evidencia que o Governo não invocou a exceção em tempo oportuno, quando a Comissão começou a conhecer da denúncia que lhe foi interposta, e que sequer a fez valer tardiamente durante todo o tempo em que o assunto foi corroborado pela Comissão...”.

      [19].  Corte IDH.  Caso Fairén Garbi y Solís Corrales, Sentença de 15 de março de 1989.  Série C, Nº 6, parágrafo 102.