|
RELATÓRIO
Nº 39/02 ADMISSIBILIDADE PETIÇÃO
12.328 ADOLESCENTES
CUSTODIADOS PELA FEBEM BRASIL 9
de outubro de 2002 I.
RESUMO 1.
No dia 5 de setembro de 2000, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, apresentou ante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (doravante “a Comissão” ou “a CIDH”)
uma petição contra a República Federativa do Brasil, (doravante “Brasil”,
“o Estado” ou “o Estado Brasileiro”). A referida petição denunciou
violação dos artigos 4, 5 , 19, 8 e 25 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (doravante “a Convenção” ou “a Convenção
Americana”), sobre direito à vida, direito à integridade física,
direito à proteção especial à infância, direito às garantias judiciais
e direito à recurso judicial, todos em relação ao artigo 1.1
da Convenção Americana, bem como a violação
do artigo 13 do Protocolo de San Salvador, sobre direito à educação,
em prejuízo dos adolescentes acusados
de cometerem infrações penais, custodiados
nas unidades da Fundação do Bem Estar do Menor – FEBEM (doravante
“a FEBEM”), no Estado de São Paulo. 2.
O peticionário denunciou o Estado Brasileiro pela situação em que
se encontravam os adolescentes encarcerados no sistema penal paulista e a
violação dos direitos destes que sistematicamente vinham sendo vítimas de
torturas, maus tratos e espancamentos. Demais disso, a situação degradante
a que viviam expostos tinha dado causa a várias brigas internas, rebeliões e fugas que terminavam muitas vezes de forma
violenta, com graves lesões corporais e até morte dos adolescentes
custodiados. 3.
O Estado, quedou-se silente às denúncias de torturas e maus tratos,
bem como sobre a morte dos adolescentes mencionados na exordial, alegando tão
somente que “a morosidade atribuída não pode ser creditada à negligência
do Governo Brasileiro, por intermédio de seu Poder Judiciário, uma vez que
a Constituição Federal Brasileira estabelece recursos judiciais que visam
garantir o direito à ampla defesa e ao devido processo legal”. Aduziu que
o Estado de São Paulo iniciou processo de transição da FEBEM e trouxe à
colação cópias de projetos que, informa, estão sendo desenvolvidos nesta
Fundação. 4.
A Comissão, em conformidade com os artigos 46 e 47 da Convenção,
decidiu declarar a admissibilidade da petição, relativamente à eventuais
violações dos artigos 1, 4, 5, 8, 19 e 25 da Convenção e artigo 13 do
Protocolo de San Salvador. II.
TRÂMITE ANTE A COMISSÃO 5. Na data de 10 de outubro de 2000 a Comissão enviou carta ao Estado informando-lhe da abertura do caso ao tempo em que concedeu um prazo de 90 dias para que este enviasse as informações que entendessem pertinentes ao caso, tudo conforme o Regulamento vigente. No dia 26 de outubro o Estado atravessou comunicação onde pedia que o prazo de 90 dias passasse a ser contado a partir do dia 19 de outubro, data do recebimento da nota pela Missão Permanente do Brasil junto à OEA, o que foi deferido pela Comissão em 1° de novembro de 2000. Em 19 de janeiro de 2001 o Estado solicitou reenvio de partes da petição que não estavam nítidas para leitura, bem como solicitou a extensão do prazo para 90 dias. Em 23 de janeiro do mesmo ano a Comissão enviou nota informando ao Estado da concessão do prazo de 90 dias solicitado. Em 27 de fevereiro a Comissão recebeu nota do Estado onde este encaminhava em anexo cópia do ofício GS n° 019/2001 do Secretário da Assistência e Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo, onde prestava esclarecimentos sobre a denúncia apresentada pelo peticionário. Em 15 de março de 2001 a Comissão enviou nota ao peticionário onde pedia suas observações à resposta do Estado, no prazo de 45 dias. Em 30 de abril de 2001 o peticionário requereu a prorrogação do referido prazo. Em 2 de maio a Comissão prorrogou o prazo concedido por mais 45 dias. Em 18 de junho de 2001 o peticionário apresentou suas observações por fax. Em 20 de junho a Comissão recebeu o original da referida petição e em 27 de junho recebeu documentos anexos. Em 16 de julho de 2001 a Comissão concedeu ao Estado o prazo de 45 dias para manifestar-se sobre a razões do peticionário, sem que aquele apresentasse informações até a presente data. III.
POSIÇÃO DAS PARTES A.
Do Peticionário 6.
O peticionário alegou que o Estado do Brasil violou e vem violando vários
direitos estabelecidos na Convenção Americana e Protocolo de San Salvador,
em face dos adolescentes custodiados nas unidades da FEBEM do Estado de São
Paulo. Em sua denúncia o peticionário alegou violações a que estão
expostos os referidos adolescentes nas Unidades: Complexo Imigrantes, Centro
de Observação Criminológica-COC, Cadeião de Santo André, Complexo
Tatuapé, Unidade de Referência Terapêutica-CT, Cadeião de Pinheiros,
Penitenciária de Parelheiros, Franco da Rocha e Unidade de Atendimento
Inicial-UAI. 7.
O peticionário denunciou que os adolescentes custodiados nas
Unidades da FEBEM são mantidos em celas superlotadas e insalubres, sem
divisão por idade, compleição física ou gravidade do ato penal praticado.
Nessas celas são obrigados a dormir no chão ou a dividir o mesmo colchão
com outros adolescentes. Não dispõem de lençóis ou roupas adequadas.
Durante o dia são obrigados a ficar sentados nas celas sem poderem levantar-se
ou movimentar-se, demonstrando o confinamento carcerário a que estavam
submetidos. Demais disso, não gozam de nenhum atendimento médico, pedagógico,
psicológico ou de lazer. 8.
O peticionário assinalou que as Unidades da FEBEM não atendem aos
requisitos estabelecidos pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente,
Lei 8.069/90, que regulamenta o sistema legal de proteção das crianças e
dos adolescentes no Brasil. A estrutura das unidades assemelham-se a presídios
para adultos. As estruturas encontram-se em péssimo estado de conservação,
com as redes hidráulica, sanitária e elétrica comprometidas. A alimentação
dos adolescentes ali confinados não é feita
com as condições de higiene adequadas. 9.
Alegou que no Complexo do Imigrantes foi constatado pela Inspeção
Judicial feita em agosto de 1999 “a
superlotação existente no local, que com capacidade para 320 adolescentes
abrigava cerca de 1.400; sendo que no espaço físico de cada quarto (que
varia entre 8 e 9 m), dormiam cerca de doze adolescentes amontoados”.
Nessa mesma época a equipe de Vigilância Sanitária não encontrou nenhuma
roupa de cama ou toalhas e foi destacado
que os adolescentes não consumiam água filtrada, privilégio dos monitores.
A equipe Epidemiológica apresentou relatório onde explicitava as razões
da gravidade dessa unidade, alertando para o risco de doenças infecciosas
da pele. 10.
O Centro de Observação Criminológica, segundo informou o peticionário,
era uma unidade vinculada ao Complexo Carandirú, penitenciária de adultos
e foi objeto de duas representações feitas pelo Ministério Público
exigindo a transferência dos adolescentes para outra unidade uma vez que
essa não atendia às exigências
do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. 11.
O peticionário assinalou que o Cadeião de André foi visitado por
membros do Ministério Público, Especialistas e por Procuradores em
dezembro de 1999 que concluíram que essa unidade era completamente imprópria
para custodiar adolescentes. Em abril de 2000 uma equipe de representação
judicial efetuou outra visita
nessa unidade e também constatou “que a dinâmica da casa é
absolutamente perversa contribuindo para a crescente instabilidade observada”,
bem como era “inadequada para a permanência de qualquer ser vivo”.
Nessa visita constataram a existência de “celas de seguro”. 12.
Sustentou o peticionário que, em visitas feita à Unidade Franco da
Rocha em julho de 2000, as autoridades judiciais constataram que os
adolescentes ficavam vários dias trancados em celas de isolamento, sem
atendimento médico e psicossocial, sem atividades educacionais ou culturais.
O peticionário trouxe à colação relatório feito pelo relator das Nações
Unidas para a Tortura, quando de sua visita a essa Unidade, que também dava
conta, segundo o peticionário, da situação de gravidade e risco dessa
Unidade. 13.
Assinalou o peticionário que o Complexo de Tatuapé também sofreu várias
visitas de inspeção. Segundo relatório da Caravana de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados, a estrutura elétrica, hidráulica e sanitária do prédio
estava comprometida; os adolescentes eram mantidos em celas com janelas
lacradas e passavam a maior parte do tempo ociosos em um pátio. Alguns
apresentavam grave problema de saúde e quase todos tinha doenças de pele. 14.
O peticionário também denunciou
as torturas que vitimavam os jovens. Foram anexados à presente denúncia
vários depoimentos de adolescentes que foram torturados, relatórios feitos
pelo Relator da ONU contra a Tortura e pela Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados, Relatório Epidemológico, Sanitário, Declarações
dos adolescentes e mesmo Exames de Corpo de Delito, que davam conta que as
violações denunciadas eram sistemáticas e perpetradas por prepostos da própria
FEBEM. Não obstante a larga quantidade de provas,
os peticionários denunciaram a ineficácia do poder judiciário
interno para resolver os problemas elencados. 15.
Segundo o peticionário, em agosto de 1999, na Unidade Complexo
Imigrantes, houve uma rebelião onde 50 adolescentes custodiados fugiram e
69 ficaram feridos. Nesse período o Ministério Público de São Paulo
tomou declarações dos adolescentes feridos, entre eles Márcio
de Souza, Fábio da Silva Biller,
Leandro Venâncio Garcia, Diego
Briessa Rodrigues Soares, Wellington
Barbosa Sandoval, Renato Campos
Carneiro da Silva, Reinaldo
Zanotti e Francisco Pereira, onde relataram que após o incidente, “depois
de despidos, foram submetidos a espancamentos e intenso sofrimento físico e
moral” pelos prepostos dessa Unidade. Ainda segundo a Ata da Inspeção
Judicial, cerca de 70 adolescentes informaram que nos dias anteriores ao
começo da referida rebelião, foram agredidos por funcionários da FEBEM,
com artefatos de madeira, ferro
e borracha e efetivamente vários adolescentes apresentaram marcas de lesões
corporais. Nessa mesma Unidade, no mês
de outubro do mesmo ano, ocorreu a mais violenta rebelião da FEBEM
onde 300 custodiados fugiram, 59 pessoas ficaram feridas e 4 adolescentes
foram barbaramente assassinados, como será mencionado abaixo. 16.
Segundo o peticionário, na Unidade Caldeirão de Santo André, os
adolescentes egressos do Complexo Imigrantes, quando aí chegaram foram
submetidos a sessões de torturas pelos funcionários dessa Unidade.
Em Representação feita pelo Ministério Público em dezembro de
1999, foi narrado tal episódio e mencionado a existência de 90 laudos de
Exame de Corpo de Delito que comprovavam tais agressões, foram inclusive
anexadas denúncias correspondentes aos adolescentes Alexandre
de Oliveira, Anderson Ferreira
Rodriguez, Thiago dos Santos Godoy
e Celso Olimpo, vítimas de tais
atos. 17.
De acordo com o peticionário, na Unidade Cadeião de Pinheiros foi
constatado em novembro de 1999, após visita da Promotoria e legistas que vários
adolescentes tinham sofrido espancamento. Estes informaram que em 15 de
novembro os monitores invadiram suas celas e os espancou com pedaços de
madeira e ferro. Na época foram tomados os depoimentos e realizados exames
de corpo de delito dos adolescentes: Adriano
Silva Lima, Marcelo Dutra Damaceno,
Wendel Rodrigo Felix, Fernando
Alves dos Anjos, Marcelo Gomes de
Lima, Jeferson Luis Vicente da
Silva. Em nova visita feita em janeiro de 2000, os promotores tomaram
declarações de vários adolescentes que sofreram lesões por espancamentos
tais como: Cícero Esmerio Bezerra
Sales, Rodrigo Luiz Ferrari e Francisco
David Alves da Silva. 18.
O peticionário alegou em sua petição que o Ministério Público
Estadual tentou suasoriamente reverter a situação de menoscabo sofrida
pelos adolescentes, quando inúmeras vezes instaurou
Processos Administrativos com pedido de medida liminar e quando por
duas vezes ingressou com Ação Civil Pública. Por seu turno, os Juizes de
Primeira Instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, várias vezes
tutelaram esses pedidos e determinaram o fechamentos das Unidades
Correcionais da FEBEM. Não obstante isso, o Tribunal de Justiça do Estado,
cassou todas as liminares e a Procuradoria contestou e recorreu das Ações
Civis Públicas de 1992 e 2000 que
atualmente encontram-se respectivamente, aguardando julgamento
no Superior Tribunal de Justiça - STJ e Supremo Tribunal Federal -
STF e suspensa, daí por que os peticionários informavam que os recursos
internos eram ineficazes para garantir a proteção dos direitos dos
adolescentes da FEBEM. 19.
Segundo o peticionário, todos os fatores acima mencionados
“levam a uma situação de
instabilidade e medo generalizados, que tem produzido grande número de
revoltas, fugas e brigas internas” o que causou a morte bárbara de 4
adolescentes em outubro de 1999 no Complexo Imigrantes: AméricoNonato
de Oliveira, Adriano Dias Brandão,
Robson Sena Anastácio e outro
jovem que nunca foi identificado pois teve a cabeça e o membro inferior
decepados e o corpo carbonizado. No mesmo mês o adolescente Reginaldo Martins dos Santos foi morto com um tiro disparado por
outro adolescente, dentro da Unidade da FEBEM de Ribeirão Preto. Em
dezembro do mesmo ano, no Cadeião de Santo André, o adolescente George Rodrigues Ferreira foi assassinado brutalmente por outros
custodeados, com golpes de estilete e, depois de pendurado numa grade, teve
uma lança atravessada no peito. 20.
Ainda segundo o peticionário, “ao
manter os adolescentes sob sua custódia em condições subumanas, que
previsivelmente geraram revoltas e
situações de violência interna, e ao não oferecer as condições
adequadas de segurança a esses menores, o Estado passou a ser responsável
pelas mortes que ocorreram em decorrência dessas rebeliões em diversas
unidades da FEBEM/SP”. 21.
O peticionário considerou que o Estado Brasileiro violou a Convenção Americana em seus artigos 4 (direito à
vida), 5 (direito à integridade física), 19 ( direito à proteção
especial à infância, interpretado de acordo com os artigos 3.1, 3.3, 19.1,
25, 37 (b), (c) e (d) e 40.1 da Convenção sobre os Direitos da Criança
das Nações Unidas), 8 (garantias judiciais) e 25 (direito à recurso
judicial); e o Protocolo de San Salvador em seu artigo 13 (direito à educação),
todos em relação com o artigo 1.1 da Convenção Americana. B.
Do Estado 22.
Em sua resposta datada de 27 de fevereiro de 2001, o Estado juntou Ofício
confeccionado pelo Secretário de Assistência e Desenvolvimento Social de São
Paulo, onde este prestava esclarecimentos sobre a denúncia e ao mesmo tempo
anexava vários projetos que alegava estarem sendo desenvolvidos no âmbito
da FEBEM. 23.
O Estado em sua resposta disse que as alegações do peticionário não
são verdadeiras porquanto os projetos juntados comprovavam
a modificação no atendimento aos jovens da FEBEM. Afirmou ainda que
o Estado não pode ser responsabilizado pela morosidade do Poder Judiciário
uma vez que existe no ordenamento jurídico
recursos judiciais que garantem o direito à ampla defesa e ao devido
processo legal de qualquer pessoa física ou jurídica. 24.
De outra forma, o Estado negou que as situações de maus tratos
refletissem um padrão da FEBEM e afirmou que essa instituição goza de
relações “intra e interpessoais” exemplares, fundamentadas em
atividades socioeducativas, culturais e de lazer e que seus servidores
desempenham suas funções com zelo. Acrescentou que cabe ao Ministério Público
denunciar e processar servidores acusados de tortura e maus tratos e ao
Poder Judiciário aplicar as sanções cabíveis. 25.
O Estado informou que procedeu à “demissão de 553 servidores
inadequados ou por envolvimento em pratica de maus tratos”; contratou por
concurso público 112 Agentes de Proteção; instaurou sindicâncias para
investigar os casos de maus tratos, tumultos e rebeliões e para apurar a
veracidade dos fatos. 26.
O Estado também assinalou a respeito de uma série de medidas
tomadas com um “novo modelo de gestão do equipamento social, bem como a
implantação de uma intervenção sócio-educativa que garanta os direitos
fundamentais do adolescente”. Ainda segundo o Estado, desde 1999 foram
inauguradas novas Unidades; foi criado um programa de controle de qualidade;
foi criado um sistema de Ouvidoria para atender adolescentes, seus
familiares e funcionários; foram criados cursos de
qualificação e requalificação de funcionários; foram contratados
1750 funcionários por concurso público, entre médicos, psicólogos,
assistentes sociais, educadores, professores, agentes de proteção. Informa
ainda que a FEBEM possui uma fábrica de bolas onde os adolescentes recebem
pagamento por unidade de bola confeccionada e ainda foi criado o Conselho de
representantes das Unidades formado por adolescentes, familiares, funcionários,
representantes do município e de entidades da sociedade. IV.
ANÁLISE SOBRE A ADMISSIBILIDADE A.
Competência ratione personae,
ratione materiae, ratione temporis, ratione
loci. 27.
De acordo com o artigo
44 da Convenção Americana e 23 do Regulamento da CIDH, o peticionário,
como entidade não governamental legalmente reconhecida, tem legitimidade
para apresentar petição ante a Comissão, referente a presumidas violações
dos direitos estabelecidos na Convenção Americana. Relativamente ao Estado,
o Brasil é parte da Convenção Americana. O peticionário apontou como
presumidas vítimas os adolescentes custodiados por infrações penais nas
Unidades da Fundação do Bem Estar do Menor – FEBEM,
do Estado de São Paulo, que a Comissão entende podem ser
identificáveis em momento oportuno[1],
cujo o Estado Brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir os direitos
constantes na Convenção. Dessa forma, a Comissão tem competência ratione
personae para examinar a denúncia. 28.
A Comissão tem competência ratione
materiae por tratar-se de
presumíveis violações a direitos humanos protegidos pela Convenção
Americana. De outra forma, com base no artigo 19 (6) do Protocolo de San
Salvador, a CIDH tem competência para analisar fatos advindos da violação
ao artigo 13 desse mesmo instrumento. 29.
A Comissão tem competência ratione
temporis porquanto os fatos alegados aconteceram quando a obrigação de
respeitar e garantir os direitos estabelecidos pela Convenção já se
encontrava em vigor para o Estado, uma vez que este ratificou a Convenção
Americana em 25 de setembro de 1992. Relativamente às obrigações advindas
do Protocolo de San Salvador, a Comissão tem competência porque o
Brasil ratificou o Protocolo em 21 de agosto de 1996, sendo que dito
instrumento entrou em vigor em 16 de novembro de 1999. 30.
A Comissão tem competência ratione
loci porque os fatos alegados ocorreram no Estado de São Paulo, Estado
membro da República Federativa do Brasil, país que ratificou a Convenção
Americana. B.
Requisitos de Admissibilidade da petição de acordo com o artigo 46
da Convenção Americana a.
Esgotamento dos recursos internos 31.
O esgotamento dos recursos internos é um requisito de
admissibilidade que a Comissão deve considerar no momento da análise de
admissibilidade ou não de uma denúncia. Na exordial, o peticionário
elencou exaustivamente todos os remédios jurídicos utilizados pelo Ministério
Público Estadual de São Paulo – quem tem o dever de tutelar os direitos
das crianças e adolescentes no referido Estado,
com o fim de fazer cessar as alegadas violações de direitos
fundamentais a que estavam sendo submetidos os adolescentes custodiados pela
FEBEM. 32.
O Ministério Público ingressou com Ação Civil Pública no ano de
1992 em nome dos adolescentes custodeados na Unidade Imigrantes da FEBEM
onde denunciou todas a irregularidades existentes nesse Complexo e que
colocava em risco a vida e integridade física desses adolescentes. Em
agosto de 1995 foi proferida sentença de Primeira Instância condenando a
FEBEM a “promover reformas para sanar gravíssimas irregularidade
constatadas (falta de atendimento médico, psico-social, condições mínimas
de higiêne, salubridade, habitabilidade, superlotação etc.”, num prazo
de 90 dias. Em 1997, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a
referida decisão. A FEBEM interpôs Recurso Especial e Extraordnário para
reformar o acórdão, que, segundo consta das informações do peticionário,
encontram-se aguardando julgamento respectivamente no Superior Tribunal de
Justiça e no Supremo Tribunal Federal. No ano de 2000 foi interposta a
segunda Ação Civil Pública a favor dos adolescentes custodeados pela
FEBEM. Segundo os peticionários a demanda estava suspensa aguardando
eventual proposta de acordo. 33.
No ano de 2000 o Ministério Público mais uma vez ingressou com Ação
Civil Pública para impedir transferência dos adolescentes para o Presídio
de Palheiros, inadequado para o fim a que se destinava, segundo laudo da
equipe técnica do juízo. Liminar foi concedida em abril de 2000 vindo a
ser suspensa no mês seguinte. Os adolescentes foram transferidos e, segundo
o peticionário, continuam custodiados nesse presídio até a data do início
dessa demanda. A Referida ação está atualmente suspensa. 34. emais disso, o Ministério Público ingressou na Justiça com vários Processos Administrativos com pedidos liminares que até o ano de 2000 somavam a 8 (oito).
35.
De acordo com os peticionários, as liminares pedidas tinham o
objetivo de sanar as
irregularidades denunciadas nas Unidades da FEBEM, tais como superlotação,
falta de higiene, atendimento médico e psicológico, educacional,
profissionalizante e de atividades físicas, convivência de adolescentes de
diferentes idades, compleição física e graus de periculosidade, e adequar
o tratamento dos adolescentes às exigências da legislação nacional e
internacional, a fim de evitar os conflitos internos, rebeliões violentas e
fugas, que colocavam em risco a vida e a integridade física dos custodiados.
Nesses procedimentos, os juizes de Primeiro Grau concederam Liminares que
foram posteriormente cassadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo e até o ano de 2000 nenhum desses procedimentos havia obtido decisão
definitiva. 36.
Aduziu ainda o peticionário que “os recursos internos se mostram
ineficazes para garantir a proteção dos direitos dos adolescentes de forma rápida e eficaz. Há padrão demonstrado que o
Tribunal de Justiaça cassa todas as liminares concedidas em primeira instância
para regularizar a situação dos adolescentes sob o argumento de “segurança
pública”. Demais disso, concluem que “ficou demonstrado que as Ações
Judiciais que tiveram o objetivo de
garantir os direitos mais básicos desses adolscentes demoraram de tal forma
a serem julgadas que não se foi possível evitar os eventos que causaram as
mortes, as lesões corporais, as torturas físicas e psiquícas de inúmeros
adolescentes”. 37. A CIDH nota que durante esse lapso de tempo entre a primeira Ação Civil Pública datada de 1992 e a propositura da presente petição protocolada em 2000, haviam ocorrido várias rebeliões, fugas de adolescentes e a morte de 6 (seis) jovens o que demonstra a ineficácia dos recursos internos. 38.
Inicialmente, cumpre ressaltar, que o Estado Brasileiro, nas
oportunidade que teve de manifestar-se sobre a demanda ora em comento não
argüiu a exceção preliminar de Esgotamento dos Recursos Internos, como
meio de opor-se à admissibilidade da petição, antes, quedou-se inerte, daí
por que se pode presumir a renúncia tácita a valer-se da exceção de não
esgotamento dos recursos internos. 39.
A respeito a Corte Interamericana tem assinalado que “a exceção
de não esgotamento dos recursos internos, para ser oportuna, deve plantear-se
nas primeiras etapas do procedimento, a falta do qual poderá presumir-se a
renúncia tácita a valer-se da mesma por parte do Estado interessado”[2].
Dessa forma, a CIDH conclui que o Estado renunciou tacitamente a este
requisito. b.
Prazo para Apresentação 40.
Na petição sob estudo, a Comissão estabeleceu a renúncia tácita
do Estado Brasileiro ao seu direito de interpor a exceção de falta de
esgotamento dos recursos internos. Sendo os requisitos convencionais de
esgotamento dos recursos internos e de apresentação dentro do prazo de
seis meses da sentença que esgota a jurisdição interna
independentes, a Comissão Interamericana deve determinar se a petição
sob estudo foi apresentada dentro de um prazo razoável. Isso em virtude de
que, ao haver-se estabelecido a renúncia tácita por parte do Estado do
requisito de esgotamento prévio dos recursos internos, não se conta com a
data determinada a partir da qual contar o prazo de seis meses. A falta da
data determinada não releva ao peticionário do requisito de uma apresentação
oportuna. Em tal sentido, a Comissão, em virtude das circunstâncias
particulares da presente petição, considera
que a presente denúncia foi apresentada dentro de um prazo razoável. c.
Duplicação do Procedimento e Coisa Julgada 41.
A Comissão não vislumbra no expediente que a demanda trazida
perante essa Comissão esteja pendente de outro procedimento internacional e
não recebeu nenhuma informação que indique a existência de uma situação
dessa índole, bem como não vislumbra reprodução
de petição ou comunicação anteriormente examinada pela CIDH, razão
pela qual a Comissão entende que foram satisfeitos a exigência dos artigo 46 (c) e 47 (d) da Convenção. d.
Natureza das Violações 42.
A Comissão considera que prima
facie os fatos alegados pelo peticionário podem vir a caracterizar
violação à Convenção Americana nos seus artigos 1.1, 4, 5, 19, 8 e 25
da Convenção Americana e 13 do Protocolo de San Salvador, por eventuais
violações dos direitos à vida, integridade física e liberdade
pessoal dos adolescentes, bem como suas garantias judiciais e direito a
proteção judicial e da educação dos adolescentes custodiados nas
Unidades da FEBEM de São Paulo. V. CONCLUSÃO
43.
A Comissão conclui que é competente para tomar conhecimento desta
petição e que esta cumpre com os requisitos de admissibilidade, de acordo
com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. A
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS, DECIDE: 1.
Declarar, sem pré-julgar sobre o mérito da presente demanda, que a
presente petição é admissível em relação aos fatos denunciados e a
respeito dos artigos 4 (direito à vida); 5 (direito à integridade física);
8 (garantias judiciais); 19 (direito à proteção especial à infância);
25 (direito à recurso judicial) em conjunto com o artigo 1.1 (obrigação
de respeitar os direitos contidos na Convenção); e o artigo 13 do
Protocolo de San Salvador (direito à educação). 2.
Transmitir este Relatório ao Estado e ao peticionário. 3.
Publicar essa decisão e incluí-la em seu Informe Anual para a
Assembléia Geral da OEA.
Passado e assinado na sede da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C.,
aos 9 dias do mês de outubro de 2002. (Assinado):
Juan Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidente;
José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados Robert K. Goldman,
Julio Prado Vallejo, Clare Kamau Roberts e Susana Villarán.
[ íNDICE | ANTERIOR |PRÓXIMO ] [1]
Na fase de méritos do presente caso, o peticionário, com a colaboração
do Estado, deverá identificar os adolescentes custodeados nas Unidades
da FEBEM, conforme entendimento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, publicado no
Caso Panchito Lopez. (Corte I.D.H., Resoluçao de 21 de junho de
2002). [2]
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez,
Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987, Parágrafo 88
|