RELATÓRIO Nº 21/03

ADMISSIBILIDADE

PETIÇÃO 11.820

ELDORADO DOS CARAJÁS

BRASIL

20 de fevereiro de 2003

 

I.        RESUMO

 

1.       Em 5 de setembro de 1996, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) apresentaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Comissão” ou “a CIDH”) uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante denominada “Brasil” ou “o Estado”). A referida petição denuncia a violação dos artigos 4, 5, 8, 25 e 1.1  da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada  “a Convenção” ou “a Convenção Americana”), em prejuízo de Oziel Alves Pereira e outros.

 

2.       Os peticionários alegam que em 17 de abril de 1996 o Estado brasileiro, por intermédio de seus agentes, assassinou 19 trabalhadores rurais e feriu dezenas deles, ao desalojá-los de uma rodovia pública onde se encontravam acampados como parte de um grupo muito maior de trabalhadores.

 

3.       O Estado alegou falta de esgotamento dos recursos da jurisdição interna.

 

4.       Após a análise da petição e de acordo com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar a admissibilidade da petição em relação à supostas violações dos artigos 4, 5, 8, 25, 2 e 1.1  da Convenção Americana.

 

II.       TRAMITAÇÃO NA COMISSÃO

 

5.       Em 31 de outubro de 1996, a Comissão, em conformidade com seu Regulamento então vigente, abriu o caso, transmitiu as partes pertinentes da denúncia ao Estado brasileiro e solicitou a este informações a serem apresentadas num prazo de 90 dias. O Estado respondeu mediante comunicações sucessivas de 4 de novembro de 1997, 25 de novembro de 1997 e 9 de dezembro de 1997. Em  24 de fevereiro de 1998 os peticionários formularam observações sobre a resposta do Estado.

 

6.       Foram realizadas duas audiências, em 24 de fevereiro de 1998 e em 5 de outubro de 1999. Na segunda delas a Comissão solicitou a ambas as partes que lhe prestassem informações a cada 45 dias sobre o desenvolvimento dos recursos internos. O Estado apresentou doze relatórios, sendo que o último deles foi encaminhado à CIDH em 25 de fevereiro de 2002.

 

7.       Ambas as partes apresentaram alegações e documentos probatórios em diversas ocasiões, os quais foram encaminhados à parte contrária. Em 12 de dezembro de 2002 os peticionários apresentaram documento com informações atualizadas sobre os recursos internos, o qual foi encaminhado ao Estado em 13 de janeiro de 2003 solicitando-lhe a apresentação de suas observações. O Estado não apresentou observações a tal escrito dos peticionários.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      Posição dos peticionários

 

          8.       Os peticionários salientam que em 17 de abril de 1996, aproximadamente às 16 h, 155 policiais militares cercaram pelos dois lados um grupo de aproximadamente 1.500 trabalhadores rurais que se encontravam acampados na margem da rodovia estadual PA 150, no município de Eldorado dos Carajás, Estado do Pará.

         

9.       Declaram que os fatos ocorreram no contexto da situação precária a que são submetidos os trabalhadores rurais e suas famílias no Brasil, especificamente no Estado do Pará, em virtude da falta de uma superfície mínima de terra de que necessitam para que possam viver com dignidade.

 

10.     Ressaltam que os trabalhadores se dirigiam à cidade de Belém, capital do Estado, para exigir o cumprimento de um acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e o Governo do Estado,  em que se previa a expropriação de uma fazenda chamada “Macaxeira”. Acrescentam que os trabalhadores haviam acampado na rodovia, exigindo que as autoridades do Estado lhes fornecessem transporte e alimentação a fim de que pudessem chegar ao seu destino.

 

11.     Alegam que os policiais militares, após cercarem os trabalhadores pelos dois lados da rodovia, começaram a disparar contra eles. Salientam que em virtude desses fatos morreram 19 trabalhadores, 6 deles assassinados com os disparos iniciais e 13 executados sumariamente após a desobstrução da estrada, os quais não haviam podido fugir por se encontrarem feridos pelos mencionados disparos. Acrescentam que outros 69 trabalhadores foram gravemente feridos e dezenas de outros sofreram ferimentos leves.

         

12.     Destacam que com relação a tais fatos foram iniciadas duas investigações no nível policial: uma pela Polícia Militar, denominada “Inquérito Policial Militar”, que tinha por objetivo investigar os fatos quanto a eventuais crimes à respeito dos quais a competência para processar e julgar se encontrava atribuída à Justiça Militar Estadual, quer dizer,  os crimes previstos no artigo 9 do Código Penal Militar, incluindo o homicídio e as lesões corporais cometidos por policiais militares no exercício de suas funções. Referem que, assim mesmo, foi iniciada outra investigação pela Polícia Civil, denominada “Inquérito Policial Civil” para investigar os mesmos fatos, mas com respeito a eventuais delitos cometidos por policiais militares cujo julgamento estava atribuído à Justiça Comum estadual, ainda que houvessem sido cometidos por policiais militares no exercício de suas funções, tais como o delito de abuso de autoridade.

         

13.     Alegam que a investigação principal foi a realizada pela Polícia Militar e que a efetuada pela Polícia Civil serviu na prática como auxiliar da investigação militar. Acrescentam que a investigação foi caracterizada pela distorção dos fatos e pela destruição de provas fundamentais. Que houve vícios de investigação na cena dos fatos, nas perícias forenses dos cadáveres, nos exames de balística, nas provas testemunhais e nas demais etapas da investigação inicial.

         

14.     Aduzem que em 16 de agosto de 1999 foi realizado o primeiro juízo relacionado com os fatos, perante tribunais do foro criminal ordinário, logo anulado por vícios processuais. Acrescentam que entre 14 de maio de 2002 e 10 de junho do mesmo ano foi realizado, também perante o foro criminal ordinário, o segundo juízo relacionado com os fatos, no qual, de 144 policiais militares acusados, 142 foram absolvidos e somente dois oficiais da Polícia Militar que participaram dos fatos foram condenados pelo delito de homicídio: o Coronel Mário Colares Pantoja, que recebeu pena de 258 anos de prisão, e o Major José Maria Oliveira, condenado a 158 anos de prisão.

 

15.     Sustentam que os únicos dois condenados pelos fatos receberam o direito de aguardar em liberdade o resultado de um recurso interposto contra a sentença condenatória.

 

16.     Salientam que a maioria dos responsáveis pelos fatos objeto da petição em apreço foram absolvidos e que os recursos da jurisdição interna foram ineficazes na prática, em virtude da falta evidente de imparcialidade dos órgãos de justiça encarregados do caso. Solicitam que a Comissão, em conformidade com o disposto no artigo 46(2)(a), da Convenção Americana, admita o presente caso sem que tenham sido esgotados os recursos internos, tendo em vista a ineficácia desses recursos.

 

          B.       Posição do Estado

 

17.     O Estado alega que não se acham esgotados os recursos da jurisdição interna. A esse respeito, desde o início da tramitação deste caso o Estado brasileiro manteve a Comissão informada sobre a situação dos recursos internos.

 

18.     A partir da audiência realizada na CIDH em 5 de outubro de 1999, o Estado enviou à Comissão doze relatórios especiais sobre o desenvolvimento dos recursos da jurisdição interna.

 

19.     Por meio dos referidos relatórios a Comissão foi minuciosamente informada sobre as medidas processuais adotadas no processo interno iniciado com a finalidade de determinar responsabilidades pelos fatos denunciados à Comissão, que além do mais não foram discutidas pelo Estado brasileiro.

 

          20.     No último dos mencionados relatórios, de 25 de fevereiro de 2002, o Estado informou que alguns recursos interpostos pela defesa dos acusados com relação aos fatos deste caso e algumas diligências probatórias solicitadas pelo Ministério Público com vistas a ministrar justiça no caso implicaram a suspensão das sessões de julgamento, previstas para serem iniciadas a partir de 18 de junho de 2001.

 

          21.     Também salientou que o Ministério Público e o Poder Judiciário se empenhavam ao máximo para que, com a brevidade possível, fosse realizado o julgamento dos acusados pelos fatos relacionados com o caso.

 

IV.      ANÁLISE DA ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência ratione personae, ratione materiae, ratione temporis, ratione loci.

 

22.     De acordo com o artigo 44 da Convenção Americana e o artigo 23 do Regulamento da CIDH, os peticionários, como entidades não-governamentais legalmente reconhecidas, revestem legitimidade para apresentar petições à Comissão com relação a supostas violações dos direitos consagrados na Convenção Americana. Quanto ao Estado, o Brasil é parte da Convenção e, por conseguinte, responde na esfera internacional pelas violações desse instrumento. Os peticionários indicam como suposta vítima Oziel Alves Pereira e outras pessoas em relação às quais o Estado se comprometeu a garantir os direitos consagrados na Convenção. De maneira que a Comissão têm competência ratione personae para examinar a denúncia.

 

23.     A  Comissão tem competência ratione materiae, uma vez que a petição se refere a denúncias de violação dos direitos humanos protegidos pela Convenção Americana em seus artigos 4, 5, 8, 25 e 1.1; e tem competência ratione temporis porquanto os fatos alegados ocorreram quando a obrigação de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção já estava em vigor para o Estado brasileiro, que a ratificou em 25 de setembro de 1992. A Comissão tem competência ratione loci porque os fatos alegados ocorreram no território da República Federativa do Brasil, país que ratificou a Convenção Americana.

 

B.       Requisitos de admissibilidade da petição

 

a)       Esgotamento dos recursos internos

 

24.     O requisito de esgotamento dos recursos internos para que uma petição seja admitida pela Comissão é estabelecido no artigo 46.2(a), da Convenção, com as exceções previstas no artigo 46.2, quando:

 

a)       não existir na legislação interna do Estado de que se trate o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alega foram violados;

b)       não houver sido permitido ao suposto lesado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna ou  tiver ele sido impedido de esgotá-los; e

c)       houver atraso injustificado na decisão sobre os mencionados recursos.

 

          25.     O requisito do esgotamento prévio dos recursos internos se relaciona  com a possibilidade que tem o Estado de investigar e punir as violações de direitos humanos cometidas por seus agentes, por intermédio de seus órgãos judiciais internos, antes de se ver exposto a um processo internacional. Ele pressupõe, no entanto, que exista no nível interno o devido processo judicial para investigar essas violações e que essa investigação seja eficaz, pois do contrário a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46.2(a), da Convenção, pode conhecer do caso antes de esgotados os recursos internos.

 

          26.     Um dos pressupostos essenciais do devido processo é a independência, autonomia e imparcialidade dos órgãos nacionais encarregados tanto de investigar como de punir as supostas violações dos direitos humanos. 

 

27.     A esse respeito, a Comissão considera que a Polícia Militar não goza da independência e da autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações dos direitos humanos presumivelmente cometidas por policiais militares.

 

          28.     A Comissão explicou que o problema da impunidade na justiça penal militar não se vincula exclusivamente à absolvição dos acusados, mas que “a investigação de casos de violação dos direitos humanos pela justiça militar em si implica problemas”[1] e que

 

A investigação do caso por parte da justiça militar elimina a possibilidade de uma investigação objetiva e independente executada por autoridades judiciais não ligadas à hierarquia de comando das forças de segurança. O fato de que a investigação de um caso tenha sido iniciada na justiça militar pode impossibilitar uma condenação mesmo que o caso passe logo à justiça ordinária, dado que provavelmente não foram colhidas as provas necessárias de maneira oportuna e efetiva. Também a investigação dos casos que permanecem no foro militar pode ser conduzida de maneira a impedir que cheguem eles à etapa de decisão final.[2]

 

29.     No que se refere especificamente à legislação brasileira, a Comissão a analisou minuciosamente[3] e expôs de que maneira, até 1996, a competência para investigar e julgar violações de direitos humanos cometidas pela Polícia Militar era atribuída a órgãos militares, ao passo que a partir dessa data a referida legislação foi modificada, ficando consagrado que os “crimes dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum”, mantendo-se no entanto a competência da Polícia Militar para investigar esses fatos.  A Comissão salientou a esse respeito que as novas disposições implicavam que os policiais militares

 

continuarão a ser julgados num foro privilegiado quando se tratar de crimes contra a pessoa, tais como o homicídio culposo, a lesão corporal, a tortura, o seqüestro, a prisão ilegal, a extorsão e os golpes. Com isso, a investigação ("inquérito") permanecerá sob a responsabilidade da autoridade militar, mesmo quando se tratar de um crime doloso contra a vida e apesar de, de acordo com a nova lei, esses crimes passarem à esfera da justiça comum. Essa nova disposição contradiz o artigo 144, seção  IV, da Constituição, que atribui às polícias civis as funções de polícia judiciária e a investigação das infrações penais, exceto as militares. Com efeito, se os crimes dolosos contra a vida deixam de ser militares em virtude da nova lei, a investigação penal deveria estar a cargo das polícias civis, às quais cabem, de acordo com o artigo 144, seção IV, da Constituição, "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais". Ao deixar a investigação inicial em mãos da polícia "militar", de fato se confere a esta competência para determinar ab initio se o crime é doloso ou não. Isso significa que a Lei 9.299 da República não tem capacidade efetiva para reduzir significativamente a impunidade.[4]

 

          30.     A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao analisar a ausência do devido processo como exceção à regra de esgotamento dos recursos internos, salientou que

 

O artigo 46.2(a) se refere às situações em que a lei interna de um Estado Parte não prevê o devido processo judicial para proteger os direitos violados. O artigo 46.2(b) é aplicável nos casos em que de fato existem os recursos da jurisdição interna mas seu acesso é negado ao indivíduo ou ele é impedido de esgotá-los. Essas disposições são aplicadas, então, quando os recursos internos não podem ser esgotados porque não estão disponíveis por uma razão jurídica ou por uma situação de fato.[5]

 

          31.     Aplicando tais considerações ao presente caso, a Comissão observa que, ainda que exista formalmente no Brasil um recurso para investigar violações aos direitos humanos cometidas por policiais militares, a competência que a legislação brasileira atribue à própria polícia militar para investigar ditas violações implica, na prática, uma razão legal que impede que ditos recursos possam ser devidamente esgotados, por não existir o devido processo requerido para isso.   

 

32.     Pelas razões acima expostas a Comissão considera que a legislação brasileira não oferece o devido processo judicial para  investigar efetivamente supostas violações dos direitos humanos cometidas pela Polícia Militar. 

 

          33.     No presente caso, é um aspecto não controvertido que em relação aos fatos denunciados se iniciaram duas investigações a nível policial, ambas destinadas a investigar policiais militares em relação com tais fatos: um pela Polícia Militar que tinha por objetivo investigar os fatos quanto a homicídios, lesões e outros delitos cujo o julgamento estava atribuído à justiça militar estadual; e outro pela Polícia Civil, para investigar os mesmos fatos, mas com respeito à delitos cujo julgamento estava atribuído à Justiça Comum Estadual, tais como abuso de autoridade. Tampouco é objeto de controvérsia que a investigação principal dos fatos denunciados foi realizada pela Polícia Militar, e a esse respeito alega-se que a investigação foi caracterizada pela distorção dos fatos e pela destruição de provas fundamentais; que houve vícios de investigação na cena dos fatos, nas perícias forenses dos cadáveres, nos exames de balística, nas provas testemunhais e nas demais etapas da investigação inicial.[6]

 

34.     A Comissão observa que o processo interno pelos fatos ocorridos em 16 de abril de 1996 no município de Eldorado dos Carajás não foi totalmente concluído, por existir um recurso pendente contra a decisão que, como resultado do julgamento realizado entre 14 de maio de 2002 e 10 de junho de 2002, condenou dois oficiais como responsáveis pelos fatos denunciados no caso em apreço. No entanto, o fato de que as investigações iniciais desses fatos tenham sido efetuadas por um órgão sem independência, autonomia e imparcialidade, como a Polícia Militar, que não garante a efetividade da investigação, implica um vício que afetou desde o início todo o procedimento, apesar de o julgamento posterior ter sido confiado a tribunais do foro criminal ordinário.

         

35.     A Comissão conclui que, embora não tenham sido esgotados todos os recursos da jurisdição interna, aplica-se a este caso a mencionada exceção de inexistência no direito interno do devido processo judicial para investigar e julgar as violações dos direitos humanos, prevista no artigo 46.2(a), da Convenção Americana. 

 

b)       Prazo para a apresentação da petição

 

36.     De acordo com o artigo 46.1(b), da Convenção Americana, constitui requisito de admissibilidade a apresentação das petições no decorrer do prazo de seis meses a partir da notificação ao suposto lesado da sentença que esgote os recursos internos. O artigo 32 do Regulamento da Comissão, cujo texto é similar ao do artigo 38.2 do Regulamento vigente ao momento da apresentação da petição em estudo, consagra que “nos casos em que sejam aplicáveis as exceções ao requisito do esgotamento prévio dos recursos internos, a petição deverá ser apresentada num prazo razoável, a critério da Comissão.  Para tanto, a Comissão considerará a data em que haja ocorrido a presumida violação dos direitos e as circunstâncias de cada caso”.

 

          37.     Neste caso a Comissão se pronunciou supra sobre a aplicabilidade da exceção ao requisito de esgotamento dos recursos internos. A esse respeito a Comissão considera que a petição apresentada à CIDH pelos peticionários em 5 de setembro de 1996  foi interposta num prazo razoável, levando-se em conta as circunstâncias específicas do caso, especialmente a data em que ocorreram os fatos e o que se refere a que a investigação policial estava a cargo da Polícia Militar.

 

 

c)       Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

38.     A Comissão entende que do expediente não se depreende que a denúncia apresentada esteja pendente de outro procedimento internacional e não recebeu informação alguma que indique a existência de situação dessa natureza, bem como não considera que se reproduza a petição ou comunicação em outra anteriormente examinada por ela, motivo por que considera que ficam atendidas as exigências dos artigos 46.1(c) e  47(d),  da Convenção.

 

d)       Caracterização dos fatos

 

39.     A Comissão considera que prima facie os fatos alegados pelos peticionários podem caracterizar a violação dos artigos 4, 5, 8, 25 e 1.1 da Convenção Americana, por eventual descumprimento da obrigação de respeitar os direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial em detrimento das vítimas deste caso. Isso entendido que, em relação  às eventuais violações  dos artigos 8 e 25, as eventuais vítimas seriam as pessoas feridas, assim como os familiares dos que morreram em tais fatos. Por outra parte, e ainda que isso não foi alegado na petição, a Comissão, em virtude do princípio iura novit curia, decide admitir igualmente a presente com respeito à eventuais violações ao artigo 2 da Convenção Americana, toda vez que, conforme se assinalou acima, a Comissão, no marco da análise dos recursos internos, decidiu admití-lo por considerar que a legislação brasileira não oferece o devido processo legal para investigar efetivamente presumíveis violações aos direitos humanos cometidas pela Polícia Militar.

 

V.      CONCLUSÃO

 

40.     A Comissão conclui que é competente para tomar conhecimento desta petição e que a mesma atende aos requisitos de admissibilidade, de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar, sem prejulgar o mérito desta denúncia, que a petição é admissível com relação aos fatos denunciados e aos artigos 4 (direito à vida); 5 (direito à integridade pessoal); 8 (garantias judiciais); 25 (direito a um recurso judicial); e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da Convenção Americana, juntamente com o artigo 1.1 do referido tratado (obrigação de respeitar os direitos constantes da Convenção).

 

2.       Enviar este relatório ao Estado e aos peticionários.

 

3.       Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.


 

Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 20 dias de fevereiro do ano de 2003.   (Assinado):  Juan Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidente; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Kamau Roberts e Susana Villarán.

 


[1] CIDH, Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Peru, junho de 2000, Cap. II, parágrafo 210.

[2] CIDH, Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Colombia, 1999, Cap. V, parágrafos 17 e seguintes.

[3] Ver a esse respeito  CIDH, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no  Brasil, setembro de 1997, Capítulo III.

[4] CIDH, Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Brasil, opus cit., parágrafos 84 e 86. Ao finalizar suas considerações sobre esse ponto, a Comissão recomendou ao Estado brasileiro: “Atribuir à justiça comum a competência para julgar todos os crimes que forem cometidos por membros das polícias ‘militares’ estaduais (...).Transferir à competência da justiça  federal o julgamento dos crimes que envolverem violações dos direitos humanos, devendo o governo federal assumir responsabilidade direta pela instauração e devido estímulo processual quando se tratar desses crimes”.

[5] Corte IDH, Exceções Ao Esgotamento Dos Recursos Internos (artigo 46.1, 46.2(a) e 46.2(b) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), Opinião Consultiva OC-11/90, de 10 de agosto de 1990, Série A, Nº 11, parágrafo 17.

[6] Os peticionários alegam, entre outros exemplos, a) Que os exames forenses realizados por médicos oficiais em 18 e 19 de abril de 1996 determinaram que os 19 trabalhadores mortos apresentavam feridas típicas de situações de conflito e que não havia elementos indicativos de execuções sumárias. No entanto, acrescentam, outro médico forense determinou que havia sinais claros de execução sumária; b) Que a Polícia Militar ocultou os livros de que constavam as armas específicas que portava cada um dos soldados que participaram dos fatos; c) Que não foram examinados os uniformes dos policiais militares que participaram dos fatos, a fim de identificar partículas de sangue e manchas de pólvora; e d) Que a Polícia Militar removeu os corpos dos trabalhadores mortos do local em que ocorreram os fatos sem nele efetuar exame prévio algum.