RELATÓRIO Nº 14/03[1]

PETIÇÃO 185/2002

ADMISSIBILIDADE

ROGER HERMINIO SALAS GAMBOA

PERU

20 de fevereiro de 2003

 

 

I.        RESUMO

 

1.      Mediante petição apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada "a Comissão"), em 11 de março de 2002, o senhor Roger Herminio Salas Gamboa, (doravante denominado "o peticionário") denunciou que a República do Peru (doravante denominada "Peru", "o Estado" ou "o Estado peruano") violou, em seu prejuízo, o direito às garantias judiciais, o direito à proteção da honra, seus direitos políticos, a igualdade perante a lei e a proteção judicial, todos eles consagrados nos  artigos  8, 11, 23, 24 e 25 respectivamente da  Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada a "Convenção" ou a "Convenção Americana"), em conjunção com o artigo 1(1) do citado instrumento internacional. As violações denunciadas relacionam-se com supostas irregularidades cometidas pelo  Conselho Nacional da  Magistratura no  procedimento de não ratificação de seu cargo como Vogal Titular da  Corte Suprema de Justiça da  República.

 

2.      Quanto à  admissibilidade da  petição, o peticionário informa à Comissão que as decisões do Conselho Nacional da  Magistratura, por disposição do artigo 142 da  Constituição Política de 1993 em conjunção com o artigo 1º da  Lei Orgânica do Conselho Nacional da  Magistratura, Lei Nº 26397, não são suscetíveis de revisão em sede judicial, não existindo, consequentemente, via interna a ser esgotada e sendo aplicável a exceção estabelecida no  artigo 46(2) inc. a e b da  Convenção, e que a petição foi interposta nos termos regulamentares em relação ao prazo em que a suposta vítima foi notificada da mesma.

 

3.      Por sua vez, o Estado manifesta à CIDH que não existe violação alguma da Convenção, pois o processo de ratificação dos  funcionários do  ramo judiciário segue uma avaliação conforme a Constituição Política do país. Afirma que se trata de um procedimento distinto dos processos disciplinares que o mesmo órgão está autorizado para tramitar a fim de destituir os mesmos funcionários.

 

4.      Após analisar os argumentos das partes e o cumprimento dos  requisitos de admissibilidade previstos na  Convenção, a Comissão decidiu declarar admissível a petição de conformidade com o estabelecido nos  artigos 46 e 47 da  Convenção Americana. A Comissão decide igualmente notificar esta as partes desta decisão, publicá-la e incluí-la em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da  OEA.

 

 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.      Em 4 de abril de 2002, a Comissão registrou a denúncia apresentada pelo  senhor Roger Herminio Salas Gamboa, designado-lhe o  número 0185/2002. Em 18 de setembro de 2002, a CIDH enviou as partes pertinentes da denúncia ao Estado peruano, solicitando-lhe que submetesse informação a este respeito num prazo de 60 dias. Em 15 de outubro de 2002, o Estado solicitou a ampliação do prazo para responder, a qual foi concedida mediante nota de 23 de outubro e enviada ao Estado no dia 26 do mesmo mês e ano. O Estado apresentou sua resposta em 26 de novembro de 2002. Em 6 de janeiro de 2003, o peticionário apresentou informação adicional relacionada a denúncia e solicitou que fosse recebido em audiência durante o 117º período de sessões da  CIDH de 17 de fevereiro a 7 de março de 2003, pedido que lhe foi negado.

 

6.      A Comissão considera que neste momento o caso possui a informação pertinente para pronunciar-se sobre a admissibilidade desta petição.

 

III.      POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.     O peticionário

 

7.      O peticionário alega que foi nomeado Vogal da  Corte Suprema de Justiça do Peru mediante concurso público através da Resolução Suprema Nº 105-90-JUS de 25 de maio de 1990. Esta nomeação foi ratificada mediante a Resolução Senatorial Nº 1093-90 publicada em 21 de setembro de 1990, e foi expedido o título de Magistrado em 19 de setembro de 1990. O juramento para o cargo foi feito no dia 27 de setembro de 1990. Todos estes fatos  ocorreram durante a vigência da  Constituição Política de 1979 que não previa a ratificação periódica dos  magistrados e garantia a permanência no  serviço até os sessenta anos, enquanto observassem a boa conduta e idoneidade em sua função.

 

8.      Conforme a Segunda Sala Penal da  Corte Suprema de Justiça da  República e como vogal menos antigo, lhe correspondeu, por mandato da  Lei Orgánica do Poder Judicial, assumir as funções de Vogal Supremo Instrutor, tendo a cargo processos penais contra altos dignatários da  Nação. Um destes casos referiu-se à acusação proveniente do Senado da  República contra o doutor Alan García Pérez, ex-Presidente do Peru, que resolveu em  2 de dezembro de 1991 indeferindo a abertura de instrução, resolução que foi confirmada pelas instâncias superiores e a qual também foi matéria de exame da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no  caso Nº 11.006, Peru, Alan García, relatório definitivo Nº 1250 aprovado em 7 de fevereiro de 1995.[2]

 

9.      O peticionário informa que depois de instaurado no  país o governo de Emergência e Reconstrução Nacional presidido pelo  engenheiro Alberto Fujimori em 5 de abril de 1992, mediante Decreto-Lei Nº 25423 publicado no  diário oficial El Peruano em 8 de abril de 1992, foi exonerado sem justificativa juntamente com outros doze vogais Supremos Constitucionais.  Por esta razão recorreu através de ação de amparo, a qual foi resolvida finalmente pelo Tribunal Constitucional em 27 de setembro de 1997, que determinou sua reincorporação como Vogal Titular da  Corte Suprema de Justiça da  República, com o  reconhecimento, para efeitos de pensão, do tempo não trabalhado em razão da exoneração.

 

10.  Apesar da decisão judicial mencionada, o governo do presidente Fujimori, para evitar seu cumprimento, promulgou uma série de decretos-leis e leis, mas finalmente foi reincorporado juntamente com outros magistrados em 14 de maio de 2001, funcionários que tampouco haviam exercido as funções jurisdicionais no  período compreendido entre o mês de janeiro de 1994 e dezembro de 2000. Reiniciadas suas atividades jurisdicionais, coube-lhe  presidir por antiguidade a Sala Penal Transitória da  Corte Suprema de Justiça da  República.

 

11.  O peticionário assinalou que o processo de ratificação, de acordo com o artigo 150 da  Constituição Política de 1993 em conjunção com o artigo 1º da  Lei 26934, está a cargo do Conselho Nacional da  Magistratura, que o efetua em única instância e cujas decisões estão ausentes de revisão em sede judicial.[3] Que o Conselho Nacional da  Magistratura revisa a cada sete anos a atuação e a qualidade dos  juízes e fiscais de todos os níveis, mediante uma avaliação de sua conduta e idoneidade no  desempenho do cargo, considerando a produção laboral, os méritos e relatórios dos  Colégios e Associações de Advogados, e a avaliação mediante uma entrevista pessoal. Informa que, se for adotada a decisão de exoneração do cargo, “não constitui pena nem priva dos  direitos adquiridos conforme a lei, mas  impede o reingresso no Poder Judicial e no Ministério Público”.[4]

 

12.  O peticionário alegou que foi incluído na quinta fase do processo de ratificações, iniciada em 19 de junho de 2001, tendo sido entrevistado por cinco dos sete membros aos quais expôs sua situação, especialmente que no que se refere ao período de sete anos que a lei exige para ser avaliado, quando esteve  ausente da  atividade jurisdicional por estar exonerado do cargo, e razão pela qual não pode apresentar nenhum resultado sobre a função de juiz. Indicou que, embora a entrevista tenha durado trinta minutos, somente foi gravada em vídeo por um minuto e trinta segundos sob o argumento de que: “A gravação da  entrevista não está completa, já que no  curso da  mesma a fita terminou, como advertido no início da  entrevista”. Especificou que a decisão de sua não ratificação foi tomada pelos sete magistrados do Conselho Nacional da  Magistratura, dois dos  quais não puderam ter tido suficientes elementos de juízo para tal decisão pois não assistiram sua entrevista  e não tinham a mencionada gravação completa.

 

13.  O peticionário concluiu sua denúncia no sentido que as decisões do Conselho Nacional da  Magistratura são arbitrárias. Os avaliados não são informados sobre as razões  que foram levadas em conta na  decisão adotada. Alega que não há possibilidade de recurso algum contra as mesmas ou de revisão judicial. Que tal decisão implica na impossibilidade de voltar a aceder à função jurisdicional, e que em seu caso ele foi avaliado em iguais condições a outros magistrados sem ter cumprido o termo dos  sete de anos de atividade jurisdicional porque precisamente o Estado o havia retirado injustamente de seu cargo desde o ano de 1992 e após a decisão do Tribunal Constitucional foi reintegrado a partir do mês de maio de 2001.

 

B.       O Estado

 

14.  O Estado manifestou que a falta de ratificação do peticionário pelo  Conselho Nacional da  Magistratura não afetou direito algum, porque o processo de avaliação e ratificação foi efetuado de acordo com o previsto no  artigo 154 número 2º da  Constituição Política, no  sentido de que tais decisões não são passíveis de revisão em sede judicial.

 

15.  Indicou ademais que as decisões em matéria de ratificações dos  magistrados constituem um exercício  da  faculdade discricionária atribuida ao Conselho Nacional da  Magistratura pela  Constituição Política e pela  Lei Orgânica, não sendo procedente questionar as fundamentações das decisões por não tratarem-se de um processo disciplinar equiparável a um processo judicial, no qual se deve observar as garantias do artigo 139, inciso 5, da  Constituição do Peru e o artigo 8 número 1 da  Convenção Americana. Adicionalmente, o Estado argumenta que este processo de ratificação não constitui uma sanção disciplinar.

 

16.  O Estado afirma que o peticionário foi submetido a um processo de avaliação  para a ratificação sob as mesmas regras que os outros magistrados e que os resultados dos  mesmos são diferentes por tratarem-se de processos individuais nos  que se aprecia a conduta e idoneidade na  parte da  decisão final e que, portanto, não é uma violação ao direito à igualdade.

 

IV.      ANÁLISE

 

A.      Competência da  Comissão

 

17.  Os peticionários estão facultados pelo  artigo 44 da  Convenção Americana para apresentar denúncias perante a CIDH. A petição assinala  como supostas vítimas indivíduos, para os quais o Peru comprometeu-se a respeitar e garantir os direitos consagrados na  Convenção Americana.  No que se refere ao Estado, a Comissão assinala que o Peru é um  Estado parte na  Convenção Americana desde 5 de setembro de 1984, data em que depositou o  instrumento de ratificação respectivo.  Portanto, a Comissão tem competência ratione pessoae para examinar a petição.

 

18.  A Comissão tem competência ratione loci para conhecer a petição, porque a petição alega violações de direitos protegidos na  Convenção Americana que teriam ocorrido dentro do território de um Estado parte neste tratado. A CIDH tem competência ratione temporis, porque a obrigação de respeitar e garantir os direitos protegidos na  Convenção Americana já se encontrava em vigor para o Estado na data em que haviam  ocorrido os fatos alegados na  petição. Por último, a Comissão tem competência ratione materiae porque na petição se denunciam violações a direitos humanos protegidos pela  Convenção Americana.

 

 

B.       Outros requisitos de admissibilidade

 

a.       Esgotamento dos  recursos internos

  

19.  Quanto à admissibilidade, a Comissão observa que, no  trâmite do presente assunto, o Estado não se opôs em nenhum momento à exceção de falta de esgotamento de recursos internos com respeito aos procedimentos domésticos tramitados contra o senhor Roger Herminio Salas Gamboa.

 

20.  O peticionário alegou também que era aplicável ao seu caso a exceção descrita no  artigo 46(2)(a) da  Convenção, porque  dentro da  legislação peruana não existia outro recurso para tentar atacar a decisão do Conselho Nacional da  Magistratura e o Estado assim o aceitou em sua resposta.

 

21.  Cabe a CIDH determinar se o Estado renunciou tacitamente em opor esta exceção.

 

22.  A Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que “A exceção de não esgotamento dos  recursos internos, para ser oportuna, deve ser apresentada nas primeiras etapas do procedimento, caso contrário poderá presumir-se a renúncia tácita a ser válida contra o Estado interessado".[5] Consequentemente, a CIDH estabelece, com relação ao presente assunto, que o Estado peruano não opôs a exceção que ocupa a presente análise tendo renunciado tacitamente à mesma, por não tê-la invocado expressa e oportunamente em nenhuma das comunicações dirigidas  à Comissão. A Comissão considera cumprido o requisito previsto no  artigo 46(1)(a) da  Convenção Americana com a exceção trazida no artigo 46(2)(a) da  Convenção Americana.

 

 

b.       Prazo de apresentação

 

23.  Na  petição sob exame, a CIDH determinou a renúncia tácita do Estado peruano a seu direito de interpor a exceção de falta de esgotamento dos  recursos internos.

 

24.  Entretanto, os requisitos convencionais de esgotamento de recursos internos e de apresentação dentro do prazo de seis meses da  sentença que esgota a jurisdição interna são independentes. Portanto, a Comissão Interamericana deve determinar se a petição sob  exame foi apresentada dentro de um prazo razoável.  A Comissão observa que a decisão questionada do Conselho Nacional da  Magistratura foi emitida em 18 de setembro de 2001 e comunicada ao peticionário no dia seguinte, ou seja, em 19 de setembro de 2001. Como tal decisão não é suscetível de ser revisada por via judicial como admitido pelo Estado em sua resposta, é a partir desta data então que começa a contar-se os seis meses que tem o  peticionário para denunciar os fatos perante a CIDH, o que efetivamente foi cumprido, pois a queixa do senhor Roger Herminio Salas Gamboa foi recebida na  Comissão em 11 de março de 2001.

 

c.       Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

          25.     Não existe evidência de que a matéria da  petição esteja pendente de outro procedimento de acordo internacional, nem que reproduza uma petição já examinada por este ou outro órgão internacional. 

 

d.     Caracterização dos  fatos

 

25.  A Comissão considera que a exposição do peticionário não resulta manifestamente infundada ou seja evidente sua total improcedência, por tratar-se de fatos que descrevem como supostamente violatórios dos  artigos 8, 24 e 25 respectivamente da  Convenção Americana, em conjunção com o artigo 1(1) da  mesma, tal como indicado pelo  exponente supra 13, sendo então procedente admitir a petição em questão, de acordo com o previsto no  artigo 47 (b) e (c) da  Convenção. 

 

26.  Da mesma forma, a Comissão considera que o peticionário não especificou a alegada violação do artigo 23 da  Convenção, e que tampouco havia suficientes argumentos em referência à violação do artigo 11 da  Convenção, não sendo, portanto, procedente admití-las, porque do contexto da sua petição não há fatos que caracterizem tais violações.

 

 

V.      CONCLUSÕES

 

27.  Com base nos  argumentos de fato e de direito antes expostos, e sem prejulgar sobre o mérito da questão,

 

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITO HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.       Declarar admissível a petição apresentada pelo  senhor Roger Herminio Salas Gamboa, sobre supostas violações dos  artigos 1(1) 8, 24 e 25 respectivamente da  Convenção Americana,  por parte do Estado peruano.

 

2.         Notificar o Estado e o peticionário desta decisão.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito do assunto.

 

4.       Colocar-se à disposição das partes com a finalidade de alcançar uma solução amistosa baseada no  respeito aos  direitos consagrados na  Convenção Americana e convidar as partes a pronunciarem-se sobre esta possibilidade.

 

5.         Publicar o presente relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual a ser enviado à Assembléia Geral da OEA.

 

 

Dado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., no dia 20 de fevereiro de 2003.  Assinado:  Juan E. Méndez, Presidente; Marta Altolaguirre, Primeira Vice-Presidenta; José Zalaquett, Segundo Vice-Presidente; Comissionados: Robert K. Goldman, Julio Prado Vallejo, Clare Roberts.

 


 


[1] Conforme o estipulado no artigo 17(2)(a) do Regulamento da  Comissão, a Comissionada Susana Villarán, de nacionalidade peruana, não participou no  debate nem na decisão do presente assunto.

[2] O relatório assinalado pelo  peticionário corresponde ao Relatório No 1/95 Caso 11.006 Alan García Pérez de 7 de fevereiro de 1995.

[3] Constituição Política. Artigo 150. O Conselho Nacional da  Magistratura se encarrega da  seleção e a nomeação dos  juízes e fiscais, salvo quando estes provenham de eleição popular. O Conselho nacional da  Magistratura é independente e se rege por sua lei orgânica. Art. 142.  As resoluções não são passíveis de revisão em sede judicial do Júri Nacional de Eleições em matéria eleitoral, nem as do Conselho Nacional da  Magistratura em matéria de avaliação e ratificação dos juízes. Lei 26.397 Artigo 2º Compete ao Conselho Nacional da  Magistratura a seleção, nomeação, ratificação e destituição dos  juízes e promotores de todos os níveis, salvo quando estes provenham de eleição popular, em cujo caso somente está facultado para estender o título e aplicar a sanção de destituição quando assim determine a lei. As decisões  não são passíveis de revisão em sede judicial sobre as matérias a que se refere o parágrafo anterior, suas decisões são inimpugnáveis.

[4] Ib. Lei 26.397 artigos 29 e 30.

[5] Corte IDH, Caso Velásquez Rodríguez, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987. Serie C Nº 1, par. 88; Caso Godínez Cruz, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987. Serie C Nº 3, par. 90; Caso Fairén Garbi e Solís Corrais, Exceções Preliminares, Sentença de 26 de junho de 1987. Serie C Nº 2, pars. 87; Caso Loayza Tamayo, Exceções Preliminares, Sentença de 31 de janeiro de 1996. Serie C Nº 25, par. 40.