RELATÓRIO Nº 82/06

PETIÇÃO 555-01

ADMISSIBILIDADE

COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

BRASIL

21 de outubro de 2006

 

 

I.        RESUMO

 

1.      Em 17 de agosto de 2001, o Centro de Justiça Global, os representantes das Comunidades Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha – todas integrantes do mesmo território étnico de Alcântara, Maranhão; a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH); o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN); a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), e a Global Exchange apresentaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “CIDH” ou “a Comissão”) uma petição contra a República Federativa do Brasil (doravante denominada “Brasil” ou “Estado”). Esta petição denuncia a desestruturação sociocultural e a violação ao direito de propriedade e ao direito à terra ocupada pelas Comunidades tradicionais de Alcântara. Tal situação foi gerada pela instalação do “Centro de Lançamento de Alcântara” e pelo conseqüente processo de desapropriação que vem sendo executado pelo governo brasileiro naquela região, bem como pela omissão do Estado em conferir os títulos de propriedade definitiva para aquelas comunidades. Segundo os peticionários, os fatos caracterizam violações aos Direitos Humanos garantidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (doravante denominada “a Convenção” ou a “Convenção Americana”), em seus artigos 1(1), 8, 16, 17, 21, 22, 25, 26; e pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (doravante denominada de “Declaração”), nos artigos VI, VIII, XII, XIII, XIV, XVIII, XXII e XXIII.

 

2.        O Estado brasileiro estima que a CIDH deve considerar inadmissível a denúncia, em razão da falta de esgotamento de recursos do artigo 46(1)(a) da Convenção Americana. Afirma que, no âmbito interno, os peticionários ainda têm a possibilidade de lograr êxito em juízo a partir das demandas interpostas. O Estado acrescenta que prioriza o bem-estar das comunidades remanescentes de quilombos e que para tanto está adotando diversas medidas de natureza administrativa e legislativa.

 

3.         Depois da análise do pedido e de acordo com o disposto nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar admissível o pedido relacionado com a suposta violação dos artigos 1(1), 8, 16, 17, 21, 22, 24, 25 e 26 da Convenção Americana. A Comissão decide igualmente notificar esta decisão às partes, publicá-la e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.
 

II.       TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

4.        Em 20 de agosto de 2001 a CIDH recebeu solicitação dos peticionários a fim de que fosse reconhecida a competência da Comissão para resolver o presente caso. A CIDH trasladou as informações recebidas ao Estado brasileiro em 28 de agosto de 2001.

 

5.        Em 28 de novembro de 2001 o Estado contestou a petição apresentada pelos peticionários.

 

6.         Em 21 de janeiro de 2002 os peticionários solicitaram audiência para tratar da interpretação e abrangência do direito à propriedade, no que se refere às solicitações constantes na Petição nº 555/2001.

 

7.        Em 14 de dezembro de 2004 os peticionários apresentaram novas informações acerca da petição em tela.

 

8.        Em 14 de julho de 2005 o Estado realizou comentários à resposta dada pelos peticionários.

 

9.        9. Em 30 de agosto de 2006, a Comissão solicitou aos peticionários e ao Estado que encaminhassem informações sobre pontos específicos.

 

10.      Em 19 de setembro de 2006, os peticionários solicitaram à Comissão um adiamento de 15 (quinze) dias para encaminhar as informações requeridas e o Estado procedeu do mesmo modo em 22 de setembro do mesmo ano. A concessão desta prorrogação foi comunicada ao Estado na mesma data, comunicando-se este fato aos peticionários. A concessão da prorrogação respectiva foi comunicada a estes últimos em 29 de setembro de 2006. Na mesma data, esta situação foi comunicada ao Estado.

 

11.       Em 15 de outubro de 2006, os peticionários encaminharam as informações a eles solicitadas e o Estado procedeu do mesmo modo em 18 do mesmo mês e ano.

 

III.      POSIÇÃO DAS PARTES

 

A.      Posição do Peticionário

 

12.         Alegam os peticionários que o Estado brasileiro violou o disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no sentido que não observou a obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na Convenção (artigo 1(1)), às garantias judiciais (art. 8), à liberdade de associação (artigo 16), à proteção da família (artigo 17), à propriedade privada (artigo 21), à circulação e residência, à proteção judicial (art. 25(1)) e à proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais (artigo 26).

 

13.        De acordo com os peticionários, as comunidades tradicionais de que trata a petição estão localizadas no município de Alcântara, a 22 Km de São Luís (capital do Estado do Maranhão), na região Nordeste do Brasil. O município está encravado em uma grande área de Proteção Ambiental, a qual circunscreve a região Amazônica. Em razão da localização privilegiada do município é considerado como área estratégica para pesquisas e desenvolvimento de tecnologia aeroespacial. Na opinião dos peticionários, a instalação do “Centro de Lançamento de Alcântara” na região trouxe graves impactos sociais e culturais para as comunidades tradicionais que ali viviam ou vivem.

 

14.         Esclarecem os peticionários que os “quilombos” são fazendas formadas principalmente por escravos fugitivos ou libertos e baseiam-se na produção coletiva. São comunidades tradicionais com culturas, dialetos, formas de produção e regras internas próprias. Acrescentam os peticionários que, em razão da importância histórica e cultural dos quilombos, a Constituição brasileira de 1988 reconheceu o direito dessas comunidades aos seus territórios[1].

 

15.        Os peticionários explicam que através de uma Portaria[2] o governo brasileiro delegou para a “Fundação Palmares” a competência para identificar, demarcar e titular as áreas pertencentes a comunidades remanescentes de quilombos. No entanto, alertam que embora o Brasil conte com mais de 1000 comunidades remanescentes de quilombos, desde outubro de 1988 a “Fundação Palmares” efetuou a titulação de apenas 18 comunidades. Para os peticionários, o fato se agrava quando é explicitado que das 18 comunidades tituladas, so cerca de 3 conseguiram registrar em Cartório o título que receberam da referida Fundação, em razão do não reconhecimento, pela estrutura cartorária brasileira, dos documentos expedidos em detrimento de antigas fazendas e engenhos registrados e em favor das comunidades, mesmo estas estando no local há mais de um século. 

 

16.        Relatam que em 1983 foi criado o “Centro de Lançamento de Alcântara” (CLA)[3], o qual tinha como objetivo inicial a execução e o apoio das atividades de lançamento e rastreamento de engenhos aeroespaciais, bem como de testes e experimentos de interesse do Ministério da Aeronáutica. Em 1980, para viabilizar tal projeto, o Governo do Estado do Maranhão declarou[4] de utilidade pública, para fins de desapropriação a área de terra necessária para a execução do projeto. Ocorre que, nesta área a ser desapropriada havia diversas comunidades de quilombos.

 

17.        Afirmam os peticionários que, apesar de não existirem dados mais recentes, estima-se que 3.600 famílias pertencentes a dezenas de comunidades interligadas estão dentro da área da Base Espacial, a qual foi declarada de utilidade pública. Além disso, mesmo as comunidades que se encontram fora da área da Base Espacial, sofreram e vêm sofrendo danos indiretos em virtude dos vários impactos causados pela instalação daquele empreendimento e, ainda pelo “Acordo de Salvaguardas Tecnológicas” assinado entre Brasil e Estados Unidos da América[5].

 

18.        Defendem os peticionários, que após a assinatura do “Acordo de Salvaguardas Tecnológicas” transpareceu a destinação comercial que se pretendia conferir às instalações do CLA. Explicam que houve uma mudança gradual em relação aos objetivos do projeto, o qual nasceu revestido de um caráter de segurança nacional e transmudou a um empreendimento de matiz comercial.

 

19.        Informam que a situação das comunidades que vivem no território de Alcântara caracteriza-se extremamente complexa. Para os peticionários constitui-se tema relevante o desapossamento das terras coletivas e ancestrais, bem como a ingerência sofrida pelas comunidades no que tange a aspectos econômicos, familiares, culturais e religiosos de suas vidas, em que se destacam: o impedimento a prática da pesca, a impossibilidade de expansão familiar e a interdição do acesso aos cemitérios onde estão enterrados os parentes de alguns moradores das comunidades.

 

20.       Os peticionários dividiram, para fins da presente petição, as comunidades tradicionais de Alcântara em três grupos distintos: Comunidades ameaçadas de deslocamento, comunidades ameaçadas de desestruturação e comunidades deslocadas. A área que está em processo de desapropriação é dividida em duas áreas, segundo os peticionários: Área I e Área II. A Área I refere-se à área em que se localizam as instalações do CLA, e a Área II corresponde ao restante do território, o qual o governo brasileiro está buscando expropriar. O CLA possui um cronograma de atividades em que pretende re-locar quase 400 famílias, em duas etapas[6]. Aduzem os peticionários que a situação de medo e insegurança nas comunidades ameaçadas de deslocamento é patente.   

 

21.      Para os peticionários os desapossamentos já realizados foram realizados de forma compulsória e simplista para áreas distantes do mar e dos igarapés. Não foi realizado nenhum diagnóstico com análises sistematizadas que permitisse uma avaliação da realidade socioeconômica e cultural, o interesse e especificidades dessas famílias como práticas agrícolas, atividades econômicas desenvolvidas, força de trabalho utilizada, apropriação dos recursos naturais, etc. Desta forma, os peticionários defendem que a manutenção das condições de continuidade das atividades econômicas não foram respeitadas[7].
 

22.       Afirmam os peticionários[8] que entre 1982 e 1985, residiam no local que hoje abriga a Área I cerca de 503 famílias distribuídas em 48 comunidades (ou povoados). Destas, 312 famílias de 31 povoados foram deslocadas para “agrovilas” - redutos habitacionais que foram construídos pelo Centro de Lançamento de Alcântara-, sendo que as comunidades que ficaram estão sendo ameaçadas de deslocamento forçado. A Area I refere-se a toda região litorânea do município, onde foram construídas as instalações do Centro Espacial.

 

23.        Relatam os peticionários que, a fim de amenizar os impactos e os prejuízos que lhes foram impostos, as várias comunidades que foram deslocadas de seus territórios solicitaram diversas medidas ao Ministério da Aeronáutica, o qual se comprometeu a providenciar a maior parte das solicitações. De acordo com os peticionários, passados quase três anos do comprometimento, nenhuma das solicitações havia sido atendida.

 

24.        Os peticionários afirmam que um número superior a 30 comunidades deslocadas[9] foram assentadas em 07 distritos agrícolas ou “agrovilas”.  De acordo com os peticionários, em algumas dessas “agrovilas” mais de uma comunidade foi arbitrariamente reunida em um mesmo lugar, e receberam denominação de apenas uma delas, fato que gera situações de conflito no interior do território e caracteriza um absoluto desrespeito à formação cultural originária de tais comunidades[10]. Para os peticionários, a mudança aos distritos agrícolas agravou a sobrevivência daqueles que foram remanejados, uma vez que a terra é de péssima qualidade, os recursos materiais são escassos, não há local de pesca, a caça ficou difícil, as praias e os rios ficaram distantes e o acesso aos recursos naturais é limitado pelo CLA.

 

25.       Concernente ao esgotamento de recursos internos, afirmam os peticionários que a legislação brasileira não admite que nas ações de desapropriação por utilidade pública se questione o mérito do decreto desapropriatório, entendendo-se que tal análise integra o poder discricionário do Executivo. Defendem que as comunidades expropriadas ficam desamparadas em razão da não existência de legislação interna do Brasil para questionar-se o mérito – a existência real de utilidade pública (exceção prevista no artigo 31(2)(a) do Regulamento da Comissão Interamericana). Por outro lado, defendem os peticionários que a demora de mais de 10 anos no ajuizamento das ações de desapropriação e discriminatórias, assim como a demora de quase 13 anos no processo de titulação das comunidades remanescentes de quilombos constituem uma demora injustificada no sentido contemplado no artigo 31(2)(c) do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

26.         Os peticionários sustentaram que todas as comunidades vitimas de expropriação, ameaçadas tanto de expropriação como de desestruturação, são remanescentes de quilombos. O laudo antropológico elaborado pelo Professor Alfredo Wagner Berno de Almeira, publicado em 2006, anexo a esta apresentação, descreve os requisitos definidores desta condição, as comunidades pertencentes à área de remanescentes de quilombos no Município de Alcântara e o território abrangido por estas 156 (cento cinqüenta e seis) comunidades.

 

27.         Quanto à Ação Civil Pública N° 1999.37.00.007382-0, em tramitação na Terceira Vara Federal de São Luís, Maranhão, afirmam que esta está à espera de solução há mais de 18 meses, desde 22 de fevereiro de 2005. Na Ação Pública Civil N° 2003.8868-2, em tramitação na Quinta Vara Federal da mesma localidade, em 27 de setembro de 2006, o Juiz proferiu uma resolução interlocutória que concedia ao INCRA um prazo de 180 (cento e oitenta) dias para prosseguir com a titulação definitiva das terras envolvidas. A Ação Coletiva Nº 2003.7826-3, em trâmite junto ao referido Juiz, está pendente de resolução desde 3 de outubro de 2005, há mais de um ano.

 

28.        Denunciam que desde meados de 2005, os quilombolas habitantes da região, que praticam cultivos em suas antigas terras que agora pertencem à Aeronáutica, estão sendo objeto de ameaças, perseguições, detenções e destruição de seus cultivos. Cinco (5) Mandados de Segurança foram articulados em 19 de setembro de 2006 por organizações sociais, para tentar reparar os atos descritos. As terras atribuídas aos prejudicados constituem pequenas parcelas não aptas para o cultivo, o que desestruturou o sistema do uso comum da terra, privando-os do indispensável para a subsistência. O único meio de assistência que possuem para subsistir é o programa “Bolsa-Família”, que lhes concede um pequeno estipêndio, que vem a ser exíguo.

 

29.        Denunciam que além das 8.700 (oito mil e setecentos) hectares ocupados pelo Centro de Lançamento de Alcântara, agora o Estado pretende ocupar 5.600 (cinco mil e seiscentos) hectares, mas para construir novos locais de lançamento de foguetes, o qual foi proposto às comunidades em 15 de julho de 2006 pelo Grupo Executivo Interministerial (GEI). Os afetados manifestaram-se contrários à denominada “Carta de Âlcantara”, de 12 de agosto de 2006. 


 

B.       Posição do Estado

 

30.       O Estado brasileiro afirma que não é omisso em relação à situação das comunidades rurais instaladas na área do CLA, ao contrário, o governo federal adota continuamente uma série de medidas para garantir o usufruto dos direitos humanos, especialmente os direitos econômicos, sociais e culturais, pelos membros daquelas comunidades. Por intermédio da agência Espacial Brasileira, (AEB), da INFRAERO (Aeroportos Brasileiros) e de outras agências estatais, o Estado tem implementado ações mitigadoras em favor das comunidades locais, tais como: o pagamento de indenizações de benfeitorias a posseiros, a melhoria e revitalização da infra-estrutura das “agrovilas”, o desenvolvimento sustentável das populações afetadas pela implantação do CLA e a titulação das terras e casas de 312 famílias transferidas para agrovilas em decorrência da construção das instalações do CLA. 

 

31.       O Governo Federal do Brasil estabeleceu um programa específico no “Plano Plurianual” (PPA) de 2004-2007 para o desenvolvimento das comunidades remanescentes de quilombos, com a definição de responsabilidades e prazos de execução. O “Programa Brasil Quilombola” reúne ações de diversas áreas governamentais voltadas para o desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas em consonância com suas especificidades históricas e contemporâneas.

 

32.       Informa o Estado brasileiro que a “Fundação Cultural Palmares (FCP)”[11] intensificou seus esforços na área de Alcântara a partir de 1998, estabelecendo uma série de parcerias com órgãos do governo estadual do Maranhão e do governo federal. A FCP tomou a iniciativa de estabelecer diálogo com as comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara, suas entidades representativas, organizações de apoios e líderes religiosos. O Estado opina que, embora o processo de reconhecimento dessas comunidades não tenha ainda sido finalizado, FCP atribui alta prioridade à conclusão desses trabalhos e à conseqüente titulação das terras.

 

33.       Nesse aspecto, o Estado brasileiro aduz que adere, de forma inequívoca, ao consenso internacional quanto a indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos, expresso na “Declaração e Programa de Ação de Viena” de 1993. No entanto, explica que os chamados direitos de segunda geração têm caráter programático e sua realização, especialmente num país marcado por acentuadas desigualdades regionais como é o caso do Brasil, se faz de maneira necessariamente progressiva.   

 

34.       Alega o Estado que o fim de utilidade pública a que se destina o “Centro de Lançamento de Alcântara” não se alterou com a celebração entre o Brasil e seus parceiros tecnológicos, de acordos bilaterais para a exploração comercial da base de lançamentos de Alcântara, inclusive do “Acordo sobre Salvaguardas Tecnológicas” firmado entre os governos da República Federativa do Brasil e dos Estados Unidos da América, em 18 de abril e 2000. Defende que a finalidade social atribuída ao CLA foi inteiramente preservada, uma vez que os objetivos de desenvolvimento social, econômico e tecnológico fixado nos instrumentos jurídicos que estabeleceram o centro de lançamento de foguetes e a missão espacial completa brasileira foram mantidos e atualizados. Para o Estado, portanto, não houve desvio de finalidade do CLA, em função da assinatura de acordo entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos da América.

 

35.       No que tange ao requisito de esgotamento prévio de recursos, afirma o Estado que a CIDH deve considerar inadmissível a denúncia, uma vez que não foi satisfeito o requisito do artigo 46(1)(a) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Acrescentam que tampouco parece aplicável a matéria, objeto de consideração, o princípio da demora injustificável ou procrastinação da aplicação dos remédios internos, consagrados no artigo 46(2)(c).

 

36.        Aclara o Estado que as ações ajuizadas sobre tema são as seguintes: (a) Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal[12], a qual tem por objeto a suspensão, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), das audiências públicas relativas ao licenciamento do CLA, no que tange exclusivamente ao impacto ambiental do projeto; (b) Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal[13] contra a União e a “Fundação Cultural Palmares”, que objetiva obrigar a “Fundação Cultural Palmares” a proceder o processo de avaliação das comunidades como remanescentes de quilombos ou não, bem como a suspender qualquer atividade de remanejamento dessas comunidades; (c) Ação Coletiva[14] proposta pela Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ, contra a União e o Estado do Maranhão, que pede o reconhecimento judicial das comunidades “Só-Assim” e “Itamatatiua” como remanescentes de quilombos e sua exclusão da área de implantação do CLA; (d) diversas ações de desapropriação ajuizadas pela União e pelo Estado do Maranhão[15], contra expropriados, denominados como proprietários e posseiros, ainda pendentes de julgamento pelas justiças federal e estadual.

 

37.       O Estado brasileiro acrescenta que as mencionadas ações encontram-se em tramitação e ainda contemplam a possibilidade de uma série de recursos judiciais caso venha a ser proferida decisão que seja insatisfatória aos peticionários[16]. Para o Estado, o próprio fato de que após a apresentação da petição à Comissão Interamericana foram iniciadas novas ações judiciais relativas às alegadas violações evidencia que os peticionários não buscaram atender o requisito de prévio esgotamento de recursos internos e se precipitaram em trazer suas alegações a Comissão.
 

38.         O Estado insurge-se contra a suposta adequação do prazo do artigo 32(1) do Regulamento da CIDH. Afirmam que a decisão final da justiça brasileira sobre as diferentes ações ajuizadas ainda não foi tomada e, por conseguinte, deve presumir-se o não esgotamento de recursos da jurisdição interna. O Estado brasileiro rejeita, portanto, a noção de violação continua dos direitos humanos das comunidades quilombolas da região de Alcântara, uma vez que as ações civis seguem seu curso normal de tramitação e as medidas administrativas cabíveis estão sendo adotadas pelos órgãos estatais competentes.

 

39.          O Estado manifestou que tem adotado diversas medidas de natureza política, legislativa e administrativa dirigidas às comunidades restantes de quilombos, descritas na resposta apresentada em agosto de 2005. Afirma-se que, em 20 de novembro de 2003, foi promulgado o Decreto Presidencial N° 4.887 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação de terras ocupadas pelas comunidades de referência. Isto é resultado do trabalho do “Grupo de Trabalho Interministerial” (GEI), coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR), com a participação de representantes da sociedade civil e líderes quilombolas. Este grupo deve acompanhar um projeto de desenvolvimento sustentável da região. O Estado não questiona que as comunidades em representação de quem se articula o pedido sejam remanescentes de quilombos. Recapitulam a história do Centro de Lançamento de Alcântara, a área a ser ocupada por este e o modo como foi expropriada.

 

40.        Aduz que a interposição da Ação Civil Pública N° 1999.37.00.007382-0, a Ação Civil Pública N° 2003.8868-2 e a Ação Coletiva N° 2003.7826 são de um tempo anterior à criação do Grupo Executivo Interministerial (GEI). Quanto ao primeiro processo de referência, sustentam que a Advocacia Geral da União requereu sua extinção atendendo à perda do objeto. Em relação à Ação Civil Pública N° 2003.8868-2, alegam que o Ministério Público solicitou a revogação da tutela antecipada que fora conferida no sentido de concluir a titulação das terras ocupadas pelas comunidades afetadas, solicitando que a União e a Agência Espacial Brasileira se abstenham de dar trâmite aos atos de perseguição tendentes à implantação do Centro Espacial de Alcântara, até a conclusão do processo administrativo de titulação, dando a entender que existe uma vontade das partes de pôr termo à ação. Quanto à Ação Coletiva Nº 2003.7826, referem que esta visa ao reconhecimento das comunidades afetadas pelo Centro de Lançamento de Alcântara, como remanescentes de quilombos, mas que, em setembro do corrente ano, alguns Mandados de Segurança foram impetrados perante a Justiça Federal, requerendo o reconhecimento do direito ao uso da terra já expropriada, sobre administração do CLA, em relação aos quais se concedeu uma tutela liminar que garante o uso da terra aos afetados. Em virtude do exposto, reiteram que o pedido deve ser rejeitado por não terem sido esgotados os recursos internos.

 

41.        Conclui afirmando que, em conformidade com o Decreto N° 4887/2003, teve início o processo de elaboração de um “Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID)”, para as comunidades restantes de quilombos de Alcântara. Em março de 2006, teve início um processo de cadastramento da propriedade, o qual está paralisado, mas que, no longo prazo, será conseguida a total titulação das terras afetadas para as comunidades de quilombos, tudo o que dá a entender que ainda devem ser esgotados os remédios internos.

 

IV.      ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência rationae personae, rationae materiae, rationae temporis, rationae loci

 

42.         De acordo com o artigo 44 da Convenção Americana e o artigo 23 do Regulamento da CIDH, os peticionários, como entidades não-governamentais legalmente reconhecidas, são partes legítimas para apresentar petições à Comissão em relação às supostas violações dos direitos consagrados na Convenção Americana. Por outro lado, o Brasil é parte da Convenção e, desta forma, responde na esfera internacional pelas violações desse instrumento.

 

43.         A Comissão considera como supostas vítimas os membros das seguintes comunidades: Mamuna, Águas Belas, Caiuaua, Baracatatiua, São Francisco, Barbosa, Pacoval, Corre Prata, Brito, Itapera, Mamuninha, Folhau, Santa Maria, Tacaua, Bom Viver, Uru-Grande, Uru-Mirim, Arapiranga, Canelatiua, Retiro, Vista Alegre, Rio Verde, Centro Alegre, Mato Grosso, Itapuaua, Perizinho, Esperança, Cajitiua, Murari, Ladeira, Iririzal, Samucangaua, Espera, Barro Alto, Ponta Seca, Curuçá, Laje, Pepital, Cajueiro, Só Assim, Boa Vista, Norcasa, Sozinho, Baracatatiua, São Raimundo, Jabaquara, Jardim, Santa Cruz, Titica, Porto, Santa Rosa, Pirarema, Marudá, Santo Antonio, Ponta, Jenipaúba, Camarajó, Capijuba e Ladeira. Essas comunidades correspondem àquelas deslocadas, ameaçadas de deslocamento, bem como aquelas que se encontram ameaçadas de desestruturação, desde o ano de 1980 quando foi firmado o decreto estadual Nº 7.820, o qual declarou a área do CLA de utilidade pública para fins de desapropriação.

 

44.        A competência rationae materiae, refere-se à denúncia de violação dos direitos humanos protegidos pela Convenção Americana em seus artigos 1(1), 8, 17, 21, 22, 25, 26. A Comissão tem competência racionae loci porque os fatos alegados ocorreram no território da República Federativa do Brasil, país que ratificou a Convenção Americana.  

 

45.        Os fatos descritos ocorreram a partir de 1980[17], época em que o Estado brasileiro não havia ratificado a Convenção Americana. No entanto, todos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos estão sujeitos à jurisdição da Comissão que, nos termos do artigo 20 de seu Estatuto, deverá examinar as comunicações que tratem de supostas violações da Declaração Americana. Sobre esta base, a Comissão tem jurisdição rationae temporis para determinar se no período anterior a 25 de setembro de 1992, data de ratificação da Convenção pelo Estado, houve violação aos artigos VI, VIII, XII, XIII, XIV, XVIII, XXII e XXIII da Declaração Americana.

 

46.       A competência rationae temporis é verificada, após 25 de setembro de 1992, uma vez que ocorreram quando já estava em vigor a obrigação de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção pelo Estado brasileiro.

 

V.      REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE

 

A.      Esgotamento de recursos internos

 

47.        De conformidade com o artigo 46(1) da CADH, para que uma petição seja admitida pela Comissão, é necessário que sejam esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos. No item 2 do mesmo artigo estabelece-se, entretanto, que essas disposições não se aplicarão quando não exista na legislação interna o devido processo legal para proteção do direito em questão; ou se a suposta vítima não teve acesso aos recursos da jurisdição interna; ou se há um atraso injustificado na decisão sobre os mencionados recursos.

 

48.        O requisito do esgotamento prévio de recursos internos se relaciona com a possibilidade que tem o Estado de investigar e punir as violações de direitos humanos cometidos por seus agentes, por intermédio de seus órgãos judiciais internos, antes de se ver exposto a um processo internacional. Ele pressupõe, no entanto, que exista no nível interno o devido processo judicial para investigar essas violações e que essa investigação seja eficaz, pois do contrário a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46(2)(a), da Convenção, pode conhecer do caso antes de esgotados os recursos internos.

 

49.        A CIDH considera que os recursos internos pertinentes para cessar as supostas violações alegadas são aqueles relacionados com o não remanejamento das comunidades da região em que foi decretada a utilidade pública, com a posterior e gradativa desapropriação.

 

50.        Os peticionários invocaram a exceção de esgotamento dos recursos internos contemplada no artigo 31(2)(a) do Regulamento da CIDH, em virtude da falta de recurso adequado no ordenamento jurídico interno brasileiro para questionar o mérito do decreto desapropriatório; e no artigo 31(2)(b) do Regulamento da CIDH, em razão da demora injustificada para solucionar os processos sob jurisdição brasileira.

 

51.       O Estado, por outro lado, objetou o não cumprimento do requisito de prévio esgotamento dos recursos internos, por considerar que os processos sobre o tema encontram-se ativos na instância nacional. Os peticionários afirmam, a este respeito que não há recurso interno efetivo para discutir a declaração de utilidade pública pelo Estado brasileiro e ainda salientam a demora do judiciário brasileiro em concluir os procedimentos judiciais em trâmite.

 

52.        O Decreto-lei 3.365/41 - o qual trata da desapropriação em razão da utilidade pública, no Estado brasileiro – determina que é vedado, ao poder judiciário no processo desapropriatório, decidir a existência ou não da utilidade pública[18]. Infere-se desta ordem legal que ao judiciário não é permitida apreciação de mérito no que tange a determinação de utilidade pública.

 

53.       Nesse sentido, a Comissão considera que ainda que sejam intentadas ações judiciais, a decisão de desapropriação em razão da utilidade pública não será revertida por haver lei específica sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro.

 

54.        Ademais, a Comissão entende que, para saber se foram esgotados os recursos da jurisdição interna, deve ser tomada em conta a situação existente no momento de decidir sobre a admissibilidade. Portanto, ainda que os peticionários tenham intentado ações posteriores à abertura do caso perante a CIDH, deve ser analisada a situação atual dos processos judiciais intentados.   

 

55.        Em 1999 foi intentada uma Ação Civil Pública sob Nº 1999.37.00.007382-0, proposta pelo Ministério Público Federal contra a União, o IBAMA – (Instituto brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), e a INFRAERO – (Empresa brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária), com alegações de irregularidades no processo de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente referente a atividades do “Centro de Lançamento de Alcântara” (CLA). A CIDH observa que ainda que esta ação resulte satisfatória aos autores, sua decisão não seria capaz de cessar o dano denunciado pelos peticionários, uma vez que o objeto deste litígio não afeta, diretamente, a situação de remanejamento das comunidades da região de Alcântara. A partir de 1980[19], diversas ações de desapropriação foram intentadas pelo Estado do Maranhão, estas tramitam perante a Justiça Federal. A Comissão assevera que tais ações judiciais não são capazes de versar sobre a questão de utilidade pública e pautam-se estritamente em relação ao preço a ser pago pela desapropriação[20].

 

56.       Em 2003 foi proposta pelo Ministério Público Federal uma Ação Civil Pública, sob Nº 2003.8868-2, contra a União e a “Fundação Cultural Palmares”, a qual busca obrigar a “Fundação Cultural Palmares” a proceder o processo de avaliação das comunidades como remanescentes de quilombos ou não, bem como a suspender qualquer atividade de remanejamento dessas comunidades. A CIDH observa que o eventual reconhecimento das terras como remanescentes de quilombos não obstará eventual desapropriação da União no intuito de defender o interesse público, visto que não cabe ao poder judiciário apreciar a decretação de utilidade pública, com base na legislação geral sobre o tema[21]. Em 2003 foi proposta a Ação Coletiva, sob Nº 2003.7826-3, proposta pela “Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão” – ACONERUQ, contra a União e o Estado do Maranhão, que pede o reconhecimento judicial das comunidades “Só Assim” e “Itamatatiua” como remanescentes de quilombos e sua exclusão da área de implantação do CLA. Foram incluídos como co-réus a “Fundação Cultural Palmares” e o INCRA – (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A Comissão salienta que esta Ação refere-se a comunidades específicas e, sua conclusão, não modifica a situação de todas comunidades de quilombos existentes na região; por outro lado, esta Ação não poderia retirar a determinação de utilidade pública determinado pelo Estado, pois se trata de poder discricionário, como já explicitado.

 

57.       A CIDH considera, por outro lado, que se poderia verificar a demora injustificada no caso em tela, em razão da falta de decisão de primeiro grau destas ações judiciais, as quais foram intentadas em 1999 e 2003.

 

58.       Da análise das informações encaminhada pelos peticionários e pelo Estado, não se conclui que nenhuma das ações individualizadas tenham produzido qualquer resultado eficaz tendente a pôr termo e reparar as violações denunciadas. Como os remédios que proporciona a legislação interna até esta data não produzido efeito, a CIDH permite-se considerar que se aplica a exceção ao esgotamento dos recursos internos.

 

59.       A CIDH contempla que a invocação das exceções à regra do esgotamento dos recursos internos prevista no artigo 46(2) da Convenção encontra-se estritamente ligada à determinação de possíveis violações a certos direitos ali consagrados, tais como a garantia ao acesso à justiça. Contudo, o artigo 46(2) da Convenção Americana, em razão de sua natureza e objeto, é uma norma com conteúdo autônomo, vis á vis as normas substantivas da Convenção. Portanto, a determinação sobre as exceções da regra de esgotamento de recursos internos prevista nesta norma resulta aplicável ao caso em questão de maneira prévia e separada da análise de fundo sobre o assunto, já que depende de uma apreciação distinta daquela sobre a qual foi utilizado para determinar a violação dos artigos 8 e 25 da Convenção. A Comissão aclara que as causas e os efeitos que impediram o esgotamento dos recursos internos no presente caso será analisado no Informe que adote a Comissão sobre o fundo da controvérsia, a fim de constatar se, efetivamente, configuram violações a Convenção Americana.

 

60.       Pelos argumentos que antecedem, a CIDH considera que existem suficientes elementos de juízo para eximir o peticionário do requisito prévio de esgotamento de recursos internos na aplicação do artigo 46(2) da Convenção Americana.

 

B.       Prazo para apresentação da petição

 

61.        O artigo 32 do Regulamento da CIDH contempla que nos casos em que resultem aplicáveis as exceções ao requisito de esgotamento de recursos internos, a petição deverá ser apresentada dentro de um prazo razoável. No presente caso, as exceções previstas no artigo 31(2) do regulamento da CIDH já foram examinadas no item dos requisitos de esgotamento de recursos internos.

 

62.         A CIDH considera que a análise da data em que ocorreram os fatos alegados[22] conjuntamente com a possibilidade de encontrar-se diante de uma violação de natureza continuada de direitos humanos e a situação dos diversos processos judiciais pendentes de decisão no Brasil, permite que a Comissão conclua que a petição em estudo foi apresentada em um prazo razoável.

 

63.        A suposta violação inicial de direitos humanos ocorreu com o decreto Nº 7.820 de 12 de setembro de 1980, a qual declarou a área do CLA de utilidade pública para fins de desapropriação. As possíveis violações posteriores, conforme denunciado, ocorreram gradativamente com a transferência de determinadas famílias para as “agrovilas”, bem como em relação à ameaça de desapropriação que afetou diversas famílias.

 

64.        A CIDH considera que, quando as violações de um caso em concreto caracterizam-se contínuas, não há uma data determinada a partir da qual se possa medir a razoabilidade. As desapropriações ocorreram em momentos distintos e a ameaça de desapropriação poderia ser qualificada como uma violação contínua. Desta forma, a Comissão assevera que a presente petição foi interposta em um prazo razoável, em virtude das violações iniciais perdurarem até o momento da realização deste informe.  

 

C.      Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

65.       A Comissão entende que do expediente não se pode inferir que a denúncia apresentada esteja pendente de outro procedimento internacional e que não recebeu informação alguma que indicasse a existência de situação dessa natureza, bem como não considera que se reproduza a petição ou comunicação em outra anteriormente examinada por ela, motivo por que considera que ficam atendidas as exigências dos artigos 46.1(c) e 47(d), da Convenção.

 

D.      Caracterização dos fatos

 

66.         A Comissão considera que, prima facie, os fatos alegados pelos peticionários podem caracterizar o descumprimento das obrigações emergentes do artigo 1 (1), em conexão com a violação do artigo 17, em relação às famílias reassentadas e às famílias ameaçadas de reassentamento; 16, no tocante à individualidade das comunidades existentes na região de Alcântara; 21, no concernente à expropriação das terras dadas às comunidades restantes de quilombos, com fundamento no artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de 1988; 22, uma vez que é possível que tenha sido violado o direito das comunidades reassentadas nas “agrovilas” de circular para pescar e plantar, bem como em relação às supostas diminutas propriedades oferecidas às comunidades quilombolas. No pertinente às eventuais violações dos artigos 8 e 25, as supostas vítimas seriam todas as pessoas que possam ter sofrido pelas condições a que foram expostas em razão de ter-se decretado a utilidade pública dos terrenos, com a posterior expropriação de algumas famílias. Tratando-se de comunidades afrodescendentes que alegam que seus direitos não teriam sido adequadamente tutelados, a CIDH considera motu proprio que os fatos poderiam caracterizar uma violação ao artigo 24, em conexão com em 1 (1).

 

67.        Por outra parte, a Comissão decide admitir igualmente a presente com respeito às eventuais violações ao artigo 2 da Convenção Americana, toda vez que, conforme se assinalou acima, a Comissão, no marco da análise dos recursos internos, decidiu admiti-lo por considerar a possibilidade de que a legislação brasileira poderia não oferecer um efetivo processo legal para discutir a decretação de utilidade pública no processo de desapropriação.  

 

V.      CONCLUSÃO

 

68.     A Comissão conclui que é competente para tomar conhecimento desta petição e que a mesma atende aos requisitos de admissibilidade, de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

DECIDE:

 

1.       Declarar, sem prejuízo do mérito deste pedido, que o mesmo é admissível em relação aos fatos denunciados e aos artigos 16, 17, 21, 24, 8 e 25, em conjunto com os artigos 1(1) e 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, tanto como os artigos VI, VIII, XII, XIII, XIV, XVIII, XXII e XXIII da Declaração Americana, para os fatos ocorridos antes de 25 de setembro de 1992.

 

2.       Enviar este relatório ao Estado e aos peticionários.

 

3.       Publicar esta decisão e incluí-la em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA.

 

Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 21 dias de outubro do ano de 2006. (Assinado): Evelio Ferández Arévalos, Presidente; Florentín Meléndez, Segundo Vice-presidente; Comissionados: Freddy Gutiérrez, Paolo Carozza y Víctor Abramovich.


[1] Constituição da República Federativa do Brasil (1988), artigo 68: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

[2] Portaria 447, de 2 de dezembro de 1999.

[3] Criado pelo Decreto Federal nº 88.136, de 1º de março de 1983.

[4] Decreto nº 7.820, de 12 de setembro de 1980.

[5] Firmado em 18 de abril de 2000. Regula o acesso e o uso das instalações do Centro de Lançamento.

[6] A primeira etapa (que corresponde a terceira fase desde a implantação do CLA) envolverá 261 famílias de 16 comunidades, incluindo-se aí as que serão transferidas e as que receberão outras famílias. Segundo o CLA, serão transferidas 158 famílias pertencente às comunidades de Mamuna (56 famílias), Águas Belas (08 famílias), Caiuaua (02 famílias), Baracatatiua (26 famílias ), São Francisco (02 famílias), Barbosa (02 famílias), Pacoval (02famílias), Corre Prata (01 família), Brito (28 famílias), Itapera (19 famílias) e Mamuninha (12 famílias).

A segunda fase (que corresponde à quarta fase desde o início da implantação do CLA) transferirá 215 famílias, das comunidades de Folhau (20 famílias), Santan Maria (66 famílias), Tacaua (09 famílias), Bom Viver (12 famílias), Uru-Grande (05 famílias), Uru-Mirim (02 famílias), Arapiranga (01 família), Canelatiua (48 famílias), Retiro (14 famílias), Mato Grosso (04 famílias), Centro Alegre (03 famílias), Rio Verde (01 família) e Vista Alegre (30 famílias).

[7] Dados provenientes do relatório da Assessoria Antropológica do Ministério Público Federal, datado de 06 de outubro de 1999.

[8] Dados provenientes da Companhia de Colonização do Nordeste (COLONE).

[9] Na primeira fasede implantação do CLA, compreendida entre julho e dezembro de 1986, foram transferidas 112 famílias de 10 povoados, assentados em distritos agrícolas construídos na área conhecida como Fazenda Norcasa. As comunidades deslocadas foram: Espera, Barro Alto (11 famílias), Ponta Seca, Curuca e Laje (13 famílias), Pepital (38 famílias), Cajueiro (33 famílias), Só Assim, Boa Vista e Norcasa (17 famílias).

Na segunda fase, compreendida entre novembro de 1987 e dezembro de 1988, foram transferidas 200 famílias de 21 povoados assentados em 02 distritos agrícolas construídos na área que inclui parte das fazendas Rio Grande e Mutiti e parte das terras Devolutas VIII. As comunidades deslocadas para a agrovila denominada “Marudá” foram: cem famílias das comunidades de Sozinho, Baracatatiua, São Raimundo, Jabaquara, Curuçá, Jardim, Santa Cruz, Titica, Porto, Santa Rosa, Pirarema, Marudá, Santo Antonio, Ponta, Jenipaúba, Camarajó, Capijuba, parte de Águas Belas, Corre Prata e Ladeira (algumas famílias).  As comunidades deslocadas para a agrovila denominada “Peru” foram: Sozinho, Santa Cruz, Titica, Porto, Cavém, Peru, Camarajó, Capijuba, parte de Águas Belas e Corre Prata.

[10] É a situação da “agrovila” Só Assim que foi constituída pela junção forçadas das comunidades de Só Assim, Boa Vista e Norcasa. A “agrovila” Marudá, da mesma forma, foi formada pelo agrupamento compulsório de 20 comunidades distintas.

[11] Órgão responsável da identificação e titulação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos nos termos do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

[12] Tramitação na Justiça Federal: nº 1999.37.00.007382-0. Aguarda sentença no âmbito da Justiça Federal.

[13] Tramitação na Justiça Federal: nº 2003.8868-2. Aguarda sentença desde 26 de setembro de 2003, na 5ª Vara Federal do estado do Maranhão.

[14] Tramitação na Justiça Federal: nº 2003.7826-3.

[15] Não há informação nas petições de ambas as partes sobre o número dos processos de desapropriação existentes.

[16] Apelação ao Tribunal Regional Federal, conforme os artigos 513 a 521 do Código de Processo Civil; Embargos de divergência caso a decisão do tribunal sobre a apelação reforme a sentença de mérito e não seja unânime, conforme os artigos 530 a 534 do Código de Processo Civil; Agravo se da decisão de admissibilidade do juiz relator do órgão recorrido que negue seguimento aos embargos de divergência; recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal no caso a decisão de apelação seja considerada insatisfatória.

[17] Decreto estadual nº 7.820, de 12 de setembro de 1980.

[18]  Art. 9o  Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública.

[19] Decreto Estadual nº 7.820/80.

[20] Decreto-lei 3.365/41, art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou a impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.

[21] Decreto-lei 3.365/41.

[22] Decreto estadual nº 7.820, de 12 de setembro de 1980 que declarou a área de utilidade pública para fins de desapropriação; o remanejamento de 312 famílias entre os anos de 1982 e 1985; o cronograma de etapas do programa do CLA para remanejar mais de 400 famílias (ainda não satisfeito).