RELATÓRIO Nº 73/08

PETIÇÃO 1236-06

ADMISSIBILIDADE

GABRIEL SALES PIMENTA

BRASIL[1]

17 de outubro de 2008

 

 

I.          RESUMO

 

1.            Em 9 de novembro de 2006, o Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) (doravante os “peticionários") apresentaram uma denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Comissão", a “Comissão Interamericana” ou a “CIDH”) contra a República Federativa do Brasil (doravante o “Estado" ou o “Brasil”) pela suposta violação do direito à vida, à segurança e integridade pessoal; do direito à justiça e do direito de associação, todos previstos nos artigos I, XVIII e XXII, respectivamente, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (doravante a “Declaração” ou a “Declaração Americana”) e supostas violações das garantias e proteção judicial, consagrados, respectivamente, nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante a “Convenção” ou a “Convenção Americana"), em conjunto com o descumprimento da obrigação geral de respeitar os direitos prevista no artigo 1.1 do mesmo tratado, em prejuízo de Gabriel Sales Pimenta (doravante a “suposta vítima”).

 

2.                  A petição denuncia o assassinato da suposta vítima, defensor de direitos humanos e sócio fundador da Associação Nacional de Advogados dos Trabalhadores da Agricultura, que exercia o cargo de advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá, no Estado do Pará, em 18 de julho de 1982. Segundo os peticionários, o crime foi motivado pela atuação de Gabriel Sales Pimenta na luta pelos direitos dos trabalhadores rurais da região e alegam que não foi devidamente prevenido pelo Estado, nem tampouco foi devidamente investigado posteriormente, permanecendo, impunes os responsáveis pelo mesmo.

 

3.                  O Estado apresentou contestação à petição em 4 de junho de 2007, argumentando sua inadmissibilidade em razão do disposto no artigo 47.b da Convenção, ou seja, alegando que o Estado não é responsável pelo assassinato da suposta vítima em virtude de que o mesmo não foi perpetrado por agentes estatais; dessa forma, argumenta que a petição não expõe fatos que caracterizem uma violação de direitos garantidos pela Convenção Americana ou outros instrumentos aplicáveis.

 

4.                  Após examinar as posições das partes, à luz dos requisitos de admissibilidade estabelecidos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana, a Comissão decidiu declarar admissível o caso com relação aos artigos I, XVIII e XXII da Declaração Americana, bem como aos artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana em conexão com a obrigação geral estabelecida no artigo 1.1 do mesmo instrumento internacional. Em conseqüência, a Comissão decidiu notificar as partes e tornar público este Relatório de Admissibilidade e incluí-lo em seu Relatório Anual.
 

II.         TRÂMITE PERANTE A COMISSÃO

 

5.                Em 9 de novembro de 2006, a Comissão recebeu uma denúncia apresentada pelos peticionários. As partes pertinentes da denúncia foram transmitidas ao Estado, para que este apresentasse sua contestação no prazo de 60 dias, contados a partir de 5 de fevereiro de 2007. Em 4 de junho de 2007, o Estado apresentou sua contestação à petição.

 

6.                  Os peticionários ofereceram informação adicional à CIDH em 17 de novembro de 2006, 20 de julho de 2007, 19 de outubro de 2007 e 5 de março de 2008. Essas comunicações foram devidamente transmitidas ao Estado.

 

7.                  Além disso, a CIDH recebeu informações do Estado em 29 de agosto de 2007 e em 3 de janeiro de 2008. Essas comunicações foram devidamente encaminhadas aos peticionários.

 

III.        POSIÇÕES DAS PARTES

 

A.         Posição dos peticionários

 

8.             Os peticionários alegam que Gabriel Sales Pimenta era advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá (doravante o “Sindicato”), no Estado do Pará. Segundo o informado, a suposta vítima exercia um papel essencial na representação dos trabalhadores rurais nesse estado federado, uma vez que conseguira cancelar, por meio de ação judicial de mandado de segurança, os efeitos de uma medida cautelar concedida pelo juiz de primeiro grau, em um processo de reintegração de posse, que havia determinado o despejo de 158 famílias que ocupavam terras da região conhecida como Pau Seco, no município de Marabá. Como resultado das atividades promovidas pela suposta vítima, as 158 famílias voltaram para essas terras do Pau Seco.

 

9.                  Alegam que a suposta vítima passou, assim, a receber ameaças por parte dos fazendeiros Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega, no sentido de que deveria eximir-se de atuar em favor dos trabalhadores. Os peticionários aduzem que era de conhecimento público que o senhor Manoel Cardoso Neto tinha ameaçado de morte Gabriel Sales Pimenta, inclusive especificando que a mesma ocorreria antes de 4 de agosto de 1982 (data em que seria realizada uma audiência judicial sobre a posse da terra do Pau Seco).

 

10.              Aduzem os peticionários que, em 18 de julho de 1982, Gabriel Sales Pimenta foi à reunião do partido político ao qual pertencia e depois a um restaurante, sendo assassinado enquanto saía do restaurante em Marabá com tiros de arma de fogo, à queima-roupa, em via pública. Observam que o crime foi cometido na presença de dois amigos da suposta vítima, Edson Rodrigues Guimarães e Neuzila Cerqueira Guimarães, sem que o autor material escondesse seu rosto, com o claro propósito de intimidação e mostra de poder.

 

11.              Os peticionários indicam que, em seguida, se instaurou o Inquérito Policial IPL Nº 024/82 sobre o crime. Além disso, essa investigação teria coletado as seguintes provas: declarações das pessoas suspeitas (Manoel Cardoso Neto, José Pereira da Nóbrega e Crescêncio Oliveira de Sousa); exame cadavérico realizado em 20 de julho de 1982; busca na residência de Manoel Cardoso Neto; exame balístico, em 21 de julho de 1982, das armas (uma apreendida na residência de Manoel Cardoso Neto e a outra de propriedade de José Pereira da Nóbrega); investigação de compra, por Manoel Cardoso Neto, de um automóvel semelhante ao utilizado no assassinato e um parecer técnico de peritos.

 

12.              Os peticionários indicam que, com base nas provas, a polícia concluiu, em 22 de julho de 1982, que Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega foram os autores intelectuais do assassinato. Posteriormente, em 8 de setembro de 1982, a polícia concluiu que Crescêncio Oliveira de Souza fora o autor dos disparos. Em 20 de julho de 1982, os acusados Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega foram detidos para investigação policial. Em 28 de julho de 1982, a Juíza de Direito da Comarca de Marabá determinou a prisão preventiva dos dois acusados. Em contrapartida, aos 31 de julho do mesmo ano, a Juíza revogou sua decisão e determinou a liberdade dos acusados.

 

13.              Segundo os peticionários, alguns dias depois, em 6 de agosto de 1982, com base na identificação de uma testemunha ocular, o Delegado de Polícia responsável pelo caso pediu que fosse decretada com urgência a prisão preventiva dos acusados, especialmente em virtude de ser a referida testemunha menor de idade (Luzia Batista da Silva), que identificou José Pereira da Nóbrega como a pessoa que dirigia o automóvel utilizado para o assassinato da suposta vítima. O objetivo era preservar a integridade física da testemunha. No entanto, a Juíza não decretou a prisão preventiva, que só voltaria a ser decretada em 20 de junho de 1984, diante da ausência dos acusados à audiência.

 

14.              Em conformidade com o alegado, em 19 de agosto de 1983 o Ministério Público, como titular da ação penal, apresentou Denúncia[2] contra as três pessoas identificadas, na linha do relatório da investigação policial e individualizando a conduta delitiva, iniciando-se, assim, a Ação Penal Nº 1.130/83[3] um ano e um mês depois do crime.

 

15.              Segundo os peticionários, no tocante aos requisitos de admissibilidade, os recursos internos estão esgotados devido a que, depois de seguir em tramitação por quase 24 anos desde a morte do líder sindical - dos quais 18 anos teriam passado sem que se concluísse a etapa inicial de instrução processual - os órgãos judiciais teriam decretado a prescrição da ação penal respectiva, em 8 de maio de 2006. O esgotamento por meio da prescrição, conforme alegam os peticionários, ocorreu em virtude da conduta ou inércia estatal que não providenciou uma investigação rápida, séria e eficaz dos fatos. Portanto, os peticionários aduzem que os responsáveis pela morte da suposta vítima continuam na impunidade, sem que as investigações e ações penais instauradas conseguissem a punição dos responsáveis por esse crime.

 

16.              Em síntese, os peticionários alegam que o Estado não preveniu o assassinato da suposta vítima, apesar das denúncias públicas a respeito, da situação de insegurança e dos antecedentes violentos na região do Pau Seco. Além disso, acrescentam que o assassinato da suposta vítima foi motivado por sua participação ativa na representação dos direitos dos trabalhadores rurais, o que violaria o direito à liberdade de associação. Observam, por último, que ninguém foi punido pelo ocorrido e os familiares da suposta vítima não foram civilmente indenizados, violando seus direitos ao devido processo e acesso à justiça.

 

B.         Posição do Estado

 

17.              O Estado apresentou suas alegações sobre a denúncia em 4 de junho de 2007. Na oportunidade, mencionou não haver violação da Convenção Americana, pois o assassinato da suposta vítima não foi perpetrado por agentes estatais e por haver, no Brasil, um ordenamento jurídico composto por normas com a finalidade de reprimir essas condutas criminosas. Do mesmo modo, o Estado informa que, apesar das alegações de que a suposta vítima foi ameaçada antes de seu assassinato, não há registro de que denúncias tenham sido feitas perante as autoridades estatais; portanto, o Estado não tinha como garantir sua vida e integridade física, em virtude de não ter conhecimento dessas ameaças à suposta vítima.

 

18.              Do mesmo modo, o Estado indica que as acusações relacionadas à violação das garantias judiciais seriam improcedentes, posto que a demora no processo ocorreu por circunstâncias que escapam ao controle estatal, tais como a fuga dos acusados e a impossibilidade de violar garantias processuais fundamentais dos acusados (contraditório, ampla defesa e prescrição).

 

IV.        ANÁLISE DE ADMISSIBILIDADE

 

A.      Competência da Comissão ratione personae, ratione temporis, ratione materiae e ratione loci

 

19.              Em conformidade com o artigo 44 da Convenção Americana e 23 do Regulamento da Comissão, os peticionários, como entidades não-governamentais juridicamente reconhecidas, estão facultados a apresentar petições perante a CIDH, referentes a supostas violações à Convenção Americana. No tocante ao Estado, a Comissão observa que o Brasil, como Estado Membro da Organização dos Estados Americanos[4], tem obrigações previstas na Declaração Americana; é também Estado Parte da Convenção Americana, tendo-a ratificado em 25 de setembro de 1992. A Comissão observa que a petição refere como suposta vítima Gabriel Sales Pimenta, pessoa individual a quem o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar e garantir os direitos consagrados na Declaração e a Convenção Americana.  Portanto, a Comissão tem competência ratione personae para examinar a denúncia.

 

20.              Quanto à competência ratione temporis, a Comissão é competente para analisar possíveis violações aos direitos humanos protegidos pela Declaração e pela Convenção, de acordo com os artigos 1.2.b e 20 de seu Estatuto. O fato de o Brasil ter ratificado a Convenção em 25 de setembro de 1992 não o exime de seu dever de respeitar os direitos humanos anteriormente a essa ratificação, uma vez que esses direitos estão garantidos na Declaração Americana, a qual constitui uma fonte de obrigação de direito internacional[5]. Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante a “Corte”, a “Corte Interamericana” ou o “Tribunal”) explicitamente reconheceu a força obrigatória da Declaração Americana, ao estabelecer que “os artigos 1.2.b e 20 do Estatuto da Comissão definem, igualmente, a competência da mesma a respeito dos direitos humanos enunciados na Declaração. Ou seja, para estes Estados a Declaração Americana constitui, no tocante e com relação à Carta da Organização, uma fonte de obrigações internacionais".[6]

 

21.              Os fatos descritos ocorreram a partir de 1982, quando o Estado ainda não tinha ratificado a Convenção Americana. Sobre esta base, a Comissão tem jurisdição ratione temporis para determinar se no período anterior a 25 de setembro de 1992, data de ratificação da Convenção pelo Estado, houve violação dos direitos humanos consagrados na Declaração Americana. Da mesma maneira, a Comissão tem jurisdição em razão do tempo no tocante às supostas violações dos direitos e liberdades previstos na Convenção Americana, com relação aos fatos ocorridos após a ratificação do referido Tratado.

 

22.              Na petição são denunciadas violações de direitos protegidos na Declaração e na Convenção Americana. Ante o exposto, a Comissão tem competência ratione materiae para examinar a denúncia.

 

23.              Finalmente, a Comissão tem competência ratione loci para conhecer desta petição, uma vez que nela se alegam violações de direitos protegidos na Declaração e na Convenção Americana que teriam ocorrido no território de um Estado Parte desses instrumentos.

 

B.         Outros requisitos de admissibilidade da petição

 

1.         Esgotamento de recursos internos

 

24.              O artigo 46.1.a da Convenção Americana estabelece como requisito de admissibilidade de uma petição o prévio esgotamento dos recursos disponíveis na jurisdição interna do Estado.

 

25.              A este respeito, a CIDH observa que, segundo a informação fornecida por ambas as partes, é um fato incontroverso que a suposta vítima foi assassinada, na cidade de Marabá, em 18 de julho de 1982. Seguiu-se uma investigação policial (IPL Nº 024/82), a qual determinou indícios de autoria do crime com relação a três pessoas, a saber, Manoel Cardoso Neto, José Pereira da Nóbrega e Crescêncio Oliveira de Souza. Em 19 de agosto de 1983 o Ministério Público apresentou uma denúncia penal contra as mencionadas três pessoas.

 

26.              Neste sentido, a Comissão toma nota de que, em conformidade com os documentos apresentados pelas partes, a Juíza de Direito recebeu a denúncia penal em 23 de agosto de 1983. A etapa inicial da instrução, referente aos interrogatórios dos acusados, se teria prolongado por cinco anos, de 1983 a 1988, quando o último réu, Manoel Cardoso Neto, foi interrogado pela autoridade judicial em 29 de abril de 1988. Segundo o expediente perante a CIDH, a etapa seguinte da instrução, referente às declarações das testemunhas, se teria prolongado de 1988 a 1991. Neste período foram determinadas diversas audiências, muitas das quais foram adiadas. Do mesmo modo, a etapa de apresentação de alegações finais das partes se teria prolongado por sete anos, de 1991 a 1998.

 

27.              Segundo consta do expediente perante a CIDH, o Ministério Público apresentou alegações finais requerendo a Pronúncia[7] de Manoel Cardoso Neto e José Pereira da Nóbrega e a Impronúncia de Crescêncio Oliveira de Souza. Dois anos depois, o Juiz no processo penal decidiu, em 31 de agosto de 2000, pela Pronúncia contra o réu Manoel Cardoso Neto para que fosse levado a juízo perante o Tribunal do Júri[8]. O Juiz considerou que não havia evidências contra Crescêncio Oliveira de Souza e declarou extinta a punibilidade do réu José Pereira da Nóbrega, em razão de seu falecimento em 1º de agosto de 1999.

 

28.              Em seguida, foi convocada para 23 de maio de 2002 a sessão do Tribunal do Júri para julgar o réu Manoel Cardoso Neto. O réu não compareceu. Foi determinada nova sessão do Tribunal do Júri para 15 de fevereiro de 2006; não obstante, o réu não compareceu. Em 3 de abril de 2006, o acusado foi localizado e preso pela Polícia Federal no estado de Minas Gerais.

 

29.              Com a prisão do acusado, foi determinada nova audiência para 27 de abril de 2006. A CIDH toma nota de que, quase 20 anos depois da morte da suposta vítima e sem se ter decidido a causa em primeira instância, em 10 de abril de 2006, os advogados do acusado impetraram habeas corpus em seu favor, alegando a prescrição da ação penal. Em 8 de maio de 2006, o Tribunal de Justiça do Pará, declarou a extinção da punibilidade do acusado, em virtude da prescrição e determinou sua liberação imediata.

 

30.              A CIDH observa que é um fato incontroverso que, em 8 de maio de 2006, tenha sido declarada a prescrição do poder de persecução penal do Estado, por meio de decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Pará.

 

31.               Para a Comissão determinar se foram esgotados os recursos internos, o Estado que alega a falta de esgotamento tem que provar que restam recursos internos a serem tentados e que os mesmos estão disponíveis e são eficazes. No presente caso, o Estado não argumenta que restem recursos internos a esgotar com relação ao processo penal e os peticionários alegam que os recursos tentados resultaram ineficazes. Tendo analisado as informações e os alegados apresentados pelas duas partes, a CIDH conclui que o requisito de prévio esgotamento dos recursos internos previsto pelo artigo 46.1.a foi cumprido, uma vez que a ação penal foi extinta por meio de sentença definitiva do Tribunal de Justiça do Pará, de 8 de maio de 2006.

 

2.         Prazo de apresentação

 

32.              O artigo 46.1.b da Convenção exige que a petição "seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva".

 

33.              Conforme acima indicado (p. 30), a decisão judicial que declarou a prescrição da ação penal referente ao assassinato da suposta vítima foi emitida em 8 de maio de 2006. Segundo o alegado pelos peticionários e não controvertido pelo Estado, os familiares da suposta vítima tiveram conhecimento dessa decisão em 18 de maio de 2006. Portanto, a Comissão nota que a petição, apresentada em 9 de novembro de 2006, cumpre o requisito do artigo 46.1.b da Convenção Americana.

 

3.                  Duplicação de procedimentos e coisa julgada

 

34.              Não decorre do expediente que a petição impetrada perante a Comissão Interamericana esteja atualmente pendente de outro procedimento de adjudicação internacional, nem reproduza substancialmente qualquer petição ou comunicação anterior já examinada pela Comissão ou outro organismo internacional, segundo estabelecem os artigos 46.1.c. e 47.d. da Convenção, respectivamente.

 

4.         Caracterização dos fatos alegados

 

35.              O artigo 47.b da Convenção estabelece que a Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada quando “não expuser fatos que caracterizem uma violação dos direitos garantidos por esta Convenção”. O critério de avaliação desses requisitos difere do que se utiliza para pronunciar-se sobre o mérito de uma petição. Com efeito, a avaliação da Comissão visa  determinar, prima facie, se a petição inclui o fundamento da violação, possível ou potencial, de um direito garantido pela Convenção e não a estabelecer a existência efetiva de uma violação de direitos. Em outras palavras, esta determinação constitui uma análise primária que não implica prejulgar sobre o mérito do assunto.

 

36.              Ante os fatos denunciados e os recursos judiciais tentados em seu âmbito, e especialmente, levando em consideração a suposta falta de prevenção da privação da vida da suposta vítima, tendo esta sido supostamente motivada por suas atividades como líder sindical, bem como a suposta falta de diligência do Estado em investigar de modo eficaz os fatos relacionados e punir os responsáveis por esse crime, a Comissão considera que, se comprovados, os fatos denunciados poderiam caracterizar possíveis violações dos direitos consagrados nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em conformidade com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, para os fatos posteriores à ratificação do Tratado pelo Estado brasileiro. Além disso, no entender da Comissão, se comprovados, os fatos ocorridos antes de 25 de setembro de 1992 poderiam configurar a violação dos artigos I (direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade das pessoas), XVIII (direito à justiça) e XXII (direito de associação) da Declaração Americana.

 

37.              Em conseqüência das considerações anteriores, a CIDH conclui que neste ponto a petição é admissível de acordo com o disposto no artigo 47.b.

 

V.         CONCLUSÕES

 

38.              A Comissão conclui que é competente para tomar conhecimento da petição e que esta atende aos requisitos de admissibilidade, de acordo com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana. Em razão dos argumentos de fato e de direito expostos anteriormente e sem prejulgar sobre o mérito da questão,

 

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,

 

DECIDE:

 

1.         Declarar admissível a presente petição com relação às supostas violações dos artigos I, XVIII e XXII da Declaração Americana, bem como dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana em concordância com o artigo 1.1 do mesmo instrumento.

 

2.         Notificar esta decisão ao Estado e aos peticionários.

 

3.         Iniciar o trâmite sobre o mérito da questão.

 

4.         Publicar esta decisão e incluí-la no Relatório Anual a ser apresentado à Assembléia Geral da OEA.

 

Dado e assinado na cidade de Washington, D.C., aos 16 dias do mês de outubro de 2008. (Assinado): Paolo G. Carozza, Presidente; Luz Patrica Mejia, Primeira Vice-Presidenta; Felipe González, Segundo Vice-Presidente; Clare K. Roberts, Florentín Meléndez e Víctor Abramovich, Membros da Comissão.


[1] O Comissário Paulo Sérgio Pinheiro, de nacionalidade brasileira, não participou das deliberações nem da votação sobre este relatório, em conformidade com o artigo 17.2.a do Regulamento da Comissão.

[2] A Denúncia está estabelecida no artigo 41 do Código de Procedimento Penal Brasileiro.

[3] Denúncia do Ministério Público. Comunicação inicial dos peticionários de 6 de novembro de 2006, Anexo II.44.

[4] O Brasil é membro fundador da Organização dos Estados Americanos, tendo assinado a Carta da OEA em 1948 e tendo depositado o instrumento de ratificação em 1950.

[5] CIDH, Relatório Nº 19/98, Caso 11.516, Ovelário Tames, Brasil, 21 de fevereiro de 1998, para. 15; Relatório N° 33/01, Caso 11.552, Guerrilha do Araguaia, Júlia Gomes Lund e Outros, Brasil, 6 de março de 2001, para. 38; Relatório Nº 17/98, Casos 11.407, Clarival Xavier Coutrim, 11.406, Celso Bonfim de Lima, 11.416, Marcos Almeida Ferreira, 11.413, Delton Gomes da Mota, 11.417, Marcos de Assis Ruben, 11.412, Wanderley Galati, 11.414, Ozeas Antônio dos Santos, 11.415, Carlos Eduardo Gomes Ribeiro, 11.286, Aluísio Cavalcanti Júnior e Cláudio Aparecido de Moraes, Brasil, 21 de fevereiro de 1998, para. 163.

[6] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no âmbito do artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Parecer Consultivo OC-10/89, de 14 de julho de 1989, Série A, para. 45.

[7] Nos crimes de competência do Tribunal do Júri, depois da instrução processual, o juiz deve analisar o acervo probatório operante do processo criminal, a fim de verificar a possibilidade de se demonstrar a provável existência de um crime doloso contra a vida, bem como da respectiva e suposta autoria. Em conseqüência, o Magistrado elabora a decisão de Pronúncia, na qual afirma a existência de provas que indiquem a materialidade e autoria do crime e determina a disposição jurídica em cuja punição entenda ter incidido o réu. Sobre a Pronúncia ver o artigo 408 do Código de Procedimento Penal Brasileiro. Por outro lado, se os indícios indicados acima não constarem dos autos, o juiz deve emitir uma decisão de Impronúncia dos réus

[8] Em conformidade com o artigo 5º, alínea XXXVIII, da Constituição Federal de 1998, o Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida.