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RELATORIO Nº 34/00
CASO 11.291
(CARANDIRU)*
BRASIL
13 de abril 2000

 

I.    RESUMO

1. Em 22 de fevereiro de 1994, a Americas Watch, o CEJIL e a Comissão Teotônio Vilela apresentaram esta petição contra a República Federativa do Brasil (doravante denominada "Estado" ou "Brasil") por motivo de fatos que ocorreram em 2 de outubro de 1992 na Casa de Detenção Carandiru, na cidade de São Paulo. Ela se refere, em síntese, à morte de 111 presos (dos quais 84 processados mas ainda não condenados) e a lesões graves sofridas por outros internos durante a repressão de um motim de detentos, ações supostamente praticadas pela Polícia Militar de São Paulo em 2 de outubro de 1992. Os peticionários solicitam que o Estado seja condenado pela violação dos artigos 4, 5, 8, 25 e 1(1) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante denominada "Convenção") relativos aos direitos à vida, à integridade pessoal, ao devido processo e à proteção judicial, todos eles em conformidade com a obrigação do Estado de respeitar e assegurar o gozo desses direitos (artigo 1(1)).

2. O Estado, que em geral reconhece ter havido violações da vida e da integridade pessoal nas ocorrências de que se trata, por sua vez defende que tomou medidas firmes e profundas para resolver a situação das prisões do Estado de São Paulo e que os processos contra os agentes responsáveis e de indenização foram devidamente instaurados nos diferentes foros e prosseguem de acordo com as garantias processuais e que os referentes a homicídios dolosos cometidos por agentes policiais foram transferidos para a justiça ordinária em cumprimento à Lei 9299-96 (Lei Bicudo). Por conseguinte, não foram esgotados os recursos da jurisdição interna e a petição não satisfaz às condições de admissibilidade. A tentativa de solução amistosa proposta pela Comissão a ambas as partes em várias ocasiões não pôde ser concretizada.

3. A Comissão conclui que a petição é admissível. No que respeita ao mérito, após analisar os fatos e o direito aplicável, a Comissão conclui que o caso denunciado caracteriza um massacre no qual o Estado violou os direitos à vida e à integridade pessoal e que, em suas seqüelas, também foram violados os direitos ao devido processo e à proteção judicial (artigos 4, 5, 8 e 25), em conexão com o artigo 1 da Convenção, e formula recomendações no sentido de que se proceda à investigação dos fatos, à punição dos responsáveis, à concessão de reparação às vítimas e à adoção de medidas, nos níveis nacional e estadual, para evitar que se repitam violações desse tipo.

II. TRÂMITES NA COMISSÃO E DE SOLUÇÃO AMISTOSA

4. Em 22 de fevereiro de 1994, a Comissão recebeu a petição sobre o caso, que foi encaminhada ao Estado, e solicitou a este, em 11 de maio de 1994, que fizesse comentários Em 16 de setembro de 1994, foram recebidas informações adicionais dos peticionários. Em 8 de agosto de 1994, o Estado respondeu apresentando informações iniciais sobre o andamento dos trâmites judiciais e solicitou prorrogação para contestar de maneira mais minuciosa, o que fez em 4 de novembro do mesmo ano. Os peticionários apresentaram réplica a essa solicitação em 14 de agosto de 1995.

5.    Ao longo desse período, ambas as partes prestaram informações sobre o desenvolvimento dos recursos da jurisdição interna. Os peticionários o fizeram em 3 e 10 de outubro de 1995 e em 15 de janeiro de 1996. O Estado prestou novas informações em 7 de setembro de 1995. Além disso, no decorrer de sua visita ao Brasil em dezembro de 1995, a Comissão obteve informações da Justiça Militar do Estado sobre o caso. O Estado prestou novas informações sobre a implementação da reforma carcerária de São Paulo em 4 de agosto de 1999.

6. Foram realizadas audiências sobre o caso nestas quatro datas: 8 de setembro de 1995, 23 de fevereiro de 1996, 7 de outubro de 1996 e 8 de outubro de 1997. Na primeira delas, a Comissão colocou-se à disposição das partes para dar início a um processo de solução amistosa. Esta proposta foi reiterada em diferentes oportunidades, inclusive numa visita do Relator da Comissão ao Brasil, em julho de 1997, para tratar assuntos desse país, porém como a iniciativa não progrediu dão-se por encerradas as negociações preliminares com vistas a iniciar um processo de solução amistosa.

7. O Estado apresentou, na audiência de 7 de outubro de 1996, um relatório sobre as medidas que estavam sendo tomadas para desativar o complexo penitenciário Carandiru. Nessa audiência, a Comissão "decidiu suspender a consideração do caso até que o Superior Tribunal de Justiça se pronunciasse sobre o conflito de competência",1 esclarecendo que o caso não estava sendo arquivado, mas sim que prosseguiria no seu curso normal tão logo se conhecesse a decisão desse Tribunal. Em 13 de dezembro de 1996, o Estado informou que o Tribunal Superior havia decidido que os processos seriam transferidos para a competência da justiça criminal comum do Estado de São Paulo, o que fora feito, e que se esperava no futuro concluir a tramitação processual e realizar o julgamento com intervenção do júri popular.

8. Em 10 de abril de 1997, os peticionários solicitaram que a Comissão intercedesse junto ao Estado no sentido de que se constituísse uma comissão especial, com representantes de entidades não-governamentais e do Estado, para acompanhar a desativação do presídio de Carandiru. Essa proposta foi apresentada ao Estado, que não a aceitou. Em 7 de outubro de 1997, os peticionários solicitaram a adoção de várias medidas por parte do Estado, havendo instado a Comissão a que reativasse o processo, dada a delonga na tramitação das causas na justiça comum, e forneceram novas informações sobre a persistência dos problemas na penitenciária de Carandiru, inclusive a eclosão de novos motins e sua subjugação.

9. Nessa mesma audiência o Estado informou que se havia decidido judicialmente indenizar algumas das famílias das vítimas e estavam sendo tomadas medidas para solucionar o caso. Os peticionários responderam que essas medidas eram ineficazes e parciais e novamente solicitaram à Comissão que interviesse. Em virtude de os motivos para suspender a consideração do caso terem cessado com a transferência dos processos à justiça penal ordinária, a Comissão decidiu reassumir sua consideração.

III. POSIÇÕES DAS PARTES

A. Os peticionários

Os fatos de 2 de outubro de 1992

10. Alegam os peticionários2 que havia, na data do motim, 2.069 internos no Pavilhão 9 de Carandiru, número superior à capacidade desse alojamento; que os internos se encontravam sob a vigilância de apenas 15 guardas penitenciários; que as condições carcerárias não atendiam às disposições regulamentares e eram contrárias à lei, e que, devido à tensão e ao mal-estar reinantes, o que começara como uma rixa de menor importância entre internos mal aplacada pelos guardas havia se degenerado num grande e generalizado protesto. Declaram que, às 14 horas do dia 2 de outubro de 1992, por um motivo fútil, dois presos começaram a brigar com outros reclusos no segundo andar do pavilhão. Finda a briga, os guardas fecharam o acesso ao corredor, aglomerando e confinando os detentos. Estes, exasperados, conseguiram romper as trancas e iniciaram o motim.

11. Ante o motim, os guardas optaram por retirar-se do estabelecimento, e o diretor da prisão pediu a ajuda da Polícia Militar, cujos contingentes chegaram às 14h45, procedentes de diversas guarnições, entre as quais as do batalhão de choque e grupo especial ROTA, com aproximadamente 350 policiais. Paralelamente, o diretor da prisão solicitou a presença urgente dos magistrados com jurisdição sobre a conjuntura, ou seja, os dois juízes da Vara de Execuções Penais e o da Corregedoria dos Presídios.3 Quando esses chegaram, oficiais da Polícia Militar de São Paulo (PM) os dissuadiram de intervir e lhes indicaram que não podiam entrar no Pavilhão 9, afirmando que os presos estavam armados. Frustrada assim a breve tentativa de negociação esboçada por esses juízes, às 16 horas teve início a ocupação do Pavilhão 9 pelos policiais. Onze horas depois, passado já da meia-noite, ao retirar-se a polícia militar da prisão e reassumir a guarda penitenciária seus postos, comprovou-se que a subjugação do motim havia deixado um saldo de 111 mortos e de aproximadamente 35 feridos entre os reclusos.4 Não houve casos de morte entre o pessoal policial.

12. Os peticionários defendem que as mortes foram execuções sumárias dos detentos, assassinados depois de se terem rendido, e que detentos rendidos e feridos foram posteriormente liquidados a bala. Também dizem que, segundo a perícia policial, perfurações de bala nas paredes das celas corroboram a versão de que foram executados sumariamente. Informam que o perito Osvaldo Negrini Neto, autor do laudo sobre o massacre, revelou em entrevista para a Folha de São Paulo que alguns policiais militares que invadiram o Pavilhão 9 provavelmente tivessem informação prévia sobre onde se encontravam os líderes da rebelião, para ali se dirigiram diretamente e os eliminaram em suas celas.5 O perito declarou o seguinte:

Comprovamos a existência de rajadas de metralhadora a cerca de 50 centímetros do solo, o que indica que os presos foram mortos ajoelhados. Todas as marcas de bala eram de disparos numa só direção. Não havia marcas de disparos no sentido contrário, o que demonstra que não houve tiros contra os policiais.6

13. Os peticionários alegam também que imediatamente depois do massacre, policiais militares destruíram as provas que poderiam determinar a responsabilidade de cada um dos assassinatos e que os três magistrados presentes nada fizeram para impedi-lo. As principais provas que teriam permitido identificar pessoalmente os responsáveis desapareceram.

14. Afirmam que a ação posterior das autoridades foi tão lamentável quanto o massacre em si. Aos parentes das vítimas não se prestou informação alguma até a tarde do dia seguinte. A lista oficial de vítimas só foi divulgada no dia 8, seis dias depois do massacre. Os jornalistas foram inicialmente impedidos de divulgar o fato e dois fotógrafos foram levados à delegacia por estarem fotografando a remoção dos corpos.

15. Também declaram que numerosos detentos feridos na repressão, a maioria com ferimentos graves, tiveram de esperar vários dias antes de serem atendidos, e que os familiares das vítimas foram submetidos a tratamento de extrema crueldade, mantidos em longa espera à intempérie e hostilizados por cães policiais.

16. Salientam que a rebelião e o subseqüente massacre ocorreram ao final de um decênio em que a Polícia Militar paulista se caracterizou por freqúentemente recorrer à força letal, como o demonstra o fato de que 25% de todas as mortes violentas ocorridas em 1991 no Estado de São Paulo foram responsabilidade da Polícia. Com base em dados oficiais, sustentam que 14 dos oficiais policiais de alta patente que comandaram as operações na Casa de Detenção no dia 2 de outubro de 1992, respondiam a processo perante a Justiça Militar por outros 148 casos anteriores de homicídio ou tentativa de homicídio.

17. Sustentam que em operações anteriores ocorridas ante rebeliões nos presídios de São Paulo, já haviam ocorrido massacres, embora não da magnitude do de 2 de outubro. Em que pese a esses antecedentes de violência policial, ante a rebelião desse dia, o Secretário de Segurança Pública de São Paulo conferiu aos policiais militares absoluta autoridade para sufocar a rebelião. Posteriormente, os peticionários observaram que o problema persistiu em anos posteriores, pois várias vezes, inclusive em 1997, prosseguiram as revoltas em Carandiru.

18. Os peticionários informaram em outubro de 1997 que, apesar de todas as provas acumuladas desde a ocorrência do fato, o Governo não expedira uma versão oficial dos fatos que reconhecesse o massacre, nem a responsabilidade dos agentes do Estado. Declararam que tampouco haviam sido pagas as indenizações aos parentes das vítimas. Esclareceram que, embora a Procuradoria houvesse iniciado 59 ações judiciais de indenização, com decisão favorável a 13 das vítimas, nem sequer essas poucas indenizações haviam sido efetivadas, segundo comprovam com uma notícia de jornal. Informa-se nessa notícia que, para efetivá-las, o Estado deve destinar fundos especiais no orçamento, ou seja, só a partir de 1999 poderiam ser efetuadas se esses fundos fossem destinados a essa finalidade pela Legislatura. Cinco anos depois das ocorrências, outras 20 ações de indenização civil nesses casos ainda esperavam sentença de primeira instância, o que demonstra o não-cumprimento pelo Estado de seu dever internacional de indenizar as vítimas dessas violações.

19. Em suas exposições, os peticionários também informaram que, posteriormente aos fatos ocorridos e quando da aplicação da Lei de Promoção de Oficiais (Decreto Lei 13.654/54), foram promovidos oficiais de alta e média patentes que haviam comandado essa repressão e que estavam sendo processados, entre outras razões, pelo homicídio doloso das vítimas deste caso. Um dos promovidos, o tenente-coronel Armando Rafael Araújo, elevado ao posto de Comandante do Regimento de Cavalaria Nove de Julho, era acusado de haver ferido 87 detentos.7 Informaram ainda que um grupo de policiais militares comandados pelo major Rail de Mendonça e formado por quatro agentes não uniformizados, todos os quais haviam ajudado a sufocar o motim de Carandiru em 2 de outubro de 1992, não figuram na lista dos acusados e continuam atuando na força policial.

O direito

20. Lembram os peticionários que a Corte estabeleceu os deveres dos Estados partes para com as pessoas sob sua custódia:

Nos termos do artigo 5(2) da Convenção, toda pessoa privada de liberdade tem direito a viver em condições de detenção compatíveis com sua dignidade pessoal e o Estado deve garantir-lhe o direito à vida e à integridade pessoal. Por conseguinte, o Estado, como responsável dos estabelecimentos de detenção, é o garante desses direitos.8

21. Sustentam que os órgãos judiciais e fiscais comprovaram que os agentes do Estado que entraram na prisão dispararam contra detentos indefesos e que os pormenores sobre esses fatos apresentados à Comissão nunca foram negados pelo Estado. As próprias investigações do Estado estabeleceram as violações do direito à vida e à integridade pessoal (artigos 4 e 5 da Convenção) e a falta de aclaração do caso e de ações judiciais efetivas para levar à justiça os responsáveis constitui uma violação dos artigos 8 e 25 (garantias judiciais) da Convenção.

22. Com respeito à indenização dos familiares das vítimas, os peticionários lembraram a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos com respeito à obrigação do Estado de indenizar adequadamente as vítimas e suas famílias.9  

Os recursos e as garantias judiciais

23. Os peticionários mencionam em sua exposição de 15 de janeiro de 1996 que, depois de três anos com o caso, a Justiça Militar decidiu transferi-lo para o foro ordinário. Assim, em 13 de fevereiro de 1996, o Conselho Especial de Justiça Militar decidiu, por unanimidade, transferir o caso à justiça comum, por "haver indícios no caso de envolvimento de autoridades civis devidamente constituídas nessa época", referindo-se às supostas responsabilidades do ex-Governador Luiz Antonio Fleury Filho e do ex-Secretário de Segurança Pedro Franco de Campos.10 Sustentam que, se a justiça comum não aceitar avocar-se o caso,11 haverá conflito de jurisdições a ser solucionado pelo Supremo Tribunal Federal. Os peticionários chamam a atenção para a demora e complexidade que isso significa, uma vez que depois de três anos, em fevereiro de 1996, havendo sido obtidas centenas de provas e 253 testemunhos, que ocupam 7.651 páginas de 26 volumes, só agora o julgamento passou à justiça comum, de acordo com a nova legislação sobre júri popular. Dado que esse tribunal aproveitará somente as provas técnicas – exames balísticos, provas periciais etc. – os acusados poderão solicitar que seja reaberta a prova testemunhal, com a demora adicional que isso implicará.

24. Sustentam que isso não só viola o direito a devido processo que assiste às vítimas mas constitui manobra que se soma à demora injustificada já ocorrida na Justiça Militar. Posteriormente, os peticionários informaram que houve grande demora adicional, assinalando que somente 14 meses depois, em abril de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a decisão de transferir o caso à justiça comum. Os peticionários novamente salientam a lentidão do trâmite, pois essa decisão levou mais de um ano, sendo ademais redundante, pois a transferência devia ter sido automática com a aplicação da Lei Bicudo aprovada sete meses antes, em 6 de agosto de 1996.

25. Em 8 de outubro de 1997, os peticionários informaram que ainda não estava previsto o momento do julgamento pelo júri popular e que o processo central havia sido desmembrado para separação do julgamento do único oficial acusado, o Coronel Ubiratan Guimaraes, atualmente afastado, comandante da operação de repressão, que fora eleito deputado estadual em janeiro de 1997. Nessa qualidade, obtivera imunidade parlamentar, que só a Assembléia Legislativa de São Paulo podia suspender, o que não ocorreu.

26. Também informam como outro exemplo de impunidade, que o processo no. 266-93 da 5a. Vara Criminal de Santana, por abuso de autoridade contra Edson Faoro (oficial militar) e Ismael Pedrosa (Diretor de Carandiru quando da ocorrência dos fatos) obteve sentença de absolvição em setembro de 1997. Em relação a essa mesma resultante manutenção da impunidade, em 10 de setembro de 1997, o Ministério Público solicitou a suspensão do processo contra sete dos policiais militares acusados de infligir lesões graves a um dos detentos, de acordo com o artigo 89 da Lei 9099/95. que permite a suspensão condicional para crimes com pena mínima de um ano de prisão. Lembram que o crime de que se acusava esses policiais era o de haverem infligido lesões graves quando o referido preso já se havia rendido e se achava indefeso. Os peticionários observam que essa suspensão solicitada pelo Promotor Público, usando de uma exceção que procura beneficiar os réus primários, não deixa sequer vestígios na ficha criminal dos processados. Com essa medida, sustenta que o Estado está deixando de cumprir seu compromisso internacional de castigar os responsáveis de violações dos direitos humanos.

A admissibilidade

27. Os peticionários sustentam que a Comissão tem plena competência pela natureza das violações alegadas e, com respeito ao requisito de esgotamento dos recursos da jurisdição interna, demonstraram estes ser ineficazes, e que houve demora injustificada tanto na justiça militar como na justiça comum. Chamam a atenção para o fato de a Polícia Militar, três anos depois de iniciado o processo, ter decidido transferir sua competência à justiça comum, reabrindo o exame do caso, apesar da enorme quantidade de provas acumuladas. Assinalam novamente que ainda não havia em 1997 condenação alguma, nem se havia pago indenização alguma, e solicitam a aplicação da exceção do artigo 46(2)(c) da Convenção.

B. O Estado

As ocorrências na prisão e a resposta das instituições do Estado

28. Com relação à responsabilidade objetiva do Estado com respeito ao homicídio e aos ataques à integridade pessoal dos detentos, o Estado reconheceu a seriedade da situação e dos fatos denunciados, embora sustente que tomou medidas reparatórias adequadas, bem como que deu início às ações judiciais previstas na legislação brasileira.12 Assim, conforme se especifica mais adiante em relação a cada uma delas, sustenta que: a) indenizou civilmente todas as famílias que provaram sua relação de parentesco com as vítimas, b) criou uma Secretaria de Estado no âmbito do Governo do Estado de São Paulo exclusivamente destinada a assuntos penitenciários e c) iniciou um plano de desativação da Penitenciária de Carandiru e de construção de novas penitenciárias adequadas.

29. Quanto aos fatos ocorridos em 2 de outubro, o Estado declarou, em 8 de agosto de 1994 "que o Governo e a Justiça do Brasil estão determinados a levar avante os trâmites relacionados com o triste episódio, bem como a elucidação dos fatos com vistas a determinar responsabilidades". Informou que respondiam a processo 120 policiais militares, inclusive o Coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães que, juntamente com o então Tenente Coronal Edson Faoro, haviam passado à Reserva. Informa que foram iniciadas ações cíveis para indenização das vítimas.

30. Informa também que imediatamente depois das ocorrências foram tomadas medidas a esse respeito, tais como a criação de uma Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e a inclusão obrigatória de um curso de direitos humanos na formação dos policiais desse Estado.

31. Em 15 de outubro de 1996, o Estado informou sobre um convênio entre a República Federativa e o Estado de São Paulo para a desativação do complexo penitenciário de Carandiru, como primeiro passo para o cumprimento de um dos objetivos de longo prazo do Programa Nacional de Direitos Humanos, que prevê "a desativação da Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru) e de outros estabelecimentos penitenciários que contrariem as normas mínimas penitenciárias internacionais".13 Ademais, serão construídos considerável número de novos presídios e instalações complementares, sempre com a intenção de conseguir a ressocialização dos detentos. Reconhece-se no programa que Carandiru mantinha nessa época (1996) quase o dobro dos detentos que sua capacidade regulamentar permitia. Tais afirmações sobre a implementação da reforma penitenciária foram ampliadas em 4 de agosto de 1999 mediante a informação de que havia sido concluída a desativação de Carandiru e a implementação de outras medidas preventivas.

32. Informa o Estado que em 27 de novembro de 1996 o Tribunal Superior de Justiça confirmou a jurisdição comum para o crime relacionado com os 111 presos, considerando que "o crime pode ser considerado comum, mesmo se fosse cometido por militares em serviço usando arma militar, e que o Código da Justiça Militar é claro a esse respeito. Em nota posterior, o Estado sustentou que a decisão se baseava na vigência da Lei 9.299/96 (Lei Bicudo), que transfere para a justiça comum o julgamento dos crimes de homicídio doloso cometidos por policiais militares.

33. Em 6 de abril de 1998, o Estado, em nota à Comissão, formalmente transmitiu a notícia publicada na Internet de que "o Governo do Brasil assume a culpa por Carandiru". Essa notícia indica que o Governo do Estado de São Paulo, com o apoio do Secretário Nacional de Direitos Humanos José Gregori, estudava uma solução para o caso, mediante a indenização das famílias das vítimas. Informa-se nela que o Governador do referido Estado, Mario Covas, insistira em que devem prosseguir os trâmite legais de indenização e que a decisão a esse respeito deve ser coerente com outras que vêm sendo tomadas em outros casos.

A.    admissibilidade

34. Sustenta que não foram esgotados os recursos da jurisdição interna no caso dos processos de homicídio doloso contra os policiais militares, bem como dos de indenização, instaurados todos eles em obediência às garantias e procedimentos previstos na legislação brasileira.

IV.    ANÁLISE DA COMPETÊNCIA E DA ADMISSIBILIDADE

A. Competência

35. A Comissão é competente, prima facie, para examinar a reclamação apresentada, posto que os fatos alegados na petição afetaram pessoas físicas sujeitas à jurisdição do Estado quando a obrigação de respeitar e garantir os direitos estabelecidos na Convenção já se encontrava em vigor para ele.14

36. Com respeito à competência ratione personae, o artigo 1.1 da Convenção estabelece claramente a obrigação do Estado de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção, bem como de garantir seu livre e pleno exercício. Assim, toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção que possa ser atribuída, de acordo com as normas do direito internacional, a ação ou omissão de qualquer autoridade pública, constitui um ato da responsabilidade do Estado. De acordo com o artigo 28 da Convenção, quando se tratar de um Estado federativo como o Brasil, o Governo nacional responde na esfera internacional pelos atos praticados pelas entidades que constituem a federação.

37. O presente caso trata não só de alegadas violações, durante a subjugação do motim em Carandiru, de direitos consagrados nos artigos 1(1), 4 e 5 da Convenção, mas também de alegações de violação dos direitos à justiça, ao devido processo e às garantias judiciais reconhecidos nos artigos 8 e 25 da Convenção. Essas violações são imputadas a funcionários do governo estadual (autoridades executivas do Estado de São Paulo, autoridades do sistema penitenciário, polícia militar estadual, funcionários do Ministério Público e do Judiciário).

38. Por conseguinte, a petição de que se trata reúne os requisitos formais de admissibilidade previstos nos artigos 46(1)(c) e 46(1)(d) da Convenção e no artigo 32 do Regulamento da Comissão. A Comissão não tem conhecimento de que a matéria da petição esteja pendente de solução nem tenha sido decidida em outra instância internacional.

Esgotamento dos recursos internos e prazo de apresentação

39. A Comissão passa a analisar os aspectos formais referentes à admissibilidade da denúncia. De acordo com o artigo 46(1).a da Convenção, para que uma petição seja admissível pela Comissão é necessário que sejam esgotados previamente os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios do direito internacional. O mesmo artigo, porém, em seu parágrafo 12, estabelece que as disposições sobre o esgotamentos dos recursos da jurisdição interna não serão cumpridas quando:

a)  não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados;

b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e

c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

40. Os peticionários alegaram que o processo sofreu numerosos atrasos e dificuldades nos diferentes foros, que levaram a que, passados cinco anos das graves ocorrências, não se tenha chegado a condenação alguma dos responsáveis, nem tenha sido paga indenização às vítimas ou seus familiares. O Estado, por sua vez, em várias ocasiões durante os trâmites perante a CIDH, alegou que os recursos judiciais estavam em andamento e não haviam sido esgotados.

41. O Estado levou avante diferentes processos em virtude das ocorrências denunciadas, tanto em foro penal como em foro civil. Alguns deles prescreveram antes de concluídas as tramitações, outros foram concluídos com sentença final e outros ainda se encontram em processamento. Em nenhum desses casos, segundo informações de que dispõe a Comissão, houve sentença condenatória e os que ainda se acham em tramitação, decorridos sete anos das ocorrências, ainda não se conseguiu concluí-los.

42. Entre os processos cuja possibilidade de tramitação judicial se esgotou encontra-se o que foi instaurado contra oito policiais acusados pelo Ministério Público de infligir lesões leves em detentos. A acusação foi apresentada em 8 de março de 1993 e prescreveu dois anos depois, em 1995, sem que se houvesse logrado o pronunciamento de uma sentença definitiva. Outro processo, de responsabilidade civil por abuso de autoridade instaurado contra o Coronel Faroro, um dos oficiais que comandaram as forças encarregadas de sufocar a rebelião, e o diretor do presídio, terminou com a absolvição dos acusados.

43. O processo penal central contra os 119 policiais acusados de homicídio qualificado agravado foi instaurado perante a Auditoria da Justiça Militar de São Paulo em 23 de junho de 1993 (processo 78/93) e sofreu uma série de atrasos. Depois de três anos de instaurado, e de numerosas diligências judiciais durante esse período, o Conselho Especial de Justiça Militar, em 13 de fevereiro de 1996, transferiu-o à justiça civil, pois havia indícios de responsabilidade de autoridades civis devidamente constituídas. Esses indícios contra responsáveis civis (o Governador e o Secretário de Segurança Pública) eram conhecidos desde a acusação judicial de 1993, motivo por que a demora de três anos para a transferência parece à Comissão injustificada. Além disso, a transferência gerou um atraso adicional quanto ao tratamento do caso, pois de acordo com a lei processual somente as provas de peritagem técnica e documentais continuavam válidas para o julgamento civil, mas a prova de testemunhas devia ser repetida, quando já haviam sido tomados 253 testemunhos judiciais.

44. Essa decisão do Conselho de Justiça Militar foi revista pelo Supremo Tribunal Federal, que tardou 14 meses para confirmá-la, em abril de 1997. Desde então, o processo continua em foro civil, para decisão por júri popular.

45. Desse processo 78/93 derivou a acusação contra o único oficial inculpado, o coronel Ubiratan Guimarães, que se achava no comando da força encarregada de sufocar o motim e foi acusado da prática de homicídio qualificado combinado com outras figuras delituosas. Como esse oficial se elegeu deputado estadual em janeiro de 1997, o processo contra ele não tramitou durante a vigência de sua imunidade parlamentar, sem que a Assembléia Legislativa tomasse a iniciativa de proceder ao seu julgamento político a fim de suspender tal privilégio, não obstante o peso da acusação e as solicitações para que o fizesse formuladas por deputados e organizações civis. Seu mandato expirou no primeiro semestre de 1999, cessando então a sua imunidade parlamentar.

46. Com respeito à indenização, a Comissão comprova que das 59 ações do Estado nesse sentido, somente em 13 casos foram identificados os familiares das vítimas, estabelecendo-se então a indenização, que não foi efetivada por não haverem sido destinados os respectivos fundos no orçamento estadual.

47. As exceções previstas no artigo 46(2) da Convenção procuram garantir a ação internacional quando os recursos da jurisdição interna e o próprio sistema jurídico interno não são eficazes para assegurar o respeito aos direitos humanos das vítimas. Assim, o requisito formal relativo à inexistência de recursos da jurisdição interna que garantam o princípio do devido processo (artigo 46(2)(a) da Convenção) não se refere somente à ausência formal de recursos nessa jurisdição mas também ao caso de que sejam ineficazes. A denegação de justiça (artigo 46(2)(b) da Convenção) e a demora injustificada da justiça (artigo 46(2)(c) da Convenção), por outro lado, também estão vinculadas à eficácia dos referidos recursos.15

48. A Corte sustentou que, nesse sentido, os princípios do direito internacional em geral conhecidos se referem a que os recursos da jurisdição interna tanto existam formalmente quanto a que sejam adequados para reparar a situação jurídica infringida e eficazes para produzir o resultado para o qual foram concebidos.16 Por tais motivos, seu esgotamento não deve ser entendido como a necessidade de fazer mecanicamente tramitações formais, mas de, em cada caso, examinar a possibilidade razoável de obter indenização.17 Com esse mesmo raciocínio, o direito de aduzir falta de esgotamento dos recursos da jurisdição interna como fundamento de uma declaração de inadmissibilidade de uma petição não pode levar a que seja "detida ou retardada até a inutilidade da atuação internacional em auxílio à vítima indefesa ".18

49. Em outras palavras, se a tramitação dos recursos da jurisdição interna demora19 de maneira injustificada, pode-se deduzir que os mesmos perderam sua eficácia para produzir o resultado para o qual foram estabelecidos, o que "torna indefesa a vítima".20 É nessa instância que devem ser aplicados os mecanismos de proteção internacional, entre outros as exceções previstas no artigo 46.2 da Convenção.

50.    Transcorreram, até a data deste relatório, mais de sete anos desde que a ocorrência dos fatos denunciados. Entretanto, até este momento, tais recursos não conseguiram levar a uma condenação de um só dos responsáveis de absolvição ou prescrição, ou de demoras injustificadas. Tampouco foram indenizadas as vítimas e/ou seus familiares.

51. Por conseguinte, a Comissão comprova que os recursos da jurisdição interna foram esgotados ou tardaram injustificadamente. Por outro lado, tanto na prescrição da aplicação da condenação como na falta de indenização das vítimas, os recursos da jurisdição interna não se mostraram eficazes, pelo menos com respeito ao necessário padrão para uma decisão de admissibilidade ou inadmissibilidade. Ante o exposto, a Comissão considera que, neste caso, é aplicável a exceção prevista no artigo 46, parágrafo 2, alínea c, da Convenção, referente à demora injustificada dos processos penais.

52.    Quanto ao requisito de seis meses para a apresentação da denúncia (artigo 46(1)(b) da Convenção), uma vez que há um atraso injustificado na administração da justiça, a Comissão considera aplicável a exceção prevista nos artigos 46.2.c da Convenção e 37(2)(c) do Regulamento da Comissão. A esse respeito, o artigo 38.2 do Regulamento dispõe o seguinte:

Nas circunstâncias previstas no artigo 37, parágrafo 2, deste Regulamento, o prazo para a apresentação de uma petição à Comissão será um período razoável, a critério da Comissão, a partir da data em que houver ocorrido a presumida violação dos direitos, considerando-se as circunstâncias de cada caso específico.

53. Uma vez que a denúncia foi apresentada dezesseis meses depois da alegada violação dos direitos e reiterada em anos posteriores, ao comprovar que se foram multiplicando as dilações judiciais ao longo desse período, a Comissão considera que a petição foi apresentada dentro de prazo razoável, de acordo com o referido artigo 38.2 e, por conseguinte, se cumprem os termos para agora declarar a petição admissível e passar à análise de fundamento.

Conclusões sobre competência e admissibilidade

A Comissão considera que é competente para examinar a reclamação apresentada pelos peticionários e que o presente caso é admissível de conformidade com os requisitos definidos nos artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

V. ANÁLISE

A. Os fatos

A situação carcerária e de segurança

54. A Comissão considera necessário analisar, em primeiro lugar a situação carcerária que se vinha verificando no Estado de São Paulo, as condições de vida dos detentos, os antecedentes de revoltas nessa penitenciária e o esquema de autoridade e decisão previsto para circunstâncias como a rebelião ocorrida, bem como os padrões de uso de violência pela Polícia Militar paulista.

Os requisitos mínimos para os detentos na época da rebelião

55. O pavilhão da Prisão Carandiru onde ocorreu o motim e sua subjugação alojava em setembro de 1992 mais do dobro dos internos que sua capacidade comportava, tal como reconhece o Governo em seu Plano de Reforma Penitenciária. Essa aglomeração facilita os atritos entre internos e destes com a guarda. Convivia no estabelecimento o total de 7.257 prisioneiros, dos quais 2.706 estavam recolhidos no Pavilhão 9 onde houve a revolta. Estes últimos eram "réus primários" (cumpriam sua primeira pena de prisão) e muitos deles ainda não haviam sido condenados, achando-se amparados pela presunção de inocência. A maioria tinha entre 18 e 25 anos de idade. Estavam encarcerados em 248 celas, ou seja, oito presos em média ocupavam cada cela, onde se amontoavam e não dispunham de espaço físico quer para atividades recreativas, quer para trabalho. Com efeito, tal como comprovou a Comissão na sua visita pessoal ao presídio em 1995, havia espaço apenas para que eles se mantivessem de pé ou sentados apoiando-se uns contra os outros.

O controle institucional da prisão

56. Ao assumir o cargo de governador em 1991, Fleury Filho, que antes havia sido Secretário de Segurança Pública, removeu da jurisdição da Secretaria de Justiça a administração das prisões do Estado de São Paulo e transferiu-a para a Secretaria de Segurança Pública. Isso foi criticado pela Associação de Advogados de São Paulo, pois colocava sob a mesma subordinação a polícia e a guarda penitenciária. Quando há distúrbios nas prisões, o Juiz Corregedor (juiz de inspeção de prisões) e o Juiz de Execuções Penais (juiz de sentença) são chamados para salvaguardar a integridade dos prisioneiros e tomar as decisões necessárias para dissipar os distúrbios. Em incidentes anteriores, o próprio Secretário de Justiça estava presente ou participou ativamente das negociações.21

57. Em 2 de outubro de 1992, a responsabilidade administrativa, penitenciária e policial sobre Carandiru estava pois concentrada na Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. Oficiais policiais subordinados a essa Secretaria obstaram a potencial ação negociadora dos juízes que acorreram à prisão ao indicar-lhes que não deviam nela entrar porque a situação era perigosa e de difícil controle.

58. A Comissão salienta que um estudo realizado em 1988 sobre rebeliões em São Paulo comprovou que, de onze revoltas ocorridas entre setembro de 1986 e abril de 1988, não houve mortos nas seis em que se utilizou a estratégia de negociação, ao passo que houve 47 mortos (detentos e policiais) nas revoltas em que se usou a repressão violenta.22

O padrão de violência da Polícia Militar paulista

59. Nessa época, o histórico da Polícia Militar de São Paulo era de uso excessivo de violência na sua luta contra o crime. Do total de mortes violentas ocorridas em São Paulo no ano de 1991, 25% (1.140) foram atribuídas à polícia, segundo uma investigação parlamentar da época. Durante a administração de Antonio Fleury Filho (1991-1992), a PM matou uma pessoa a cada sete horas, em comparação com o índice de uma a cada 17 horas nas duas administrações anteriores (1982-1991) e de uma a cada 30 horas na administração de 1978-1982. Uma comissão de inquérito da Assembléia Legislativa Estadual comprovou que 14 dos oficiais superiores que se encontravam no dia 2 de outubro de 1992 no comando da operação de subjugação do motim eram acusados de homicídio ou de tentativa de homicídio em 148 processos em curso na justiça militar.23

A resposta do Estado à revolta

A responsabilidade do Estado de garantir a integridade dos detentos e prevenir surtos de violência

60. Tal como assinala a Corte, "nos termos do artigo 5(2) da Convenção, toda pessoa privada de liberdade tem direito a viver em condições de detenção compatíveis com a dignidade inerente ao ser humano, e o Estado deve garantir-lhe o direito à vida e à integridade pessoal".24 Por conseguinte, na sua condição de responsável pelos estabelecimentos carcerários, o Estado é o garante desses direitos dos presos. As condições de vida dos detentos no estabelecimento penal citado, que não atendiam às normas internacionais devido à superlotação e à falta de atividades recreativas, davam margem a que estourassem conflitos entre os presos passíveis facilmente de evoluir para atos de amotinamento generalizado e a conseqüente reação descontrolada de parte dos agentes do Estado em face das condições de violência reinantes.

61. As condições de vida dos detentos contrárias aos preceitos da lei, as rebeliões anteriores ocorridas em Carandiru e a falta de estratégias de prevenção destinadas a evitar a eclosão de atritos, aliadas à incapacidade do Estado de desenvolver uma ação negociadora que poderia ter evitado ou diminuído a violência do motim, configuram por si sós uma violação, por parte do Estado, da sua obrigação de garantir a vida e a integridade pessoal dos que se encontram sob a sua custódia. Acrescente-se a isso o fato de que, contrariando a legislação nacional e internacional, a maioria dos que se encontravam reclusos naquele momento em Carandiru estavam sendo processados mas ainda não haviam sido condenados (encontrando-se portanto sob a presunção de inocência), embora fossem obrigados a conviver, nessas situações de alta periculosidade, com os réus condenados.

O motim e a sua subjugação

A obrigação do Estado de debelar a revolta e a proporcionalidade da força necessária

62. O Estado tem o direito e o dever de debelar um motim de presos, tal como sustentou a Corte no caso Neira Alegría.25 Na sua subjugação devem ser adotadas estratégias e ações indispensáveis para sufocá-lo com o mínimo de dano à vida e à integridade física dos reclusos e o mínimo de risco para as forças policiais.

63. A ação da polícia, conforme se acha descrita na petição e foi confirmada pelas investigações oficiais e o parecer de peritos, foi efetuada com absoluto desprezo pela vida dos detentos, demonstrando-se uma atitude retaliativa e punitiva, absolutamente contrária às garantias que a ação policial deve oferecer. A Comissão registra que as mortes não decorreram de ações em legítima defesa, nem para desarmar os detentos, uma vez que as armas de que disponham, de fabricação caseira, haviam sido depostas no pátio ao entrarem os policiais. Não se comprovou a existência de arma de fogo alguma em poder dos rebeldes, nem que tenham feito disparo algum de arma de fogo contra a polícia. Sua atitude violenta inicial foi rapidamente superada pela entrada maciça da polícia fortemente apetrechada.

A atuação das autoridades civis e dos magistrados supervisores da prisão durante a revolta

64. Segundo dados que os peticionários apresentaram e o Estado não contestou, os juízes supervisores foram chamados pelo diretor da prisão tão logo se deu o alarme às 14h15, ao mesmo tempo em que se convocaram as autoridades policiais. Às 14h30 chegou o comandante Ubiratan Guimarães, chefe da Polícia Metropolitana de São Paulo, com três tropas de assalto, inclusive cães, pelotões de choque e o batalhão ROTA, especializado em combates de grande violência. O Secretário de Segurança transferiu nesse momento a autoridade sobre a prisão para o Comandante Guimarães. Segundo suas declarações à Assembléia Legislativa do Estado, a transferência do comando foi efetuada sem consulta prévia aos juízes supervisores. Tampouco havia recebido instruções no sentido de evitar, na medida do possível, o uso de força letal. O Governador encontrava-se nesse momento fora da cidade e aparentemente só foi informado da rebelião às 17h35.

65. O diretor da prisão declarou perante a Assembléia Legislativa do Estado que tivera a intenção de parlamentar com os amotinados e que para tanto se aproximara do Pavilhão 9 com um megafone à mão, porém fora impedido pela polícia de tomar essa providência ao ser empurrado e posto de lado por um pelotão policial que se dirigia correndo para a entrada do pavilhão. Algo parecido ocorreu com os juízes que chegaram à prisão às 15h45 e aos quais a Polícia Militar indicou que não havia condições para negociar. Às 17 horas, aproximadamente, os juízes foram informados de que o motim terminara, porém os civis não podiam entrar no pavilhão. Somente às 19 horas eles foram autorizados a fazê-lo. Os juízes declararam, em seus depoimentos na Assembléia Legislativa, que haviam visto canos, facas, paus, correntes e pedras no chão, assim como "muitos prisioneiros nus, sentados no chão com as mãos sobre a cabeça". Os juízes não pediram para inspecionar todas as seções e celas; após visitar o primeiro andar do pavilhão, não havendo subido aos andares superiores, passaram ao gabinete do diretor, sem interrogar nenhum preso. Às 22h30 retiraram-se da prisão, após serem informados pelo tenente-coronel Edson Faroro que excedia a 50 o número de mortos. Nesse momento não deram início a nenhuma ação ou sumário. No dia seguinte foram informados de que havia 111 reclusos mortos.26

66. A Comissão considera que as autoridades civis do Estado de São Paulo, não assumiram a responsabilidade que lhes cabia ante a rebelião, particularmente as autoridades da Secretaria de Segurança Pública, que reconhecendo a atitude violenta e de desrespeito ao direito à vida deram carta branca para a invasão do Pavilhão, sem procurarem isolar e apaziguar os rebeldes. Por sua vez, os magistrados judiciais tampouco fizeram valer sua autoridade, pois aceitaram papel totalmente subordinado às indicações dos militares, mesmo depois de extinta a rebelião, quando poderiam ter dado início à investigação a fim de preservar a evidência. Sua simples presença provavelmente tivesse evitado sofrimento e mortes. Tampouco tomaram nesse momento medidas para o controle do destino dos prisioneiros sobreviventes ao massacre inicial, muitos dos quais foram liquidados posteriormente.

A ação policial imediata à rebelião

67. Está cabalmente provado que 111 reclusos foram mortos e cerca de 35 foram feridos em conseqüência da ação policial. Depreende-se também da petição não contestada pelo Estado, assim como das investigações levadas a efeito pela Assembléia Legislativa e por peritos independentes, que muitas das vítimas foram abatidas quando se encontravam indefesas. O próprio Governador Fleury declarou que, pelo fato de alguns detidos terem atacado a polícia e especialmente depois que o Comandante Guimarães fora ferido em conseqüência da explosão de um tubo de televisão, as forças encarregadas de sufocar o levante ficaram fora de controle e teve início o extermínio generalizado tanto dos possíveis líderes ou participantes da revolta como dos que haviam, por sua vez, testemunhado o morticínio indiscriminado. Também se infere do relatório da perícia que os disparos contra as celas haviam partido da polícia, estavam direcionados num único sentido e se situavam a 50 centímetros do chão, indicando que os detentos vitimados se encontravam de joelhos. Infere-se ainda dessas investigações e das declarações de testemunhas sobreviventes que muitos dos mortos foram abatidos quando já se haviam rendido, tinham os braços erguidos e estavam em geral nus. Essas violações dos direitos à vida e à integridade física foram agravadas em sua natureza pela selvageria dos métodos de repressão empregados contra os amotinados já rendidos, pela execução de presos que haviam sido forçados a participar da remoção ilícita de cadáveres, pela agressão contra sobreviventes e pelos golpes aplicados nos ferimentos de sobreviventes, pela demora no socorro médico e pelo assassinato de feridos enquanto eram transportados para os hospitais. Na trágica história de massacres de que a Comissão tem memória, raros são os casos de atos de selvageria e brutalidade comparáveis aos praticados naquela tarde em Carandiru.

Ações destinadas a destruir a evidência e a evitar a ação da imprensa

68. Também de deduz que alguns dos detentos foram mortos depois de cumprirem as ordens de remover os cadáveres de onde originalmente haviam caído, o que é parte de uma evidente série de esforços por destruir as provas que pudessem servir para identificar os policiais responsáveis de cada morte em particular e confundir a evidência das circunstâncias em que ocorreram. Essa série de ações de encobrimento se inicia ao serem os juízes presentes na prisão impedidos de entrar em todos os pavilhões no momento da rendição e continua com a execução de testemunhas e com numerosos outros atos praticados de maneira sistemática para evadir a investigação, confundir a opinião pública e manter a impunidade. Tais ações documentadas na investigação parlamentar consistiram em lavar o sangue do cenário das mortes, impedir a presença de fotógrafos uma vez conseguida a rendição dos rebeldes, prestar informações contraditórias sobre os policiais feridos, tendendo-se a exagerar o número, apresentar treze armas de fogo atribuídas aos detentos, que não correspondiam a disparo algum encontrado e que, por seu estado de oxidação e sua forma de aparecimento, foram notoriamente "plantadas" a posteriori.27

69. O Diretor de Disciplina da prisão testemunhou perante a Amnesty International haver ele solicitado que cada ferido que saísse da prisão fosse acompanhado por pessoal da penitenciária. A polícia não o permitiu e, segundo essa declaração, os primeiros oito feridos que saíram com ferimentos leves para o Hospital Santana, morreram antes ou ao chegar ao hospital, aparentemente executados no trajeto.28

70. Algumas dessas manobras tinham por objetivo evitar e confundir a ação dos jornalistas. Assim, foi impedida a entrada de fotógrafos, mesmo depois de dominada a rebelião, que tiraram fotos dos cadáveres que estavam sendo removidos e dos feridos que se retiravam. Também foi perseguido o jornalista Caco Barcellos, que anteriormente investigara a conduta policial, havendo sido suas comunicações interceptadas, e ele ameaçado a ponto de ter de deixar o país. Embora o número de mortos fosse do conhecimento das autoridades civis e militares às 8 horas de 3 de outubro, os dados só foram comunicados à imprensa às 16h30, meia hora depois de cerradas as urnas da eleição municipal realizada nesse dia. A imprensa foi informada na noite de 2 de outubro que "oito prisioneiros haviam morrido em ataques entre grupos rivais durante a rebelião", quando, na realidade, se tratava dos mencionados oito prisioneiros que saíram com ferimentos leves sob custódia policial e ao chegarem ao hospital estavam mortos.

71. A CIDH observa que, seguindo a mesma diretriz aplicada a casos anteriores,29 cumpre analisar e avaliar o presente caso à luz dos critérios estabelecidos nos "Princípios relativos a uma eficaz prevenção e investigação das execuções extrajudiciais, arbitrárias ou sumárias" adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Resolução 1989/65), a fim de determinar se o Estado cumpriu a sua obrigação de investigar de forma imediata, exaustiva e imparcial as execuções sumárias de pessoas que se encontravam sob o seu controle exclusivo. De acordo com esses princípios, em casos da natureza deste a investigação deve ter por objetivo determinar a causa, a forma e o momento da morte, a pessoa responsável e o procedimento ou prática que pudesse tê-la provocado. Assim, cumpre proceder a uma autópsia adequada, compilar e analisar todas as provas materiais e documentais e recolher as declarações das testemunhas. A investigação deverá fazer a distinção entre a morte por causas naturais, a morte por acidente, o suicídio e o homicídio.

72. Os referidos princípios foram previstos com a aprovação do "Manual sobre a prevenção e investigação eficazes das execuções extra-legais, arbitrárias ou sumárias", segundo o qual o principal objetivo de uma investigação é "descobrir a verdade acerca de acontecimentos que ocasionaram a morte suspeita de uma vítima". Para esse efeito, o Manual estabelece que aqueles que procedem à indagação devem adotar, pelo menos, as seguintes medidas:

    1. Identificar a la vítima;
    2. Recuperar e conservar meios probatórios relacionados com a morte a fim de concorrer para qualquer possível julgamento dos responsáveis;
    3. Identificar as testemunhas possíveis e obter delas declarações com respeito à morte;
    4. Determinar a causa, a forma, o local e a hora da morte, bem como qualquer método ou prática que possa ter provocado a morte;
    5. Fazer a distinção entre morte natural, morte acidental, suicídio e homicídio;
    6. Identificar e deter a pessoa ou as pessoas que tenham participado da execução;
    7. Submeter o perpetrador ou os perpetradores suspeitos de haver cometido um crime a um tribunal competente estabelecido por lei.

73. A fim de garantir a realização de uma investigação exaustiva e imparcial de uma execução extra-legal, arbitrária ou sumária, o Manual estabelece que um dos aspectos mais importantes da mesma é a reunião e análise das provas". Por conseguinte, "as pessoas encarregadas da investigação de uma suposta execução extrajudicial devem ter acesso ao local em que se descobriu o cadáver, bem como ao local em que possa ter ocorrido a morte". Segundo as normas previstas no Manual, o procedimento de recolhimento da prova deve ajustar-se a certos critérios, alguns dos quais são indicados a seguir:

    1. A área contígua ao cadáver deve ser cerrada. Só será permitido o ingresso na área aos investigadores e seu pessoal;
    2. Deve-se tirar fotografias em cores da vítima, pois estas, comparadas com fotografias em branco e preto, poderiam revelar com mais detalhes a natureza e circunstâncias da morte da vítima:
    3. Deve ser fotografado o local (interior e exterior), bem como toda prova física;
    4. Deve-se deixar consignada a posição do cadáver e a condição de suas roupas;
    5. Devem ser anotados os fatores que sirvam para determinar a hora da morte, tais como:
    1. Temperatura do corpo (morno, fresco, frio);
    2. Localização e grau de fixação dos tecidos lívidos;
    3. Rigidez cadavérica; e
    4. Estado de decomposição.
    1. Devem ser recolhidas e conservadas todas as provas da existência de armas, tais como armas de fogo, projéteis, balas, casquilhos e cartuchos. Quando for procedente, devem ser realizados testes para a detecção de resíduos de disparos e de metais.

74. A Comissão comprova que essas normas não foram respeitadas, mas sistematicamente violadas com intuito de destruir a evidência e evitar a identificação e condenação dos responsáveis.

O tratamento dos feridos

75. A petição informa sobre um número não identificado de feridos cuja assistência médica fora retardada durante dias e que vieram em alguns casos a falecer em conseqüência da falta de socorro médico adequado. Esses dados são confirmados pela investigação parlamentar, assim como pelo relatório da Anistia Internacional.30 Nenhum deles foi contestado pelo Estado em suas exposições. Da análise dos documentos depreende-se que não apenas se deixou de prestar a esses feridos adequada assistência como vários foram depois arbitrariamente executados, o que é confirmado pela proporção mínima de feridos graves em relação a mortos. Esses fatos, que tampouco foram negados pelo Governo, são corroborados pelos depoimentos de guardas da prisão. Mais ainda, alguns dos poucos feridos sobreviventes sofreram maus-tratos e receberam golpes em seus ferimentos, como uma forma de vingança e punição.31

O tratamento das famílias

76. Segundo as normas das Nações Unidas sobre padrões mínimos de tratamento de prisioneiros – Norma 44.1, "no caso de morte, doença grave ou lesão grave de um prisioneiro, o Diretor informará imediatamente ao cônjuge, se o prisioneiro for casado e, se não o for, a seus familiares mais próximos, devendo em todos os casos informar a qualquer outra pessoa previamente designada pelo prisioneiro". Apesar de o número de mortos ser do conhecimento da polícia às 8 horas da manhã seguinte, ou seja, de 3 de outubro, os familiares que esperavam à porta da prisão não receberam informação oficial. Somente em 4 de outubro foi publicada uma lista dos 111 mortos, que foi afixada à porta da prisão. Não houve informação formal a cada família. Tampouco foi indicado aos familiares os necrotérios a que foram enviados os cadáveres, com o que tiveram de percorrer vários necrotérios para encontrar o cadáver do parente morto. Havia vários erros na lista oficial e três detentos dados por mortos apareceram vivos. Até o dia 6 de outubro não havia informação oficial sobre os sobreviventes e, embora houvesse um registro central de detentos, só no dia 8 foi expedida informação oficial sobre os mortos e sobreviventes. Em 3 e 5 de outubro, policiais não identificados agrediram a golpes a multidão de familiares que esperavam à porta da prisão e contra eles lançaram seus cães.

As investigações oficiais e a ação da justiça

As investigações oficiais

77. Oito entidades oficiais, seis do Estado de São Paulo e duas do Governo da União, procederam a investigações das ocorrências. As entidades estaduais eram a Polícia Civil, a Polícia Militar, o Serviço de Prisioneiros, o Ministério Público, o Poder Judicial e a Assembléia Legislativa. As do Governo Nacional eram o Conselho para a Defesa dos Direitos Humanos, órgão consultivo do Ministério da Justiça, e o Conselho para Políticas sobre Crime e Prisões. Embora com diferentes interpretações, nenhuma delas nega os excessos e crimes militares, nem que os prisioneiros tenham sido mortos quando se achavam indefesos em suas celas. Nenhuma delas foi capaz de determinar responsabilidades individuais pelos homicídios.

78. Os órgãos oficiais do Estado de São Paulo admitiram que tinha havido excessos, mas em geral os consideraram reações previsíveis ante a ação violenta dos detentos. Em geral tenderam a eximir a polícia de culpa, considerando que o planejamento e operação policial fora correto ("perfeito" segundo a nota do Comandante da Polícia Militar mediante a qual enviou os resultados da investigação interna, justificando os excessos). A investigação parlamentar, realizada pela maioria das entidades filiadas ao partido do Governador, afirmou que tinha havido excessos censuráveis que não deviam repetir-se, mas não especificou responsabilidades nem admitiu que tinha havido um "massacre".32 A investigação do Poder Judicial eximiu de culpa os juízes intervenientes, observando que realizaram suas tarefas de maneira adequada.

79. Por outro lado, as investigações do Governo Federal assinalaram que "foi uma ação sem planejamento adequado, sem coordenação, uma ação criminal violenta por excelência e irresponsável". Salientou que a "Polícia Militar de São Paulo havia assassinado sem justificação 111 prisioneiros sob sua custódia e a responsabilidade do Estado" e que a ela cabia a responsabilidade penal e civil pela autoria. Também considerou que se tratava do "resultado natural da política de violência estabelecida no Estado de São Paulo nessa época, segundo a qual "a tortura e as execuções sumárias eram um método de trabalho". (AMR p. 26). Entretanto, esses órgãos federais são consultivos e suas recomendações não são obrigatórias, como publicamente observou o então Ministro das Relações Exteriores F. H. Cardozo, que alegou não haver um mecanismo legal que permitisse ao Governo Federal assegurar que os responsáveis fossem adequadamente julgados na justiça estadual.

80. A Comissão conclui que diferentes organismos do Estado de São Paulo e do Governo do Brasil realizaram investigações sobre os fatos. Embora todas elas tenham sido prejudicadas pelas atividades de encobrimento e destruição de provas, desenvolvidas pela Polícia Militar paulista e anteriormente descritas, torna-se evidente o contraste entre as realizadas pelos organismos do Estado de São Paulo, que tendem a minimizar e justificar as autoridades estaduais civis e militares e eximi-las de responsabilidade, e as efetuadas pelo Governo do Brasil, que chegam à conclusão, com base em provas, de que houve um massacre de prisioneiros e violações graves e sistemáticas por parte das autoridades policiais estaduais. A Comissão conclui também neste caso que não há, ou não funcionaram, na República do Brasil mecanismos eficazes do Governo nacional para obrigar as autoridades federais a atuar, no que tange a direitos humanos, de maneira coerente com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado nacional, ou para estabelecer, por meios federais, outros mecanismos de prevenção, ação e reparação que compensem tais deficiências estaduais.

Procedimentos judiciais

81. Tal como se analisou na seção sobre o esgotamento dos recursos internos (parágrafos 39 a 51), decorridos sete anos desses fatos não foram aplicadas sanções a nenhum dos responsáveis por eles. Um processo em que se acusam lesões corporais leves, não obstante as gravidades destas, prescreveu (ver o parágrafo 42); outros estão parados; em outros foram proferidas sentenças absolutórias, e os processos contra o Comandante Guimarães foram tolhidos pela imunidade parlamentar a que este tinha direito, como membro da Assembléia Legislativa, de janeiro de 1997 até a conclusão de seu mandato, em 1999. Não obstante os numerosos pedidos formulados por instituições nacionais e internacionais, a Assembléia indeferiu a suspensão da imunidade parlamentar do Comandante Guimarães, razão por que o processo contra ele está parado.

82. Tampouco houve indenização adequada das famílias. A esse respeito, a Comissão foi informada pelo Estado de que este havia movido ações indenizatórias e que em 49 deles havia sido concedida indenização às famílias. A Comissão foi, porém, informada de que tais indenizações, embora tenham sido ordenadas, não foram efetivadas, por não haver no orçamento estadual dotações para isso destinadas. O Governo também afirmou que o Estado havia reconhecido sua responsabilidade civil no foro civil e que se devia esperar a resolução no foro penal.

83. Conforme se analisa também na seção sobre esgotamento, o processo judicial que acusava 121 policiais militares perante a justiça militar foi transferido para a justiça comum em março de 1996 (três anos e meio depois das ocorrências) alegando-se que também havia acusados civis. Contudo, o processo permaneceu paralisado por quase um ano, pelo atraso injustificado do Tribunal Superior de São Paulo em definir-se quanto ao conflito de competências, o que ocorreu somente um ano depois, em abril de 1997, não obstante haver entrado em vigor em 7 de agosto de 1996 a Lei 9.099, que possibilita a transferência à justiça comum de crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares contra civis o ao Promotor, depois que entrou em vigor a Lei Bicudo.

84. O julgamento dos 120 policiais militares passou a julgamento por júri popular, que foi concretizado em novembro de 1998 com a declaração de inocência dos réus, apelada pelo Promotor. Por sua vez, o processo 266/93 contra o policial militar Edson Faoro e o Diretor da Penitenciária Ismael Pedrosa, acusados de abuso de autoridade, foi concluído com sentença absolutória em setembro de 1997.

85. O processo contra sete policiais militares por lesões infligidas ao detento Edson Xavier dos Santos foi suspenso a pedido do Ministério Público, com base no artigo 80 da Lei 9.099, que prevê a possibilidade de suspensão condicional do processo no caso de crimes com pena mínima de um ano de prisão. Esse crime de inflição de lesões graves ao detento foi cometido depois de os rebeldes se haverem rendido, e haverem passado a ser espancados pela polícia.

86. A Comissão conclui que os diferentes processos judiciais tramitados na justiça militar e na justiça comum paulista sofreram numerosos atrasos e adiamentos injustificáveis, deixaram de estabelecer a verdade dos fatos e as responsabilidades coletivas e individuais e não impuseram indenizações adequadas às vítimas e seus familiares. Conclui também que, apesar da já analisada destruição de provas pela Polícia Militar, havia outros meios de provar que teriam permitido uma investigação séria e profissional, e que não foram devidamente utilizados pela Promotoria e pelos magistrados competentes, o que contribuiu para a impunidade resultante.

B. O DIREITO

Direito à vida (artigo 4) e à integridade pessoal (artigo 5)

87. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos consagra o direito à vida e à integridade pessoal como direitos humanos fundamentais que o Estado deve respeitar, fazer respeitar e garantir (artigos 1(1), 4 e 5).33 A Corte declarou o seguinte:

a análise a ser efetuada tem a ver antes com o direito do Estado de usar a força, embora ela implique a privação da vida, na manutenção da ordem, o que não está em discussão. Há abundantes discussões em filosofia e na história sobre a maneira de a morte de indivíduos nessas circunstâncias não gerar para o Estado nem para seus funcionários responsabilidade alguma.34

[Está a salvo de qualquer dúvida que o Estado tem o direito e o dever de garantir sua própria segurança. Tampouco se pode discutir que toda sociedade padece pelas infrações de sua ordem jurídica; entretanto, por mais graves que possam ser certas ações e por mais culpáveis que sejam os réus de determinados delitos, não cabe admitir que o poder possa ser exercido sem limite algum ou que o Estado possa valer-se de qualquer procedimento para alcançar seus objetivos sem sujeição ao direito e à moral. Nenhuma atividade do Estado pode fundamentar-se no desprezo à dignidade humana.35

88. Dos fatos analisados destaca-se em particular a omissão de ações que prevenissem a rebelião, inclusive as condições contrárias à lei de aglomeração e tratamento a que os presos estavam sujeitos, assim como os atos praticados durante a subjugação do motim e o modo como os detentos foram tratados, especialmente: (a) as execuções extrajudiciais de 111 presos, quando estes já estavam rendidos e indefesos, e os oito casos de feridos que foram mortos quando eram transportados para o hospital; (b) um número não determinado de feridos graves que também foram mortos quando já rendidos e indefesos; e (c) os maus-tratos e torturas infligidos a muitos dos presos que sucumbiram em seguida, conforme se depreende das marcas deixadas em seus cadáveres, e os ferimentos infligidos em muitos dos que conseguiram sobreviver. Tudo isso se infere das investigações oficiais e privadas levadas a efeito, das numerosas provas apresentadas em juízo e à Comissão e da própria assunção de responsabilidade pelo Estado brasileiro, depreendendo-se que tais atos configuraram execuções extrajudiciais e o emprego deliberado de força desmedida calculada para matar ou para pelo menos ferir gravemente. Nessas circunstâncias, caracterizam-se as mortes como execuções humanas, os maus-tratos e as torturas dos detentos, assim como a negligência anterior de parte do Governo em prevenir a irrupção desses perigosos motins e em remediar as condições ilegais do tratamento dispensado aos presos, tudo isso em violação dos artigos 4(1) e 5 da Convenção.

89. Da obrigação que têm o Estado e seus agentes de respeitar a vida e a integridade pessoal dos que se encontram sob a sua custódia faz parte o dever de prestar informação adequada e oportuna a seus familiares a respeito da situação em que se encontram seus entes queridos, uma obrigação que se torna especialmente sensível em situações de atrito e violência como as que foram analisadas. A desatenção negligente ou dolosa para com esses familiares que durante dias permaneceram nas imediações da prisão aguardando notícias confiáveis constitui por si só uma violação e a causa de dano moral que o Estado tem o dever de assumir e reparar, assim como lhe cabe tomar medidas para evitar que se repitam. Esses fatos configuram de per si uma violação do direito à integridade pessoal (artigo 5 da Convenção) em relação tanto ao aspecto físico, pelo ataque indiscriminado com cães policiais, como à angústia que o atraso injustificado na informação sobre os mortos e feridos e a conseqüente incerteza geraram nas famílias afetadas.

90. O massacre de Carandiru de 2 de outubro de 1992, e seus antecedentes e seqüelas, devem ser também analisados em relação à obrigação do Estado de:

organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público de maneira que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos.36

91. a Comissão conclui que nem o Estado de São Paulo nem a República Federativa do Brasil haviam tomado antes da rebelião, nem durante ou depois, medidas para organizar seu aparato governamental a fim de evitar tais tragédias. Depreende-se dos citados antecedentes que o Estado, anteriormente às ocorrências e levando-se em conta as condições da prisão, não havia desenvolvido planos e estratégias para melhorá-las de maneira eficaz e legal, nem para sua atuação ante as freqüentes irrupções de violência que a situação provocava. Em primeiro lugar, as condições ilegais de aglomeração e de vida na prisão aumentavam as possibilidades de incidentes de violência. O que era uma rixa entre detentos recebeu tratamento que degenerou em rebelião contra a guarda diminuta encarregada da segurança da prisão. A falta de um mecanismo de pacificação rápida permitiu a irrupção e crescimento do incidente, que envolveu grande número de detentos. A capacidade de negociação das autoridades da penitenciária era mínima e foi sufocada pelo comando da Polícia Militar. Também foi impedida pelas ordens dadas às forças policiais pelas autoridades civis, particularmente pelo Secretário de Segurança Pública. A atuação dos magistrados judiciais encarregados da supervisão da prisão também foi abortada pelas forças policiais, subvertendo-se a hierarquia da tomada de decisões que correspondia à situação. Em definitivo, toda a estratégia de ação estatal se baseou na utilização imediata de toda a força disponível, com absoluta falta de proporcionalidade e totalmente sem estratégia que permitisse resolver a situação eficazmente com respeito à vida e à integridade dos detentos. O uso sistemático de violência letal desproporcionada por parte da Polícia Militar de São Paulo no manejo da segurança pública, comprovado pelas estatísticas oficiais referentes a esses anos, era uma prática que se repetiu na repressão da revolta de 2 de outubro. Essa falta de planejamento por parte do Estado de medidas para melhorar as condições de vida anteriores na Penitenciária, bem como de organização de estratégias legais, eficazes e compatíveis com o respeito à vida para o manejo de situações de emergência nas penitenciárias também configura uma violação dos compromissos internacionais estabelecidos na Convenção, nos artigos 4 e 5, em relação ao artigo 1.

Direito às garantias judiciais e ao devido processo (artigos 8 e 25 da Convenção)

    1. A Convenção Americana, em seu artigo 25, dispõe o seguinte:

Toda pessoa tem direito a um recursos rápido e simples ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.

Los Estados Partes comprometem-se:

    1. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
    2. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
    3. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.

 

93. A Corte assinalou que, segundo a Convenção,

os Estados Partes se obrigam a proporcionar às vítimas de violação dos direitos humanos (artigo 25) recursos que devem ser substanciados de conformidade com as normas do devido processo judicial (artigo 8.1), tudo isso como parte da obrigação geral dos mesmos Estados de garantir o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a toda pessoa que se encontre sob sua jurisdição.

A inexistência de um recursos efetivo contra as violações dos direitos reconhecidos pela Convenção constitui uma transgressão da mesma pelo Estado Parte e não basta que o recursos exista ou que seja formalmente admissível, mas se requer que seja realmente idôneo para estabelecer que se incorreu numa violação dos direitos humanos e prover o que for necessário para remediá-la. Não podem ser considerados efetivos os recursos que, pelas condições gerais do país, ou inclusive pelas circunstâncias particulares de determinado caso, sejam ilusórios.

Isso pode ocorrer, por exemplo, quando sua inutilidade tenha sido demonstrada na prática, seja porque o Poder Judicial careça da independência necessária para decidir com imparcialidade, seja porque faltem os meios para executar suas decisões, e por qualquer outra situação que configure um quadro de denegação da justiça, como sucede quando se incorre em atraso injustificado na decisão.

94. Conclui a Comissão que a total impunidade até a presente data dos atos praticados no dia 2 de outubro de 1992 é evidenciada pelo seguinte: (a) a falta de uma ação eficaz de parte dos juízes que se encontravam presentes enquanto o motim era debelado e nas primeiras horas seguintes, assim como o entorpecimento de sua ação pelas forças policiais; (b) a destruição e desfiguração intencional das provas nas horas que se seguiram ao motim e à sua subjugação; (c) o atraso injustificado na tramitação do processo central na Justiça Militar e do recurso junto ao Tribunal Superior de Justiça: (d) a negligência que levou à prescrição da ação penal por lesões leves contra um detento (parágrafo 42); (e) o cancelamento do processo por lesões graves; (f) a não suspensão da imunidade parlamentar do oficial que comandou a subjugação do motim; por tudo isso o Estado violou o seu compromisso de respeitar e assegurar o direito à justiça e às garantias judiciais que a Convenção assevera (artigos 1(1), 8 e 25). Essa ineficácia e negligência demonstrada na intervenção judicial durante os acontecimento e nos processo judiciais em curso na esfera penal-militar e na justiça comum leva a que, transcorridos sete anos desses acontecimentos, subsistam a total impunidade dos responsáveis e a ausência tanto de uma versão oficial e completa dos fatos como de uma assunção de responsabilidade específica pelos mesmos, assim como por sua reparação.

95. A Comissão assinalou em sua jurisprudência que:

disposições normativas que procuram obstar o livre exercício do direito a um recurso ou remédio eficaz para julgar e punir de forma efetiva funcionários que violam os direitos humanos amparados no poder e na impunidade que seus cargos lhes conferem ... são ... violatórias da obrigação do Estado de respeitar e garantir tais direitos, juntamente com o direito que tem toda pessoa à proteção judicial, consagrados nos artigos 1(1) e 25 da Convenção Americana.

96. A Constituição da República Federativa do Brasil e a do Estado de São Paulo, em artigos semelhantes, estabelecem tanto a inviolabilidade dos deputados e dos senadores por "suas opiniões, palavras e votos" (Constituição do Brasil, artigo 53), como a não processabilidade ou imunidade processual e de prisão "sem prévia licença de sua Casa" (o grifo é da Comissão) que vige desde a expedição de seu diploma, salvo em flagrante de crime inafiançável (Constituição do Brasil, artigo 53(1)), o que suspende a prescrição enquanto durar o mandato (Constituição do Brasil, artigo 53(2)).

97. No presente caso, o comandante das forças encarregadas de sufocar o motim, Coronel Guimarães, que vinha sendo processado por homicídios dolosos e outros crimes graves, foi posteriormente eleito deputado à Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, em 1997, o que lhe conferiu imunidade parlamentar até o final de seu mandato em princípios de 1999, quando não foi reeleito. Durante todo o seu mandato, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo absteve-se de suspender a sua imunidade, não obstante a notoriedade do caso e as solicitações nesse sentido formuladas por diferentes organismos e por vários deputados.

98. A Comissão nota com preocupação que, nos termos da legislação brasileira (e no presente caso devido à inação da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo), é facultado a um parlamentar, apenas pelo fato de haver sido eleito, livrar-se de processo criminal, ainda que sob a acusação de crimes graves, inclusive homicídio com aleivosia e tortura, cometidos antes de iniciar-se o seu mandato ou no curso deste. Embora a Comissão compreenda que a imunidade parlamentar é necessária, principalmente quando se trata de ações relacionadas com a atividade parlamentar, quando a imunidade se traduz em total impunidade, como neste caso de graves violações dos direitos humanos, tal prática é incompatível com os compromissos fundamentais do Estado nos termos da Convenção Americana. Admitir essa imunidade privaria as vítimas do direito a remédio judicial efetivo, conforme disposto no artigo 25 da Convenção.  

A obrigação de investigar

99. O não-cumprimento da obrigação de investigar imediatamente assumiu diversas formas neste caso, revelando-se em primeiro lugar na responsabilidade da própria Polícia Militar por eliminar a evidência e da Polícia Civil por não fazer enérgica intervenção que pudesse documentar e salvar a evidência física no Pavilhão, e nas deficiências das autópsias forenses, bem como do Ministério Público paulista e dos órgãos judiciais desse Estado, que não aproveitaram a quantidade de provas existentes, que poderiam haver levado a efetivo processamento dos responsáveis.

100.    Embora a obrigação de investigar se refira a "meio" e não a "resultado", o Estado, ante um fato dessa magnitude, deve pôr a disposição todo o seu aparato administrativo, policial e do Ministério Público para que proceda a uma investigação séria, exaustiva, imparcial e concludente, apoiada pelos órgãos políticos e legislativos no que for necessário, o que não ocorreu. A Comissão salienta, para esse efeito, a incapacidade do Estado Federativo do Brasil, cujo governo central chegou à conclusão em suas investigações de que tinha havido um massacre injustificado, e de que não dispunha de um mecanismo efetivo que obrigasse o Estado de São Paulo a aprofundar sua investigação a fim de dar ensejo a uma ação judicial e administrativa eficaz, coerente com os compromissos internacionais do Brasil.

101. A Comissão conclui, por conseguinte, que o Estado não cumpriu sua obrigação de investigar de maneira exaustiva, imparcial e concludente os fatos ocorridos em Carandiru objeto deste caso, desse modo contribuindo para a impunidade e a conseqüente falta de indenização.

A obrigação de processar e punir os responsáveis

102. A Comissão conclui que o Estado não cumpriu sua obrigação de processar e punir os responsáveis. Como corolário do artigo 1(1) da Convenção, o Estado tem a obrigação de garantir o pleno exercício dos direitos nela reconhecidos e deve prevenir, investigar e punir qualquer violação. O Estado sustentou que haviam sido iniciados diferentes processos e que estes estavam sendo conduzidos de acordo com a legislação interna e em coerência com o respeito às garantias processuais. Contudo, da análise do decurso e resultados de tais processos, comprova-se que sofreram atrasos injustificáveis e se depararam com negligências e obstáculos de toda natureza, todos eles de fato ou intencionalmente destinados a assegurar a impunidade dos responsáveis. Sete anos depois das ocorrências, essa completa incapacidade de punir os responsáveis é uma manifestação definitiva do não-cumprimento da obrigação constante do artigo 1(1) da Convenção.

103.    Essa obrigação é violada não só pela falta de condenação efetiva dos acusados mas também por uma série de violações e delitos que ficaram sem punição: particularmente a incapacidade de tomar as necessárias medidas para preservar as provas, a incapacidade de intervenção do Poder Judiciário durante as ocorrências, a falta de ação firme e efetiva do Ministério Público para o processamento dos implicados por responsabilidade individual ou conivência, a falta de medidas de direito interno para ativar mecanismos federais com vistas a reforçar a incapacidade da Promotoria Pública do Estado federal quando esta se mostra incapaz de obedecer aos padrões mínimos de garantia de direitos reconhecidos e a não-suspensão pela Assembléia Legislativa de São Paulo da imunidade de um de seus membros, acusado de comandar uma operação que culminou na perpetração de homicídios dolosos e outros delitos atrozes.

A obrigação de indenizar

104. Adicionalmente, a Comissão salienta a falência do Estado brasileiro em indenizar as vítimas desses fatos ou seus familiares, segundo o caso. É obrigação do Estado assegurar à vítima adequada reparação pelas violações da Convenção, por ação de seus agentes ou pela falta de garantias adequadas. Essa reparação depende de que haja uma violação da Convenção e, neste caso, as referidas violações do direito à vida, à integridade pessoal, à justiça e às garantias judiciais, ficaram claramente estabelecidas.

105. A Corte Interamericana, ao comentar a obrigação de "garantir" os direitos estabelecidos no artigo 1(1) da Convenção, declarou o seguinte:

Em conseqüência dessa obrigação, os Estados devem (...) procurar, ademais, o restabelecimento, se possível, do direito conculcado e, quando cabível, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos.

106. A reparação das vítimas não se restringe à indenização financeira. Deve incluir medidas de compensação, reabilitação, no caso de sobreviventes feridos, compensação dos danos morais das famílias e garantias de que não se repitam. A Comissão salienta que, embora o Estado tenha iniciado vários anos depois das ocorrências ações judiciais de reparação, não foram elas efetivadas até este momento, segundo as informações de que dispõe, além de a demora injustificada dos processos penais, e sua ineficácia, terem impedido as vítimas de iniciar os correspondentes processos civis de indenização e reparação. Isso constitui per se uma violação independente da Convenção, pela qual o Estado é responsável e cujos danos devem ser reparados. A Comissão lembra que o direito internacional determina que:

os Estados têm o dever de adotar, quando a situação o requeira, medidas especiais, a fim de permitir a outorga de indenização rápida e plenamente eficaz.

Ações Poteriores ao Relatório120/99 (art.50)

107. A Comissão transmitiu o Relatório anterior ao Estado na data de 26 de outubro de 1999, concedendo-lhe um prazo de dois meses para dar cumprimento às recomendações formuladas; e informou os peticionários da aprovação do informe previsto no artigo 50 da Convenção. Vencido o prazo concedido, a Comissão não recebeu qualquer resposta do Estado a respeito das citadas recomendações.  

VI. CONCLUSÕES

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS CONCLUI QUE:

1. Tem competência para conhecer deste caso e que a petição é admissível, em conformidade com os artigos 46 e 47 da Convenção Americana.

2. A República Federativa do Brasil violou suas obrigações decorrentes dos artigos 4 (direito à vida) e 5 (direito à integridade pessoal), em virtude da morte de 111 pessoas e de um número indeterminado de feridos, todos eles detidos sob a sua custódia, na subjugação do motim de Carandiru em 2 de outubro de 1992, pela ação dos agentes da Polícia Militar de São Paulo.

3. A República Federativa do Brasil é responsável pela violação dos citados artigos da Convenção por motivo do descumprimento, no caso dos internos em Carandiru, das devidas condições de detenção e pela omissão em adotar estratégias e medidas adequadas para prevenir as situações de violência e para debelar possíveis motins. A Comissão reconhece que foram tomadas medidas para melhorar as condições carcerárias, em particular a construção de novas instalações penitenciárias, a fixação de novas normas de detenção e o estabelecimento no Estado de São Paulo de uma secretaria especial responsável por esses assuntos.

4. A República Federativa do Brasil é responsável pela violação dos artigos 8 e 25 (garantias e proteção judicial) em conformidade com o artigo 1(1) da Convenção, pela falta de investigação, processamento e punição séria e eficaz dos responsáveis e pela falta de indenização efetiva das vítimas dessas violações e seus familiares.

VII. RECOMENDAÇÕES

Com fundamento na análise e nas conclusões deste relatório,

A Comissão de Direitos Humanos recomenda à República Federativa do Brasil o seguinte:

1. Realizar uma investigação completa, imparcial e efetiva a fim de identificar e processar as autoridades e funcionários responsáveis pelas violações dos direitos humanos assinaladas nas conclusões deste relatório.

2. Adotar as medidas necessárias para que as vítimas dessas violações que foram identificadas e suas famílias recebam adequada e oportuna indenização pelas violações definidas nas conclusões deste relatório, assim como para que sejam identificadas as demais vítimas.

3. Desenvolver políticas e estratégias destinadas a descongestionar a população das casas de detenção, estabelecer programas de reabilitação e reinserção social acordes com as normas nacionais e internacionais e prevenir surtos de violência nesses estabelecimentos. Desenvolver, ademais, para o pessoal carcerário e policial, políticas, estratégias e treinamento especial orientados para a negociação e a solução pacífica de conflitos, assim como técnicas de reinstauração da ordem que permitam a subjugação de eventuais motins com o mínimo de risco para a vida e a integridade pessoal dos internos e das forças policiais.

4. Adotar as medidas necessárias para o cumprimento, no presente caso, das disposições do artigo 28 da Convenção (Cláusula federal) relativas às matérias que correspondem à competência das entidades componentes da federação, neste caso o Estado de São Paulo.

VIII. PUBLICAÇÃO

108. Em 24 de fevereiro de 2000, a Comissão decidiu enviar este relatório ao Estado brasileiro, o que foi feito em 3 de março de 2000, de acordo com o artigo 51 da Convenção, e lhe foi concedido o prazo de um mês, a partir do envio, para o cumprimento das recomendações acima indicadas. Expirado esse prazo, a Comissão não recebeu resposta do Estado brasileiro.

109. Em virtude das considerações anteriores e, de conformidade com os artigos 51(3) da Convenção Americana e 48 de seu Regulamento, a Comissão decidiu reiterar as conclusões e recomendações dos parágrafos precedentes, tornar público este relatório e incluí-lo em seu Relatório Anual à Assembléia Geral da OEA. A Comissão, em cumprimento de seu mandato, continuará a avaliar as medidas tomadas pelo Estado brasileiro com relação às recomendações mencionadas, até que tenham sido cabalmente cumpridas.

Passado e assinado na sede da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na cidade de Washington, D.C., aos 13 dias do mês de abril de 2000 (Assinado): Primeiro Vice-Presidente; Claudio Grossman, Segundo Vice-Presidente; Juán E. Méndez, Membros: Marta Altolaguirre, Robert K. Goldman, Peter Laurie e Julio Prado Vallejo.

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* O membro da Comissão Helio Bicudo, de nacionalidade brasileira, não participou do debate nem da votação deste caso em cumprimento ao artigo 19.2.a do Regulamento da Comissão.

1 Em virtude da lei 9.299/96, promulgada em 6 de agosto de 1996, os processos relativos a homicídios dolosos cometidos por policiais militares deixariam de ser considerados pela Justiça Militar e passariam à jurisdição da Justiça Criminal Ordinária. A lei é conhecida como "Lei Bicudo", por ter como seu principal autor o deputado Helio Bicudo.

2 Os peticionários juntam notícias publicadas nos jornais e o relatório da Anistia Internacional. Ver este relatório, Prison massacre at the Casa de Detenção, São Paulo, 19-8-93, p. 4, doravante denominado "AMR".

3 No Brasil, a responsabilidade judicial sobre os estabelecimentos penais cabe a dois juízes. O Juiz Corregedor (juiz inspetor de prisões) responde pelo bem-estar dos prisioneiros, enquanto a responsabilidade pela supervisão do cumprimento das sentenças recai sobre o juiz da Vara de Execuções Criminais, ou seja, o tribunal de condenação criminal. Ao Gabinete do Promotor Público também cabe a responsabilidade de visitar regularmente as prisões e de intervir em casos de abuso. Ver o relatório da Anistia Internacional, Prison massacre at the Casa de Detenção, São Paulo, 19-8-93, p. 4.

4 Não houve uma indicação definitiva do número de feridos e as versões oficiais variam. Conforme depois se relata, detentos que haviam sido feridos durante a repressão foram posteriormente executados.

5 Nota dos peticionários de 8/10/97.

6 Folha de Sao Paulo, 28 de setembro de 1997.

7 Comunicação dos peticionários feita em março de 1995, levada ao conhecimento do Estado.

8 Corte IDH Caso Neira Alegría, Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafo 60.

9 Mencionam as Sentenças Velázquez Rodríguez, de 29 de julho de 1889, Nº 174, e Godinez Cruz, de 20 de janeiro de 1989, Nº 185,

10 A sentença consta da folha 112.

11 A Lei 9299 no se achava em vigor nesse momento e, por conseguinte, a transferência ordenada não se baseava nessa lei mas , como se observa, na existência de suposta responsabilidade de civis.

12 O Estado em momento algum negou os fatos alegados na petição e apresentou à Comissão informações mediante as quais em geral aceita sua culpa pelas violações cometidas. Por sua vez, em declarações à imprensa obtidas pela Comissão, o Governador do Estado de São Paulo na época dos acontecimentos, Luiz Antonio Fleury Filho (que antes de ser Governador havia sido Secretário de Segurança Pública) admitiu posteriormente que o ocorrido era um massacre e o atribuiu ao fato de due, ao cair ferido o Comandante Guimarães, os policiais, que segundo ele até então realizavam a operação de maneira correta, "ficaram sem controle, e surgiram açoes individuais que poderiam ser chamadas de massacre, ou ações de extermínio". Sustentou que as instruções dadas eram apropriadas e legais. (Folha de São Paulo, 28 de novembro de 1997).

13 O programa se propõe construir em sua fase inicial nove presídios, seis e segurança máxima, dois de segurança média e uma casa de detenção para processados sem condenação. Cada penitenciária abrigará 600 pessoas e a casa de detenção 3.600. Na segunda fase, serão construídos outros 25 presídios para 600 detentos cada um deles. Em todos eles se procurará a ressocialização do detento.

14 O Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 25 de setembro de 1992.

15 PINTO, Mónica, La denuncia ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, Editores del Puerto, 1993, página 64.

16 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velázquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1988, parágrafos 62-66; Caso Fairén Garbi e Solís Corrales, Exceções preliminares, de 15 de março de 1989, parágrafos 86-90; Caso Godínez Cruz, Sentença de 20 de janeiro de 1989, párágrafos 65-69.

17 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Sentença Velázquez Rodríguez, 29 de julho de 1988, parágrafo 72; Sentença Fairén Garbi e Solís Corrales, Exceções preliminares, 15 de março de 1989, parágrafo 97; Sentençá Godínez Cruz, 20 de janeiro de 1989, parágrafo 75.

18 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Godinez Cruz , Sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo 95.

19 Esse tipo de demora exerce efeito negativo na eficácia dos recursos da jurisdição interna, pois da ensejo à deterioração das provas, especialmente das declarações das testemunhas, as quais, transcorridos tantos anos, podem modificar ou tender a esquecer os fatos. Isto, sem dúvida, mina a eficácia dos processos destinados a determinar responsabilidades ou condenar os culpados.

20 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Godínez Cruz, Sentença de 26 de junho de 1987, parágrafo.95.

21 AMR, p.6.

22 Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, Elementos para uma reflexão buscando respostas para a questão das rebeliões e dos reféns, maio de 1998, p. 5. Citação feita no relatório da CIDH sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, 1995, p. 71.

23 A mesma comissão parlamentar comparou esse registro com o da Polícia de Nova York correspondente ao ano de 1991. Em NY a polícia, na sua luta contra o crime, causou a morte de 27 civis, em contraste com as 1.140 de autoria da PM de São Paulo. Mais ainda, a proporção de mortos/feridos pela polícia de NY era de uma morte para dois feridos, enquanto a da PM era de três mortes para cada ferido. Investigação da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Citação feita no AMR, p. 7.

24 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Neira Alegría, Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafo 60.

25 Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafos 60 e 61. "Nos termos do artigo 5(2) da Convenção, toda pessoa privada de liberdade tem direito a viver em condições de detenção compatíveis com a dignidade inerente ao ser humano e o Estado deve garantir-lhe o direito à vida e à integridade pessoal. Em conseqüência, o Estado, como responsável pelos estabelecimentos de detenção, é garante desses direitos dos presos".

26 Comunicado dos três juízes emitido em 8 de outubro de 1992. AMR, op. cit., p. 10.

27 AMR, P.8/9.

28 AMR, P.16.

29 CIDH. Caso 11.137, Abella-Argentina, Relatório Anual 1997, parágrafos 414 e 415. Caso 11.411, Ejido Morella-México, Relatório Anual 1997, parágrafos 109 a 111 do relatório sobre o mérito.

30 Investigação parlamentar da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo citada pela Anistia Internacional, AMR, 19-8-93, p. 17.

31 AMR, 19-8-93, p. 18.

32 A bancada da oposição dissentiu dos resultados e publicou seu próprio relatório divulgando testemunhos e documentos recolhidos, assinalando que não havia circunstâncias atenuantes dos assassinatos, solicitando o julgamento de cada um dos participantes e sugerindo que se processasse o Secretário de Segurança Pública, seus assistentes e os juízes intervenientes por prevaricação. (AMR p. 26)

33 Artigo 4(1): "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente". Artigo 5(1): "Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral". Artigo 5(2): "Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano". Artigo 1(1): "Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação...".

34 Caso Neira Alegría, Sentença de 19 de janerro de 1995, parágrafo 74).

35 Caso Velázquez Rodríguez, Sentença sobre méritos, parágrafo 154; Caso Godinez Cruz, id., parágrafo 162, Caso Neira Alegría e otros, Sentença de 19 de janeiro de 1995, parágrafo 75).

36 Corte I.D.H. Caso Velázquez Rodríguez, Sentença sobre méritos, páragrafos 166-68.

37 Corte I.D.H. Casos Velázquez Rodríguez, Fairen Garbi e Solis Corrales e Godinez Cruz, Exceções preliminares, Sentenças de 26 de junho de 1987, parágrafos 90 e 92 respectivamente.)

38 Como a vítima de uma execução ou assassinato no está em condições de procurar reparação judicial, o direito de recorrer a esse meio é necessariamente transmitido aos familiares da vítima. Ver relatórios Nos. 28-92 (Argentina) e 29-92 (Uruguai), Relatório Anual CIDH 1992-93 páginas 51-53 e 169-74. Ver também Corte I.D.H, Caso Velázquez Rodríguez, Sentença sobre fundamento, parágrafo 174.

39 Corte I.D.H. Parecer consultivo OC-9/87, de 6 de outubro de 1987. Série A, No,.9, parágrafo.24

40 CIDH. Caso 11.520, "Aguas Blancas", México, parágrafo 132. Publicado no Relatório Anual da CIDH de 1998.

41 Constituição da República Federativa do Brasil. Seção V. Dos Deputados e dos Senadores. Artigo 53: "Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões palavras ou votos.

Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa.

O indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato".

Ver, a respeito, "Imunidades e proibições parlamentares", em Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 1994, p. 306.

42 Corte Velázquez Rodríguez, loc. Cit, parágrafos 166,174.

43 Corte I.D.H., Caso Velázquez Rodríguez, sentença citada, parágrafo 166.

44 Princípios e Diretrizes sobre o Direito das Vítimas de Violações Graves dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário, a Obter Reparação. E7CN.47SUB 2/1996/97/17, PRINCÍPIO 7.