III.      A LEI E OS SISTEMAS DE PROTEÇÃO APLICÁVEIS À VIOLÊNCIA  CONTRA A MULHER  NA CIDADE DE JUÁREZ

 

          A.      Direito  internacional

 

          99.     Conseguir que a mulher possa exercer livre e plenamente seus direitos humanos é uma prioridade nas Américas.  As obrigações fundamentais de igualdade e não discriminação constituem o eixo central do sistema regional de direitos humanos, e a Convenção de Belém do Pará estabelece o compromisso dos  Estados partes de prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher, que em si é uma manifestação da  discriminação baseada no  gênero.  A prioridade dada pela  CIDH  e sua Relatoria  Especial à proteção dos  direitos da  mulher  reflete também a importância que dão a esta esfera os próprios Estados membros.

 

100.   Os princípios da não discriminação e a igual proteção da  lei são pilares em todo sistema democrático e constituem bases fundamentais do sistema da  OEA.  O artigo 3(l) da  Carta da  OEA estabelece o princípio básico de que “Os Estados americanos proclaman os direitos fundamentais da pessoa  humana sem fazer distinção de raça, nacionalidade, crença ou sexo”. 

 

          101.   México é um Estado parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos desde sua adesão em  2 de março  de 1981.  O artigo 1 da  Convenção Americana estabelece a obrigação dos Estados partes de respeitar e garantir todos os direitos e liberdades reconhecidos, sem  discriminação baseada, inter alia, no  sexo.[28]  Quanto ao princípio da  não discriminação, o artigo 24 reconhece o direito a igual proteção diante da lei, e o artigo 17 estabelece que o Estado deve garantir o igual reconhecimento dos  direitos e “a adequada equivalência de responsabilidades” dos cônjuges no  matrimônio.  Ao reconhecer os direitos fundamentais de todas as pessoas, sem distinção, a Convenção protege direitos básicos como os da vida, a liberdade e a integridade pessoal (artigos  4, 5 e 7).  O tráfico de mulheres está expressamente proibido no  artigo 6.  Os direitos das crianças são objeto de medidas especiais de proteção no  artigo 19.

 

          102.   Os objetivos principais do sistema regional de direitos humanos e o princípio de eficácia requerem que essas garantias sejam levadas à prática.  Consequentemente, quando o exercício de qualquer desses direitos ainda não está garantido jurídicamente ou na prática, os Estados partes, conforme o artigo 2 da  Convenção Americana, comprometem-se a adotar as medidas legislativas e de outro tipo necessárias para implementá-los.  Ademais, a Convenção Americana dispõe que o sistema nacional deve estabelecer e fazer efetivos recursos judiciais para as pessoas que reclamem sobre a violação de seus direitos dispostos na legislação nacional ou na  Convenção. Quando não existe acesso a esses recursos internos ou os mesmos resultam ineficazes, os interessados podem acudir, conforme o estipulado pelo  sistema interamericano, ao sistema de petições individuais.

 

103.   Para efeitos do presente relatório, reviste de especial importância os direitos e obrigações estipulados na  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência  contra a Mulher  (“Convenção do Belém do Pará”), ratificada pelo México em 12 de dezembro  de 1998.[29]  Como reflexo do consenso hemisférico sobre a necessidade de reconhecer a gravidade do problema da  violência  contra a mulher e adotar medidas concretas para erradicá-la, a Convenção:

 

-        Define a violência  como “qualquer  ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano  ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto no âmbito público como no  privado”;[30]

 

-        Reconhece expressamente a relação que existe entre violência de gênero e discriminação, indicando que tal violência  é uma manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, e que o direito  da  mulher  a uma vida livre de violência  inclui o direito  a ser livre de toda forma de discriminação e a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados;[31]

 

-        Reconhece que essa violência  afeta as mulheres por múltiplas vias, impidindo-lhes o exercício de outros direitos fundamentais, civis e políticos, bem como direitos econômicos, sociais e culturais;[32] e

 

-        Dispõe que os Estados partes atuem com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, em caso de que ocorra dentro da casa ou da comunidade e perpetrada por indivíduos, ou  na  esfera pública por agentes estatais.[33]

          104.   Por conseguinte, o  Estado é diretamente responsável  pela  violência  contra a mulher  perpetrada por seus agentes.  Ademais, pode surgir responsabilidade estatal quando o Estado não atua com a devida diligência para prevenir a violência perpetrada por indivíduos, e para responder a mesma.

 

105.   Ademais os Estados partes devem dispor do necessário para que essas obrigações se façam efetivas no  sistema jurídico interno, e para que as mulheres em situação de risco de sofrer violênciav tenham acesso a proteção e garantias judiciais eficazes.[34] Os mecanismos de supervisão do cumprimento dessas normas compreendem a tramitação das denúncias individuais em que os peticionários alegam violações das principais obrigações através do sistema de petições já estabelecidos no contexto da  Comissão  Interamericana.[35] 

 

106.   O Estado mexicano é parte em vários outros instrumentos internacionais que prevêem importantes mecanismos de proteção dos  direitos da  mulher.  Em termos gerais, os artigos 1 e 2 da  Declaração Universal de Direitos Humanos, e os artigos 2 e 3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, reconhecem oi direito à igualdade  e a proibição da  discriminação.  A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da  que  o México é parte desde 1981, reforça as disposições sobre igualdade e não discriminação da  Carta Internacional de Direitos ao definir a discriminação contra a mulher e dispor que os Estados partes devem adotar medidas específicas para combatê-la.[36] O Estado mexicano ratificou o Protocolo Facultativo dessa Convenção em 15 de março  de 2002.  Também quanto ao exame da interrelação entre a violência e a discriminação baseadas no gênero é importante assinalar que a definição de discriminação estabelecida na  Convenção das Nações Unidas  aplica a violência  baseada no  gênero .[37]  A discriminação compreende:

 

Atos que infligem danos ou sofrimentos de índole física, mental ou sexual, ameaças de cometer esses atos, coação e outras formas de privação da  liberdade. A violência  contra a mulher  pode contravenir disposições da  Convenção, sem que espressamente falem da  violência .[38]

 

107.   Também deve-se fazer referência a Declaração sobre Violência contra a Mulher, que complementa essas normas, e comparte muitos princípios básicos com a Convenção de Belém do Pará.  O Estado mexicano também é parte na  Convenção sobre os Direitos da Crinaça, e em 2002 ratificou seu dois protocolos facultativos relativos a participação de crianças em conflictos armados e a venda de crianças, a prostituição infantil e a utilização de crianças na  pornografia, respectivamente.

 

          108.   Cabe ressaltar que a situação na Cidade de Juárez chamou a atenção e despertou a  preocupação de diferentes entidades dentro das Nações Unidas.  Após sua visita de 1999, destinada a analisar a situação do direito à vida no México, a Relatora Especial das Nações Unidas para Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias expressou:

 

Que o Governo, ao descuidar deliberadamente da proteção das vidas dos cidadãos em razão de seu sexo, havia provocado uma sensação de insegurança para muitas das mulheres da Cidade  de Juárez. Ao mesmo tempo, havia permitido indiretamente que os autores desses delitos ficassem impunes. Portanto, os eventos da Cidade de Juárez são o típico exemplo de delito sexista favorecido pela  impunidade.[39]

 

Em seu relatório de janeiro de 2002, o Relator Especial das Nações Unidas sobre a independência de magistrados e advogados manifestou que a falta de uma resposta judicial eficaz contra os assassinatos “danou gravemente o império da  lei na Cidade de Juárez”.[40]  Antes de sua última missão ao México, a Alta Comissariada Mary Robinson expressou renovada preocupação pela  persistência da  impunidade no México, inclusive em relação aos s assassinatos não esclarecidos de mulheres.[41]  Em agosto de 2002, durante o exame do relatório apresentado pelo  Estado mexicano a CEDAW, o Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da  Violência  contra a Mulher expressou preocupação com respeito aos assassinatos e desaparecimentos de mulheres na Cidade de Juárez e a falta de uma investigação conclusiva, bem como do julgamento e punição dos responsáveis.[42]  Mais recentemente, a Diretora de UNIFEM afirmou sua preocupação pelos  assassinatos e a impunidade, e destacou a necessidade de satisfazer melhor as necessidades dos  familiares sobreviventes.[43]

 

          B.       Legislação nacional

 

109.   As disposições legais aplicáveis no âmbito federal e estatal foram reformadas recentemente de modo a incluir avanços positivos.  Através de reformas adotadas em 14 de agosto de 2001, o artigo 1 da  Constituição da  República foi emendado de modo a proibir todas as formas de discriminação, inclusive com base no sexo.  O artigo 4 estabelece que os homens e as mulheres são iguais perante a lei, e que toda pessoa tem direito a decidir de maneira livre, responsável  e informada sobre o número e o o planejamento dos filhos.  A Constituição reconhece também que os homens e as mulheres tem direitos iguais com respeito a emprego, educação, nacionalidade, remuneração e participação na  vida política.  Com respeito a legislação do Distrito Federal, a violência  familiar foi tipificada como delito no  Código Penal, assim como a violação marital, e a violência foi  introduzida como causa de divórcio no  Código Civil.

 

          110.   As leis do Estado de Chihuahua aplicáveis aos casos de violência  contra a mulher  foram objeto de reformas recentes.  Depois de um intenso debate parlamentar, em cujas etapas finais foram incluidas algumas consultas a sociedade civil, a violência  familiar está contemplada no  artigo 190 do Código Penal.  Este artigo dispõe que a violência  entre familiares ou entre aqueles que tenham compartido algum outro  tipo de relação emocional será punida com pena de prisão de seis meses a três anos.  Conquanto essa disposição seja de amplo alcance, já que compreende  violência  física, verbal, emocional ou sexual, o alcance de sua aplicação limita-se a atos e omissões recorrentes.  É essencial que essa violência  seja punida pelo  Direito, por isso este artigo estabelece uma importante forma de proteção.  Não obstante, a limitação de que a violência em questão deve ser de carácter recorrente foi criticada e eliminada das disposições legais similares de outras jurisdições. 

 

111.   Os delitos sexuais estão estabelecidos no  Titulo Décimo-quarto do Código Penal de Chihuahua.  Em relação as reformas mencionadas, a violação é sancionada atualmente como delito quando cometida contra a esposa ou a concubina do perpetrador.  Com respeito ao estupro, a norma indicando que este crime não se aplicaria no  caso de uma jovem não considerada “honesta” foi eliminada. Também foi esclarecida a definição de assédio sexual.

 

112.   As revisões do Código Civil de Chihuahua adotadas em 2001 incluiram duas disposições referentes a violência  familiar.  A primeira estabelece que todos dois  membros da  familia ou unidade doméstica tem direito  a que os demais membros respeitem sua integridade física, psicológica e sexual, e podem contar com o respaldo e a proteção das instituições públicas conforme a  lei.  A outra  define a violência  familiar em termos amplos e indica que os membros desses grupos estão obrigados a abster-se de condutas que gerem essa violência . 

 

113.   Em resumo, a CIDH e sua Relatora Especial observaram o debate gerado por um conjunto de reformas do Código Penal aprovado anteriormente  e que foram rejeitadas por muitos como incompatíveis com os princípios da  não discriminação e a protecção dos  direitos da  mulher .[44]  A Comissão  Interamericana e sua Relatora Especial valorizam a iniciativa do Governo  de Chihuahua de abrir um espaço de diálogo com certa participação da  sociedade civil para chegar as reformas atualmente vigentes.  As reformas atualmente em vigor representam um avanço do processo em compatibilizar a legislação com as obrigações de igualdade e não discriminação.  Ademais a Comissão  Interamericana  e sua Relatora Especial observaram a recomendação da  Comissão  Parlamentar Especial estabelecida para realizar o seguimento dos  assassinatos, para que o Código Civil, Código Penal e Código de Procedimento Penal seja objeto de reformas adicionais destinadas a melhorar a resposta frente a violência  imperante contra a mulher .[45]  Conforme reconhecido pelo próprio Governo  de Chihuahua em sua exposição de março de 2002 perante a CIDH, a legislação pode ser aperfeiçoada não é o suficiente por si só.  É importante que prossigam com os esforços destinados compatibilizar a legislação interna com os princípios da  igualdade e não discriminação.

 

          C.      O papel das entidades nacionais

 

          114.   No âmbito do Poder Executivo Federal, em 2001 foi criado o Instituto Nacional das Mulheres, INMULHERES, para promover a não discriminação, a igualdade de oportunidades e de tratamento entre os gêneros, e a possibilidade de que as mulheres exerçam plenamente seus direitos e participem na  vida política, cultural, econômica e social da  nação.  O programa sexenal de trabalho de INMULHERES, denominado Programa Nacional para a Igualdade de Oportunidades e não Discriminação contra as Mulheres 2001-2006 (PROEQUIDAD) se aplica a todos os setores da  Administração Federal e  estabelece objetivos, projetos e programas específicos destinados a lograr esses fins.  Entre os âmbitos prioritários de PROEQUIDAD figura a luta para prevenir, sancionar e erradicar a violência  contra a mulher.  A época da  visita da  Relatora Especial foi desenhado um programa nacional sobre violência  familiar e violência  contra a mulher.  O Instituto promoveu também a criação da  Mesa Interinstitucional de coordenação de atividades referentes à violência  na família e a  violência  contra a mulher, em que participam representantes dos diferentes poderes do governo  federal e representantes da  sociedade civil.

 

115.   A maior parte dos Estados do México, incluindo Chihuahua, criaram recentemente Institutos da  Mulher.  Os institutos de nível estatal e INMULHERES colaboraram como iguais para institucionalizar a perspectiva de gênero  em todo o país. 

 

          116.   A Relatora Especial reuniu-se com a Presidenta de INMULHERES durante sua visita, para analisar as medidas que estão sendo adotadas para fazer frente a situação existente na Cidade de Juárez.  A Presidenta de INMULHERES, Patricia Espinosa, indicou que a situação motiva especial preocupação no Governo, e que INMULHERES vem trabalhando em estreita relação com autoridades de Chihuahua para por em marcha mecanismos de diálogo e colaboração interinstitucional.  A Presidente fez referência a Mesa Interinstitucional criada na Cidade de Juárez para coordenar iniciativas de luta contra a violência  dentro da  família e de violência  contra a mulher  dentro das diretrizes do modelo nacional acima mencionado.  Com respeito à situação específica dos  assassinatos, a Presdiente referiu-se às medidas que se estavam tomando para criar outra  mesa (que iniciou o seu trabalho em outubro) em procura de soluções adicionais. 

 

          117.   No  âmbito do Poder Legislativo foram criadas Comissões de Gênero e Equidade na  Câmara de Deputados e no  Senado do Congresso da União. A Relatora Especial reuniu-se com membros das Comissões de Gênero e Equidade durante sua visita, e recebeu informação útil sobre o problema da  violência  contra as mulheres na Cidade de Juárez.  A Relatora Especial reuniu-se também com membros da Comissão  Especial da  Câmara de Deputados criada para realizar o seguimento desses crimes. Membros da  Comissão  Especial visitaram a Cidade de Juárez no final de 2001 para entrevistar a familiares das vítimas, representantes da  sociedade civil e diversos representantes do Estado e recolher  outra  informação.  O trabalho e as reflexões iniciais dessa Comissão  Especial ofereceram valiosas contribuições para compreender a situação.  Representantes da  sociedade civil assinalaram que na sua opinião seria mais produtivo que a  Comissão  Especial informasse publicamente os  resultados de seu trabalho.

 

          118.   A CNDH e a Comissão  Estatal de Direitos Humanos também tem um papel quanto a salvaguarda dos  direitos e liberdades fundamentais.  O  valioso trabalho cumprido pela  CNDH ao emitir a Recomendação 44/98 sobre os assassinatos de mulheres cometidos na  Cidade  Juárez, bem como a insuficiente resposta oficial, são analisadas em detalle na  Seção II.E.1.a supra.  Não obstante, como assinalado, não há informação sobre o seguimento institucional por parte da  CNDH que garanta a aplicação das importantes recomendações contidas naquele documento.  Por outra  parte, até a data da  visita da  Relatora Especial, a Comissão  de Direitos Humanos do Estado de Chihuahua não havia intervido substancialmente nesta situação.

 

          119.   Em resumo, foram adotadas  importantes medidas no âmbito nacional e estadual a fim de que a legislação seja compatível com as obrigações de igualdade e não discriminação, e para criar mecanismos encarregados de incorporar a perspectiva de gênero  no  desenho e aplicação da  política pública.  Estas medidas destinadas a melhorar o contexto de garantias aplicáveis devem ser complementadas agora com medidas concretas tendentes a efetivar essas garantias. 

 

IV.     O DIREITO  DA  MULHER  DE NÃO SER OBJETO DE VIOLÊNCIA E AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO MEXICANO DE RESPEITAR E GARANTIR ESSE DIREITO

 

          A.      Considerações gerais

 

120.   A violência  contra a mulher  constitui a violação de múltiplos direitos humanos.  O direito  a estar isento de violência  na  esfera pública e na esfera privada, estipulado no  artigo 3 da  Convenção de Belém do Pará inclui, consequentemente, o direito  à proteção de outros direitos básicos, inter alia, à vida, à integridade pessoal, à liberdade,  a não ser submetida a tortura, à igual proteção perante a lei e a um acesso efetivo à justiça, estipulados no  artigo 4.  O artigo 5 estabelece que “Os Estados partes reconhecem que a violência  contra a mulher  impede e anula o exercício de tais direitos”.  O artigo 6 estabelece ademais que o direito  de toda mulher  a uma vida livre de violência  compreende o direito  a ser livre de toda forma de discriminação e a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento.  Em consequência existe uma conexão integral entre as garantias estabelecidas na  Convenção de Belém do Pará e os direitos e liberdades básicos estipulados na  Convenção Americana, que são aplicáveis ao tratar a violência  contra a mulher  como violação dos  direitos humanos.

 

121.   Com respeito à situação existente na Cidade de Juárez, deve-se ter em conta também que um considerável  número das vítimas respectivas eran meninas  menores de 18 anos de idade.  Conforme a Convenção Americana (artigo 19) e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, as crianças tem direito a medidas especiais de proteção.

 

122.   A violência  contra a mulher  representa, em primeiro lugar e primordialmente, um problema de direitos humanos; foi dada como prioridade na  região, na  convicção de que sua erradicação é essencial para que as mulheres possam participar plenamente e em condições de igualdade na  vida nacional em todas suas esferas. A violência  contra a mulher  é um problema que afeta a homens, mulheres e crianças; distorce a vida familiar e o tecido social, suscitando consequências por gerações seguidas.  Determinados estudos demonstram que a exposição à violência  dentro da  família durante a infância é um fator de risco de perpetração de atos de violência  desse gênero ao chegar a idade adulta.  Trata-se de um problema de segurança humana, um problema social e um problema de saúde pública.

 

123.   Dentre os problemas mais importantes que a Relatora Especial encontrou em relação à situação existente na Cidade de Juárez estão os seguintes: primeiramente, a falta de consciêntização suficiente de que os direitos da  mulher  são direitos humanos, e que o direito  da  mulher  a não ser objeto de violência é em si um direito  humano que obriga o Estado mexicano a adotar medidas de prevenção e resposta.  Desta forma está claro,  por exemplo, a tendência de muitas pessoas, tanto no  setor estatal como no não estatal, a limitar a atenção aos assassinatos caracterizados “em série” como fonte de preocupação legítima, dada sua brutalidade.  Nesse sentido, não se entende que essas mortes igualmente infringem o direito  a não ser objeto de violência, e manifestam na mesma medida que a vítima é  considerada como um objeto ou desumanizada em função do gênero, sem importar se o perpetradores não tinham relação com crimes sexuais, ou se estão relacionadas com violência  doméstica perpetrada por companheiros.  O fato  de que os assassinatos denominados “em série” sejam apresentados nos  meios de comunicação, e considerados por muitos como chocantes, enquanto que os assassinatos produzidos em relação a violência  doméstica recebem menos atenção, demonstra a existência do problema.

 

124.   Para enfrentar os fenômenos da  violência  contra as mulheres na Cidade de Juárez é preciso considerar não somente os assassinatos, ms também os delitos sexuais e a violência  doméstica.  Esta última é, especialmente em certos aspectos, emblemática.  A Relatora Especial sobre Violência  contra a Mulher  das Nações Unidas manifestou que:

 

Em seu aspecto mais complexo, a violência  doméstica é um poderoso instrumento de opressão. A violência  contra a mulher  em geral, e a violência  no lar em especial, são componentes essenciais das sociedades que oprimem a mulher, já que a violência  contra ela não somente deriva dos estereotipos sexuais dominantes, mas também os sustenta e, ainda, a utiliza para controlar a mulher  no  único espaço que ela tradicionalmente domina: o lar.[46]

 

125.   Em segundo lugar, subsiste uma tendência de parte de algumas autoridades a culpar a vítima  por colocar-se numa situação de perigo, ou  buscar soluções em que insiste que a vítima  deve defender seus próprios direitos.  Embora o discurso oficial na Cidade de Juárez melhorou consderavelmente desde que a Comissão Nacional de Direitos Humanos mencionou a prática notória por parte das autoridades de desacreditar as vítimas –afirmando que estas usavam saias curtas ou que eram “fáceis” ou prostitutas-- subsiste uma marcada tendência a examinar em primeiro lugar a conduta da  vítima  ou da  família na busca de explicações.  Ademais, a Relatora Especial observou que quando as autoridades ocupam-se das iniciativas de segurança pública, muitas tendem a pensar em termos de cursos de autodefesa para mulheres.  Ainda que esses cursos possam ser útis, de nada servem para fazer frente as causas do problema. 

 

126.   Em terceiro lugar, visto que a nível oficial são limitadas as dimensões de gênero  desses delitos, a tendência é tratá-los como questões de gênero  da  mulher  ou problemas da  mulher, em lugar de serem enfrentados através da  incorporação da  perspectiva de gênero  no  desenho e aplicação de políticas públicas na Cidade de Juárez.  (Como já assinalado na  Secção E.2, a Relatora Especial percebeu, durante sua visita, certa divisão baseada no  gênero  quanto as funções cumpridas por mulheres e homens  em relação aos assassinatos).

 

127.   Em quarto lugar, o talvez o mais importante, embora haja um consenso por parte do setor estatal e da  sociedade civil que a violência  contra a mulher  na Cidade de Juárez é um problema de graves proporções, a análise da  Relatora Especial confirma que este problema não foi enfrentado com medidas que correspondam a essa gravidade.  O fato  de que a grande maioria desses delitos contra a mulher permanecam  impunes requer uma resposta urgente. 

 

128.   A violência descrita no resumo acima tem suas raízes em conceitos referentes à inferioridade e subordinação das mulheres. Quando os perpetradores não são responsabilizados --como em geral ocorreu na Cidade de Juárez-- a impunidade confirma que essa violência e discriminação é aceitável, o que fomenta sua perpetuação.  Conforme assinalado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação as violações de  direitos humanos em geral, o Estado tem a obrigação de combater situações de impunidade por todos os meios legais disponíveis, já que a impunidade _”propicia a repetição crônica” das violações de direitos humanos “e a põe indefesos as vítimas e de seus familiares”.[47] 

 

129.   Ao examinar esta obrigação em relação a violência  doméstica em especial, a Comissão  Interamericana  insiste que a omissão de processar e punir de forma eficaz os responsáveis na  prática implica a aquiescência do Estado a esse respeito.  Nos  casos em que essa inação e tolerância formam parte de uma modalidade, “é uma tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos, sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência  contra a mulher ”.[48]  Isto cria o ambiente “que facilita a violência  doméstica” porque a sociedade não percebe que o Estado esteja disposto a adotar medidas efetivas contra ela.[49]

 

130.   Conquanto as autoridades dos  Governos Federal e de Chihuahua tenham manifestado seu compromisso de combater essa impunidade, esse compromiso não foi traduzido ainda em medidas e resultados eficazes quanto a experiência vivida pelas mulheres na Cidade de Juárez.

 

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[28] O artigo 3 do Protocolo Adicional a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (“Protocolo de San Salvador”), de que o México é parte desde 1996, estabelece uma obrigação similar com respeito ao exercício dos  direitos reconhecidos nessa Convenção.

[29] Ademais da  Convenção Americana, o Protocolo de San Salvador e a Convenção de Belém do Pará, o México também pe parrte da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento  Forçado de Pessoas e a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas com Deficiência Física.

[30] Ver artigos 1, 2 e 3.

[31] Ver preâmbulo, artigos 4, 6.

[32] Ver preâmbulo, artigos 4, 5.

[33] Ver artigos 7, 2.

[34] Ver artigo 7; ver também os artigos 8 e 9.

[35] Ver os artigos 10-12.  Estes mecanismos incluem também a apresentação de relatórios, pelos  Estados parte, a Comissão  Interamericana de Mulheres (“CIM”) da  OEA.

[36] O artigo 1 define essa discriminação nos seguintes termos:

Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no  sexo que tenha por objeto ou por resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela  mulher, independentemente de seu estado civil, com base na  igualdade do homem e a mulher, dos  direitos humanos e as liberdades fundamentais nas esferas política, econômica, social, cultural e civil ou en qualquer outra  esfera.

A definição compreende toda diferença de tratamento baseada no sexo que intencionalmente ou por inadvertência estabeleça desventagens para a mulher, impeça o pleno reconhecimento  por parte da  sociedade nas esferas pública e privada, ou impeça a mulher  de exercer os direitos humanos  de que é titular.

[37] Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da  Discriminação contra a Mulher , Recomendação Geral No. 19 (11º período de sessões, 1992) “A violência  contra a mulher ”,  parágrafo  6.

[38] Ídem.

[39] Relatório da  Relatora Especial Asma Jahangir, E/CN.4/2000/3/Add.3, 25 de novembro  de 1999, parágrafo  89.

[40] Relatório do Relator Especial Dato’Param Cumaraswamy, E/CN.4/2002/72/Add.1, 24 de janeiro  de 2002, parágrafo  161.

[41] Ver, por exemplo, Kyra Nuñez, “Mary Robinson expressa preocupação pela  persistência da  impunidade no México”, La Jornada, edição de Internet de 28 de junho  de 2002, www.jornada.unam.mx.

[42] “Consideração dos  relatórios dos  Estados partes”, CEDAW/C/2002/EXC/CRP.3/Rev.1, 23 de agosto de 2002 [esboço de avanço], parágrafo  24.

[43] Ver, Rosa Elvira Vargas, “O titular de Unifem junta-se ao clamor de justiça pelas mortes de Juárez”, La Jornada, 4 de dezembro  de 2002, www.jornada.unam.mx.

[44] Ver, por exemplo, o anúncio pago publicado por INMULHERES em que demonstra grave preocupação quanto as reformas anteriores, que restringiam a aplicabilidade de determinados tipos delituosso e reduziam a punição de outros como um sério retrocesso para a proteção dos  direitos da  mulher  e das vítimas.

[45] Ver, Relatório da  Comissão  Especial para Esclarecer os Homicídios de Mulheres na Cidade de Juárez, Chihuahua, 15 de dezembro  de 2001, proposta 7.

[46] Relatório da  Relatora Especial sobre a violência  contra a mulher, suas causas e consequências, Sra. Radhika Coomaraswamy, apresentado de conformidade com  a Resolução 1995/85 da  Comissão  de Direitos Humanos, E/CN.4/1996/53, 6 de fevereiro  de 1996, parágrafo  27.

[47] Corte IDH, Caso Paniagua Morales e outro s. Sentença  de 8 de março  de 1998 (Fondo), parágrafo  173.

[48] CIDH, Caso 12.051, María da Penha Maia Fernandes, Brasil, 16 de abril de 2001, parágrafo  55.

[49] Ídem, parágrafo  56.