APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO ANUAL 1995 DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS PELO PRESIDENTE, DECANO CLAUDIO GROSSMAN, PERANTE A COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DO CONSELHO PERMANENTE DA OEA

 

30 de abril de 1996

 

Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos, Senhores Embaixadores Representantes Permanentes, Senhores Representantes Suplentes, Senhores Membros da Comissão,

Senhor Secretário Executivo da CIDH, é para mim uma grande honra apresentar à Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente o Relatório Anual, correspondente ao exercício 1995, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submete à consideração da Assembléia Geral.

 

Antes de iniciar a apresentação desse relatório, desejo mencionar que se encontram aqui presentes o primeiro vice-presidente da Comissão, Embaixador John Donaldson, o segundo vice-presidente, Doutor Carlos Ayala Corao, e os demais membros da CIDH, Doutor Jean Jospeh Exumé, Doutor Alvaro Tirado Mejía, Doutor Oscar Luján Fappiano e Professor Robert Goldman. Também está presente o novo secretário executivo, Embaixador Jorge Enrique Taiana, a quem tenho a prazer de apresentar e dar as boas-vindas, augurando-lhe muito sucesso em sua gestão à frente da Secretaria Executiva da Comissão. A CIDH recebeu com grande satisfação a nomeação do ilustre diplomata argentino e não tem dúvida de que ele saberá contribuir para o fortalecimento e desenvolvimento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.

 

O relatório que apresento foi aprovado no 91º Período Ordinário de Sessões, realizado em fevereiro-março do corrente ano, e foi preparado com base nas diretrizes estabelecidas pela Assembléia Geral na resolução AG/RES. 331, bem como nas disposições do artigo 63 do Regulamento da Comissão.

 

Conteúdo do Relatório

 

O relatório, de conformidade com os critérios estabelecidos na referida resolução, consta de cinco capítulos.

 

Esse documento, como os senhores representantes certamente observaram, não inclui os relatórios sobre a situação dos direitos humanos em vários Estados, como apareciam no passado. Isso se deve a uma decisão adotada pela Comissão, apenas com relação a este ano, para permitir a revisão dos critérios necessários à maior coerência e eficiência dos seus relatórios gerais.

 

Como de costume, o primeiro capítulo refere-se de forma sucinta, à origem e fundamentos jurídicos da Comissão. Dele também constam as atividades realizadas pela Comissão em 1995 com outros órgãos da OEA, bem como com outros organismos internacionais vinculados à promoção e proteção dos direitos humanos.

 

O segundo capítulo apresenta, também sucintamente, a relação das atividades desenvolvidas pela Comissão em 1995. Um aspecto muito importante desse capítulo é o das investigações in loco efetuadas pela Comissão e das atividades da Comissão junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. No período que abarca o relatório, a Comissão efetuou as seguintes investigações in loco: ao Haiti, de 20 a 24 de março de 1995, e ao Brasil, de 4 a 8 de dezembro de 1995.

 

Em sua visita ao Brasil, a Comissão observou, inter alia, a preocupação do Governo Federal, particularmente do Presidente Fernando Henrique Cardoso, pelos direitos humanos, traduzida na inclusão desse tema no debate nacional e na geração de um processo que compreende modificações de instrumentos jurídicos e instituições e outras medidas destinadas a promover e fortalecer uma cultura de respeito por esses direitos.

 

Nos Estados Unidos a Comissão visitou diversas instituições penais, entre as quais a de Lompoc, na Califórnia, e a penitenciária de Leavenworth, no Kansas. Nas duas instituições a Comissão recebeu informação sobre a situação dos detentos e indagou sobre suas condições gerais de alojamento. De 11 a 13 de dezembro de 1995, uma missão da Comissão viajou à Colômbia com o propósito de observar, a pedido das partes, como eram cumpridos os compromissos por elas assumidos no acordo amistosos quanto a vários casos em tramitação. De 5 a 10 de julho foi realizada uma missão similar na República da Guatemala com o objetivo de providenciar a proteção de um fiscal ameaçado de morte.

 

Como os senhores representantes certamente observaram, dois terços do relatório correspondem ao terceiro capítulo, referente aos casos individuais. Tendo em vista o novo contexto hemisférico, caracterizado por governos eleitos, com exceção de Cuba, a Comissão reorientou sua ação para adequá-la a essa nova realidade. Com efeito, mais do que visitas gerais in loco, cujo propósito era mobilizar a opinião pública internacional, dando testemunho fidedigno a opiniões sobre situações de violações maciças sistemáticas, a nova realidade hemisférica permite o estudo particular de casos individuais. O propósito dos casos é o fortalecimento do sistema democrático de governo. Isso é possível num movimento dual, que de um lado detecta logo no início violações que, se não solucionadas no sistema interno, podem levar a uma erosão do sistema democrático. De outro lado — e tal como é a experiência do sistema, como o sistema Europeu — o sistema de casos contribui para a ampliação e o aprofundamento da democracia ao aplicar normas livremente consentidas que expandem os direitos individuais. Do Relatório Anual constam exemplos desses dois tipos de casos sobre os quais não me estenderei por se encontrarem eles à disposição dos senhores no relatório. Os casos têm, além disso, outros efeitos de grande valor. Em primeiro lugar, permitem o avanço da cultura jurídica ao proporcionarem interpretações de disposições de natureza internacional. Os casos constantes do atual relatório mostram interpretações sólidas e bem-fundamentadas sobre o direito à vida, o conceito de prisão arbitrária ilegal, o direito a ser julgado em prazo razoável, o direito à suposição de inocência, a conceituação da violação pela tortura e os critérios que permitem considerar uma conduta como tortura. Do ponto de vista processual, o conjunto de casos apresentados no atual período contém elementos de grande valor sobre solução amistosa, esgotamento de recursos internos, peso da prova e critérios de avaliação da mesma. Além disso, são aprofundados os conceitos jurídicos existentes sobre responsabilidade internacional e situações de emergência.

 

A maior complexidade jurídica dos casos que a Comissão vem resolvendo, resultado da nova situação hemisférica à que já me referi, tem criado demandas cada vez maiores junto à CIDH. Demandas cada vez maiores no sentido de aperfeiçoar a ordem jurídica e dar segurança tanto aos peticionários e aos Estados quanto em matéria dos direitos e procedimentos estabelecidos no sistema nacional. Além do aumento qualitativo do trabalho da Comissão, houve um aumento quantitativo de denúncias e tramitação de casos.

 

Em função dessa importante evolução do sistema, é essencial continuar a fortalecer o trabalho jurídico da CIDH. Para tanto esperamos contar com a cooperação de todos os usuários e, em particular, dos senhores, os Estados democráticos do Hemisfério, para fortalecer o trabalho jurídico da Comissão.

 

Não gostaria de terminar minha interpretação sobre o sistema de casos sem dizer que é preciso não esquecer que o sistema de casos não se refere unicamente a questões abstratas de natureza substantiva ou processual. Milhares e milhares de homens e mulheres do Hemisfério, ao apresentarem um caso, esperam que sua expectativa de justiça seja satisfeita. Nessa missão a Comissão fortalece diretamente a democracia quando numerosas vítimas recuperam, no trabalho da Comissão, sua fé no Estado de Direito e na democracia.

 

O quarto capítulo do relatório refere-se ao estado da preparação de uma futura Declaração Interamericana dos Direitos dos Povos Indígenas que a Comissão vem elaborando de conformidade com o disposto pela Assembléia Geral na resolução AG/RES. 1022 (XIX-O/89). Após várias revisões internas, a Comissão, em setembro de 1995, aprovou a minuta de consulta que vem transcrita neste capítulo, a qual serviu de base para o início de uma rodada de consultas aos Estados membros e diversas instituições.

 

A Comissão espera poder analisar as observações que sejam

formuladas pelos Estados membros a essa minuta, nos meses de setembro do corrente ano e fevereiro de 1997, a fim de completar o projeto de Declaração para que possa ser considerado pela Assembléia Geral em seu Vigésimo Sétimo Período Ordinário de Sessões, a realizar-se no próximo ano.

 

O quinto capítulo contém um relatório de andamento sobre o projeto referente às condições de detenção nas Américas e um relatório similar sobre o projeto ora em desenvolvimento para promover e proteger os direitos da mulher no Hemisfério e eliminar a sua discriminação.

 

A Comissão, como de costume, incluiu em vários anexos a situação das ratificações das convenções e protocolos de direitos humanos aprovados no âmbito interamericano.

 

Senhor Presidente, senhores representantes: quero aproveitar esta oportunidade para informar-lhes que a Comissão desenvolveu um conjunto de iniciativas destinadas a fortalecer o sistema interamericano de direitos humanos e aumentar sua capacidade de resposta em face das cambiantes demandas decorrentes do processo de consolidação e extensão do sistema democrático de governo na América. Essas iniciativas destinam-se essencialmente a fortalecer sua metodologia de trabalho, estimular as atividades de promoção e explorar formas adicionais de adaptar o sistema de promoção e proteção às novas realidades.

 

Com respeito à metodologia de trabalho, a Comissão tomou várias iniciativas: insistiu, junto às partes, quanto à possibilidade de acordo amistoso dos casos quando os assuntos de que conhece sejam passíveis de tais acordos. Nesse sentido, a Comissão viu com satisfação que tanto os países como os peticionários, em muitos casos, aceitaram submeter-se ao procedimento de solução amistosa com muito bons resultados.

 

Num esforço por aliviar o intenso programa de trabalho da Comissão e em vista dos diversos pedidos de audiência tanto por parte dos peticionários como dos Estados membros, foi estabelecida a prática de realizar audiências na semana anterior ao período de sessões. Além disso, foi acrescentada uma terceira reunião anual para dar andamento ao cumprimento de suas funções de decisão de casos e planejamento de investigações in loco, atividades de promoção e suas funções gerais.

 

Conforme assinalei anteriormente, a Comissão atribuiu ênfase à melhoria e aprofundamento da análise dos casos declarados admissíveis sobre os quais a Comissão decidiu preparar relatórios. Creio importante, acima de tudo, assinalar que essa ênfase não implica que as investigações in loco não devam ser realizadas. Com efeito, essas visitas continuam sendo indispensáveis, seja para analisar situações gerai, seja para examinar direitos específicos em determinado país. As atividades de promoção, por sua vez, contribuem para o conhecimento geral do sistema e aumentam a cultura jurídica sobre os direitos humanos e o sistema regional. Nessa e em outras matérias, parte das funções da CIDH, gostaria de reiterar a necessidade de um diálogo frutífero com os Estados e usuários do sistema. A Comissão vê, nas contribuições que os senhores possam oferecer para melhorar seus procedimentos, uma valiosa colaboração com seus trabalhos.

 

Nesse sentido, desejo destacar, por exemplo, que tem havido importante contribuição dos Estados membros e dos peticionários para melhorar a qualidade da argumentação jurídica das partes em casos apresentados à Comissão.

 

A Comissão, obviamente, não se considera infalível. Por isso precisa contar com o apoio, a crítica e os pontos de vista dos Estados membros. Isso contribuirá para aprimorar o nível do debate jurídico, sem prejuízo de que os Estados contem com mecanismos independentes e adequados por meio do pedido de pareceres ou de outros procedimentos aos órgãos públicos e à própria Corte Interamericana de Direitos Humanos com vistas a submeter as justificativas jurídicas da Comissão a uma sólida apreciação.

 

Outro importante aspecto que a Comissão leva bastante em conta por constituir requisito essencial ao desempenho de suas tarefas é a questão da autonomia de seus membros, referida no artigo 70 da Convenção Americana. De acordo com essa disposição, os Estados Partes comprometem-se a dispensar aos membros da Comissão e aos juízes da Corte, enquanto durarem seus mandatos, as imunidades reconhecidas aos agentes diplomáticos pelo Direito Internacional e a lhes oferecer os privilégios necessários ao desempenho de suas funções. A autonomia da Comissão — tal como a dos poderes judiciários — é requisito geral da democracia, assim como do progresso e da consolidação do Estado de Direito.

 

A Comissão vem mantendo um frutífero diálogo com o Secretário-Geral da Organização, Doutor César Gaviria, que tem emprestado grande apoio às suas atividades. O Secretário-Geral tem proporcionado importantes contribuições com relação ao papel dos direitos humanos e à consolidação da democracia no Hemisfério. Também permite à Comissão Interamericana de Direitos Humanos constante acesso.

 

Senhores Representantes, estamos atravessando tempos novos e de grandes promessas no Hemisfério, um Hemisfério em que, nunca como agora, tantos homens e mulheres viram a possibilidade essencial de desenvolver-se como seres livres. Nesse contexto, o sistema regional deve adequar seus propósitos, procedimentos e mecanismos para possibilitar tal desenvolvimento. Para tanto é essencial que existam iniciativas que conceitualizem e liderem a questão dos direitos humanos. Para participar desse processo de pensamento, análise e reflexão criadora a Comissão programou realizar uma reunião de especialistas em direitos humanos no mês de novembro deste ano. Esperamos que essa reunião proporcione maior compreensão das novas necessidades de proteção dos direitos humanos e identifique uma agenda de avanços e transformações em prol do sistema regional.

 

Finalmente, em nome da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, desejo agradecer o apoio dos senhores, os Governos livremente eleitos do Hemisfério, que definem como o objetivo fundamental de sua política o alcance de sistemas em que se ampliem constantemente os direitos de todos os indivíduos.

 

APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO ANUAL DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS REFERENTE AO ANO DE 1995, PELO PRESIDENTE, DECANO CLAUDIO GROSSMAN, PERANTE A PRIMEIRA COMISSÃODA ASSEMBLÉIA GERAL

 

 Panamá, 4 de junho de 1996

 

Senhor Presidente da Primeira Comissão, Senhores Delegados, Senhor Secretário-Geral,

Senhores Observadores Permanentes, Senhoras e Senhores, na qualidade de presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tenho a honra de apresentar à Primeira Comissão o Relatório Anual referente ao ano de 1995 que a CIDH submete à consideração da Assembléia Geral, de conformidade com o disposto no artigo 53, f, da Carta da Organização, e no artigo

41, g, da Convenção Americana.

 

É, para mim, uma honra pessoal ser porta-voz de um órgão que expressa as mais elevadas tradições éticas e jurídicas do Hemisfério, um órgão que, com seus trabalhos, contribuiu para a criação de um sistema regional de direitos humanos que vem consagrando, juridicamente, valores fundamentais do Estado de Direito, tais como a não-discriminação, o respeito à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e ao devido processo legal.

 

Um órgão que, além disso, se transformou na esperança de milhares e milhares de mulheres e homens da região pela consecução da justiça e do respeito a seus direitos fundamentais. Pessoalmente, sinto-me ademais muito honrado por atuar na Comissão junto a juristas de primeira grandeza e inquestionável probidade.

 

Desejo mencionar, nesse sentido, a presença neste recinto do primeiro vice-presidente da Comissão, Embaixador John Donaldson; do segundo vice-presidente, Doutor Carlos Ayala Corao; do novo secretário executivo, Embaixador Jorge Enrique Taiana; e dos secretários executivos adjuntos, Doutores Domingo E. Acevedo e David Padilla.

 

Em minha apresentação farei referência, em primeiro lugar, ao Relatório Anual referente a 1995, explicando sua estrutura e conteúdo. Posteriormente, mencionarei as iniciativas da CIDH no sentido de aperfeiçoar o sistema regional e concluirei com uma avaliação das contribuições dadas por diferentes atores ao sistema e com uma proposta de análise do sistema regional.

 

I. ESTRUTURA E CONTEÚDO DO RELATÓRIO ANUAL

 

O Relatório Anual que apresento foi preparado de acordo com as normas estabelecidas pela Assembléia Geral na resolução AG/RES. 331.

 

De conformidade com os critérios definidos na citada resolução, o Relatório consta de cinco capítulos.

 

O primeiro capítulo refere-se, em forma muito sucinta, à origem e bases jurídicas da Comissão. Nesse capítulo são também consignadas as atividades que a Comissão, no ano de 1995, realizou com outros órgãos da OEA e com outros organismos internacionais vinculados com a promoção e proteção dos direitos humanos.

 

O segundo capítulo contém, também sucintamente, a relação das atividades desenvolvidas pela Comissão em 1995. Um aspecto muito importante desse capítulo é o das investigações in loco realizadas pela Comissão e o das atividades da Comissão junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. No período abrangido por este relatório, a Comissão realizou as seguintes investigações in loco: ao Haiti, de 20 a 24 de março de 1995, e ao Brasil, de 4 a 8 de dezembro de 1995.

 

Aproveito esta oportunidade para agradecer e reconhecer a acolhida de que foi objeto a CIDH pelo Governo haitiano, referida em meu relatório anterior.

 

Durante a visita ao Brasil, a Comissão pôde perceber a constante preocupação do Governo Federal, particularmente do Presidente Fernando Henrique Cardoso, pelos direitos humanos, traduzida na inclusão desse tema no debate nacional e na geração de um processo que compreende modificações de instrumentos jurídicos, apoio a instituições e outras medidas de grande valor destinadas a promover e fortalecer efetivamente o respeito a esses direitos.

 

Além dessas duas investigações in loco, uma delegação da Comissão visitou, nos Estados Unidos, diversas instituições penais, entre as quais a de Lompoc, na Califórnia, e a penitenciária de Leavenworth, no Kansas. Nessas duas instituições a Comissão recebeu informações sobre a situação dos detentos e fez perguntas com inteira liberdade.

 

Agradecemos ao Governo dos Estados Unidos o convite formulado, pertinente com os trabalhos que a CIDH vem realizando sobre a situação carcerária no Hemisfério.

 

De 11 a 13 de dezembro de 1995, uma missão da Comissão viajou à Colômbia com o propósito de observar, a pedido das partes, como eram cumpridos os compromissos por elas assumidos mediante um acordo de solução amistosa sobre vários casos em tramitação. De 5 a 10 de julho, uma missão similar foi realizada na República da Guatemala com vistas a providenciar a proteção de um fiscal ameaçado de morte.

 

Agradecemos, também, aos Governos da Guatemala e da Colômbia as atenções dispensadas para a realização dessas importantes visitas.

 

Ao dirigir-me aos senhores representantes na Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente, mencionei que dois terços do relatório correspondem ao terceiro capítulo, que trata dos casos individuais.

 

As novas condições hemisféricas, caracterizadas por governos eleitos democraticamente, exceto o caso de Cuba, vieram criar condições diferentes e muito superiores em matéria de proteção e promoção dos direitos humanos. Hoje é possível tratar, por meio de casos, situações específicas, enquanto antes a existência de governos autoritários demandava relatórios gerais que se referiam à situação geral de um país.

 

O sistema de casos individuais possibilita uma dupla função. Em primeiro lugar, por meio dos casos individuais, a comunidade internacional é cedo alertada sobre violações que, se não forem corrigidas, acabam destruindo a democracia. Denúncias sobre execuções sumárias e torturas, por exemplo, se forem verídicas e ficarem impunes, correm o grave risco de vir a afetar a própria viabilidade da democracia.

 

Nesse sentido, o sistema de casos é um mecanismo de advertência quanto à existência de sérios problemas que possibilita a ação internacional antes de que se chegue a uma situação irreversível.

 

Para fortalecer a ação eficaz da CIDH, no caso de denúncias de ameaças ao direito à vida e à integridade pessoal, a Comissão implementou um sistema de ação imediata. Esse sistema requer, freqüentemente, o pedido de "medidas cautelares", que é aprovado pela Comissão ou, em casos de extrema gravidade ou urgência e quando for necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, por meio de "medidas provisórias", que a Comissão solicita à Corte, de acordo com o previsto no artigo 63, parágrafo 2º, da Convenção Americana. Atualmente, a Comissão tem em tramitação junto à Corte Interamericana um total de 26 medidas cautelares e seis medidas provisórias, além de um pedido impetrado na semana anterior e ainda não decidido.

 

Além de evitar-se, por meio dos casos, a deterioração da democracia, a Comissão acredita que o sistema de casos contribui para ampliar e aprofundar o ideal democrático ao aplicar normas livremente consentidas que expandem e consolidam a vigência dos direitos fundamentais.

 

Com efeito, as democracias, por definição, são sistemas de governo em constante movimento e expansão. Os tipos de casos que nos chegam, destinados à consolidação e expansão da democracia, referem-se, por exemplo, ao devido processo legal, autonomia e eficácia dos poderes judiciários, acesso aos tribunais e advogados, prazos razoáveis, prisões sem julgamento, liberdade de imprensa e direitos da mulher.

 

O sistema de casos tem sido, além disso, essencial por contribuir para o fortalecimento, em toda a sua riqueza, do acervo jurídico regional.

 

No Relatório Anual figuram casos que apresentam interpretações sólidas e bem-fundamentadas sobre a proteção do direito à vida, o conceito da prisão arbitrária e ilegal, o direito a ser julgado em prazo razoável, o direito à suposição de inocência, a conceitualização da tortura e os critérios que permitem qualificar violações e outros tratamentos desumanos e degradantes, como a tortura. Ademais, sob o ponto de vista processual, os casos incluídos no Relatório Anual contêm elementos de grande valor sobre solução amistosa, esgotamento dos recursos internos, peso da prova e critérios de sua avaliação. Também permitem o aprofundamento dos conceitos jurídicos existentes em matéria de responsabilidade internacional e situações de emergência.

 

Por se tratar de casos cada vez mais complexos do ponto de vista jurídico, a demanda junto à CIDH tem sido cada vez maior. As atribuições da Comissão, no que concerne ao processamento de petições individuais, aumentaram nos últimos anos, em parte em face dos casos submetidos pela Comissão à Corte Interamericana. Atualmente, excluindo a tramitação das sete medidas provisórias a que me referi anteriormente, a Comissão tem 12 casos em andamento junto à Corte Interamericana.

 

Independentemente do aumento qualitativo do trabalho da Comissão, também tem havido um aumento quantitativo de denúncias e tramitação de casos. Até hoje existem aproximadamente 780 casos em processo, dos quais 726, ou seja, 93%, referem-se a denúncias de violações do direito à vida e à integridade pessoal.

 

Em função dessa considerável evolução do sistema regional, é essencial que se continue a fortalecer o trabalho jurídico da CIDH. Para tanto, esperamos contar com a cooperação de todos os usuários e, de modo especial, dos Estados democráticos do Hemisfério.

 

A CIDH deseja ressaltar, sobre o particular, que não considera que suas interpretações, apesar de seus constantes esforços, estejam livres de crítica e da mais rigorosa verificação. Nesse sentido, a CIDH considera fundamental a contribuição, tanto dos governos como dos usuários do sistema. Ao mesmo tempo, deseja recordar que sempre é possível solicitar pareceres à Corte Interamericana sobre questões de direito, bem como submeter à apreciação da Corte os pareceres da CIDH sobre casos contenciosos em que os Estados não estejam de acordo com a Comissão.

 

O quarto capítulo do Relatório refere-se à situação da preparação de uma futura Declaração Interamericana dos Direitos dos Povos Indígenas que vem sendo elaborada pela Comissão, conforme acordado pela Assembléia Geral na resolução AG/RES. 1022 (XIX-O/89). Após várias revisões internas, a Comissão aprovou em setembro de 1995 a minuta de consulta, transcrita nesse capítulo, que serviu de base para o início da rodada de consultas aos Estados membros e diversas instituições.

 

A Comissão espera poder analisar as observações que sejam formuladas pelos Estados membros a essa minuta nos períodos de sessões a serem realizados nos meses de setembro deste ano e fevereiro de 1997, a fim de concluir o projeto de Declaração para que possa ser considerado pela Assembléia Geral em seu Vigésimo Sétimo Período Ordinário de Sessões, em junho de 1997.

 

O quinto capítulo contém um relatório de andamento sobre o projeto relativo às condições de detenção nas Américas e um relatório similar sobre o projeto para promover e proteger os direitos da mulher no Hemisfério e eliminar a sua discriminação. Com respeito a esse último tema, embora o que vou dizer não conste do relatório, desejo mencionar que a CIDH, juntamente com a Comissão Interamericana de Mulheres, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos e a Organização Pan-Americana da Saúde, realizou em março deste ano uma conferência sobre "a mulher, os direitos humanos e o sistema interamericano". Os expositores, especialistas e peritos selecionados de diferentes países do Hemisfério, analisaram temas relativos à violência contra a mulher, à discriminação e à participação política da mulher e formularam recomendações no contexto da Conferência de Beijing, realizada em 1995.

 

A Comissão, como de costume, incluiu em vários anexos a situação das ratificações das convenções e protocolos sobre direitos humanos aprovados no âmbito interamericano. Nesta Assembléia Geral tivemos a honra de assistir à ratificação, pela Costa Rica, da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, o que eleva a quatro os Estados Partes. Com efeito, a Costa Rica veio juntar-se ao Uruguai, Panamá e Argentina, cujos atos de ratificação também tivemos o privilégio de presenciar.

 

Este relatório, como os Senhores Representantes puderam observar, não inclui os relatórios sobre a situação geral dos direitos humanos em diversos Estados, como apareciam nos últimos anos. Conforme tive oportunidade de expressar ao apresentar o Relatório na Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente, essa lacuna decorre de um acordo adotado pela Comissão apenas com relação a este ano, com vistas a que sejam revistos os critérios até hoje utilizados e, assim, dar maior corência aos relatórios gerais e, se possível, aumentar a sua eficácia.

 

Por conseguinte, a partir da publicação do próximo Relatório Anual da Comissão, voltarão a ser incluídos no Capítulo IV, como em anos anteriores, relatórios sobre a situação dos direitos humanos em vários Estados membros.

 

II. INICIATIVAS DA COMISSÃO PARA APERFEIÇOAR O SISTEMA REGIONAL

Senhor Presidente, Senhores Delegados, após esta breve apresentação do Relatório Anual, desejo referir-me a outros aspectos que a Comissão considera de grande importância. Em primeiro lugar, devo manifestar que a CIDH vê como uma tarefa permanente o aperfeiçoamento constante de seus trabalhos. Nesse sentido, a Comissão vem desenvolvendo um conjunto de iniciativas destinadas a fortalecer o sistema interamericano de proteção e aumentar sua capacidade de resposta em face das cambiantes demandas decorrentes do processo de consolidação e expansão do sistema democrático de governo no Hemisfério. Essas iniciativas orientam-se basicamente no sentido de fortalecer sua metodologia de trabalho, estimular as atividades de promoção e explorar formas complementares para adaptar o sistema de promoção e proteção às novas realidades.

 

Com respeito à metodologia de trabalho, a Comissão adotou várias iniciativas; insistiu junto às Partes quanto à possibilidade prevista na Convenção, de chegar ao acordo amistoso dos casos. É com prazer que informo aos senhores delegados que a Comissão constatou com satisfação que vários governos, assim como os peticionários, em muitos casos, optaram por submeter-se a esse procedimento com muito bons resultados.

 

A CIDH adotou medidas especiais para obedecer à ordem estabelecida na Convenção e em seu Regulamento a fim de organizar juridicamente seus procedimentos. Isso compreende o seguinte:

 

a) registro de petições

b) acompanhamento da ordem de procedimento da Convenção, a saber:

— admissibilidade

— estabelecimento dos fatos

— solução amistosa

— decisão do caso

— regularização do sistema de audiências mediante o estabelecimento de critérios para sua concessão e propósito.

A CIDH também continuou a fortalecer o contexto jurídico de suas decisões ao aplicar o necessário rigor às considerações dos fatos e aos fundamentos de direito de suas decisões.

 

Num esforço por aliviar o intenso programa de trabalho da Comissão e tendo em vista os numerosos pedidos de audiência tanto por parte dos peticionários como dos Estados membros, foi estabelecida a prática de realizar audiências na semana anterior aos períodos de sessões. Além disso, acrescentou-se uma terceira reunião anual para agilizar o cumprimento das funções da Comissão de solução de casos e programação das investigações in loco e atividades de promoção. Essas últimas contribuem para a divulgação geral do sistema e aumentam a cultura jurídica com respeito aos direitos humanos em geral e ao sistema regional em particular. A respeito dessa e de outras matérias, quero reiterar a necessidade de a Comissão manter um diálogo positivo com os Estados membros e os demais usuários do sistema. Os Estados membros estão em condições de proporcionar valiosas contribuições para aperfeiçoar os trabalhos da CIDH.

 

Senhor Presidente, desejo referir-me também a outro aspecto que preocupa a Comissão. Como os senhores sabem, a defesa da dignidade humana, manifestada na promoção e proteção de seus direitos fundamentais, constitui o paradigma básico das atividades da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O direito à vida, à integridade e à liberdade pessoal, à proteção das garantias jurídicas são, entre muitos outros, temas de constante preocupação por parte da Comissão. Assim, quando uma pessoa é privada da liberdade, numa violação das normas jurídicas, a Comissão concentra sua atenção, em princípio, em observar o estabelecimento, por parte do Estado, do devido processo legal a que tem direito, bem como os mecanismos utilizados para a prisão.

 

A situação, contudo, pode ser muito mais séria quando as prisões ocorrem sob a égide de legislações que violam, notoriamente, as garantias e os princípios elementares que devem prevalecer no Estado de Direito, tais como o julgamento de civis por tribunais militares, a punição de delitos cometidos por menores, as restrições ao controle judicial da investigação, bem como o isolamento carcerário prolongado de pessoas detidas, muitas vezes, ilegalmente, que ainda constituem, lamentavelmente, prática comum em alguns Estados membros da Organização. A CIDH continuará a lembrar aos Estados a necessidade de adequar o direito interno às obrigações internacionais livremente assumidas.

 

Com vistas a minimizar o efeito das violações decorrentes dessas e de outras situações, a Comissão adota decisões e formula recomendações gerais para proteger os direitos das pessoas de acordo com a competência e os procedimentos que lhe são atribuídos pelos instrumentos jurídicos interamericanos, cujo descumprimento se traduz, com bastante freqüência, em graves injustiças para as pessoas afetadas.

 

A Comissão encontra enorme dificuldade para que se cumpram tais decisões e recomendações. Isso constitui uma situação inadmissível para o sistema propriamente dito e para as vítimas de violações dos direitos humanos. O descumprimento é mais injusto e lamentável nos casos em que as recomendações da Comissão se baseiam em normas imperiosas do Direito Internacional, expressamente ratificadas pelos Estados.

 

A Comissão — e cada um de nós — condena o terrorismo, a violência, o crime, a corrupção, o narcotráfico e outras gravíssimas ameaças à convivência civilizada entre os seres humanos. A CIDH considera que a democracia é a forma adequada de enfrentar tais flagelos e reitera, como doutrina própria, a compatibilidade entre a segurança pública, o Estado de Direito, o respeito aos direitos humanos e a proteção desses direitos.

 

Ainda com referência à proteção dos direitos fundamentais, não quero deixar passar esta oportunidade, senhor presidente e senhores delegados, sem mencionar, uma vez mais, que a efetiva vigência das garantias jurídicas está indissoluvelmente condicionada à independência do poder judicial. Trata-se de um tema que continua sendo fonte de preocupação para a Comissão. Se se procura proteger os direitos da pessoa humana em face de possíveis abusos por parte dos agentes do Estado, é imprescindível que um dos órgãos desse Estado disponha da independência que lhe permita julgar tanto a atuação do Poder Executivo como as leis emanadas do Poder Legislativo e, em geral, as atividades dos demais órgãos do Poder Público.

 

III. CONTRIBUIÇÃO DO SECRETÁRIO-GERAL, DOS GOVERNOS E DOS USUÁRIOS DO SISTEMA

A Comissão vem mantendo um diálogo bastante frutífero com o Secretário-Geral da Organização, Doutor César Gaviria, que tem emprestado grande apoio às atividades da Comissão. O Secretário-Geral tem proporcionado importantes contribuições em relação ao papel dos direitos humanos e à consolidação da democracia no Hemisfério. Também possibilita constante acesso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

 

Desejo, da mesma forma, reiterar aqui a cooperação que a CIDH tem recebido dos governos. Suas observações e críticas são bem-vindas, pois correspondem a um propósito que nos é comum — manter um diálogo permanente que permita o aperfeiçoamento de um sistema cujo objetivo final é aumentar constantemente a proteção a que toda pessoa, sem qualquer tipo de discriminação, faz jus.

 

De modo similar, as organizações não-governamentais, expressão democrática da sociedade civil do Hemisfério, também têm contribuído, de maneira significativa, com seus trabalhos de informação e representação, para a defesa e proteção dos direitos humanos no Hemisfério, bem como para as demais atividades empreendidas pela CIDH.

 

IV. REUNIÃO DE ESPECIALISTAS EM DIREITOS HUMANOS

 

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Delegados, estamos vivendo tempos de grande promessa num Hemisfério em que, nunca como agora, tantos homens e mulheres viram a possibilidade crucial de desenvolverem-se como seres livres. A tarefa comum dos Estados membros da Organização, e da comunidade interamericana em geral, é consolidar os valores democráticos e reinseri-los no que constitui o seu fundamento: a defesa e proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

 

Nesse contexto, o sistema regional deve adequar seus propósitos, procedimentos e mecanismos para possibilitar tal desenvolvimento. Para tanto é essencial que existam iniciativas que conceitualizem e liderem o tema dos direitos humanos. Para participar desse processo de pensamento, análise e reflexão criadora a Comissão programou realizar uma reunião de especialistas em direitos humanos no mês de dezembro deste ano. Com tal efeito convidará representantes governamentais e de organizações não-governamentais. Esperamos que essa reunião redunde em melhor compreensão das novas necessidades de proteção dos direitos humanos no Hemisfério e identifique uma agenda de progresso e transformação em prol do sistema regional, o que, sem dúvida, levará ao fortalecimento da democracia no Hemisfério.

 

Finalmente, em nome da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, desejo agradecer o apoio dos senhores, dos Governos eleitos livremente no Hemisfério que definem como objetivo fundamental de sua política a existência de sociedades em que os direitos de todos os indivíduos sejam constantemente ampliados.

 

PALAVRAS DO PRESIDENTE DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, DECANO CLAUDIO GROSSMAN, NA SESSÃO DE ABERTURA DO 93º PERÍODO ORDINÁRIO DE SESSÕES DA CIDH

 

Washington, D.C., 30 de setembro de 1996

 

Senhor Presidente do Conselho Permanente, Senhor Secretário-Geral, Senhores Representantes Permanentes, Senhor Secretário-Geral Adjunto, Senhores Membros da Comissão, Senhor Secretário Executivo da Comissão, Senhoras e Senhores, dirijo-me aos senhores, na abertura do 93º Período Ordinário de Sessões da CIDH, imbuído de enorme satisfação por presidir uma comissão caracterizada por propiciar o respeito e as aspirações democráticas às mulheres e homens do Hemisfério, tornando realidade, assim, altos valores da dignidade humana.

 

Há um antigo provérbio religioso que diz: "Quem salva uma vida salva o mundo." Tenho orgulho de presidir um órgão de nossa Organização que tem salvo muitas vidas, embora, se tivesse salvo apenas uma vida, já houvesse justificado a sua razão de ser.

 

Neste ato estou acompanhado do primeiro vice-presidente da Comissão, Embaixador John Donaldson, e dos membros, Doutor Jean Joseph Exumé, Professor Robert Goldman e Embaixador Alvaro Tirado Mejía. Também se encontra nesta mesa o secretário executivo da Comissão, Embaixador Jorge Taiana.

 

Desejo aproveitar esta oportunidade para dar as mais cordiais boas-vindas a quatro membros da Comissão Africana de Direitos Humanos que nos visitam, Senhor Emmanuel V. O. Dankwa, Senhor Robert H. Kisanga, Professor U. Oji Umozurike e Senhor Kamal Rezzag-Garra.

 

Desde o último período ordinário de sessões, realizado em fevereiro passado, a Comissão vem empreendendo intensa tarefa. Uma parte importante de nosso trabalho refere-se à tramitação e ao estudo vários casos individuais, bem como à busca de solução para os mesmos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos atualmente tem sob consideração 804 casos.

 

Mais de 50% dos casos em tramitação dizem respeito a três países e referem-se a alegações de execuções extrajudiciais, denúncias de torturas ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Observa-se, no entanto, que aumentam cada vez mais os casos relacionados com a violação das garantias do devido processo legal.

 

Esses casos constituem uma demonstração da importância atribuída no Hemisfério à existência de poderes judiciários independentes e modernos, ao desenvolvimento de procedimentos eficazes e ao acesso oportuno a assessoria jurídica.

 

Ao mesmo tempo, esses e outros casos — sobre liberdade de imprensa ou igualdade perante a lei — exigem, cada vez mais, maior elaboração e sofisticação jurídica. A isso soma-se a existência de sociedades abertas que incentivam as pessoas que se sintam atingidas a formular petições e queixas em nível interno e internacional.

 

Nesse contexto, passa a ser fundamental o seguinte:

 

— responder eficazmente a violações dos direitos fundamentais e mesmo preveni-las;

— fortalecer e solidificar as avaliações jurídicas e os procedimentos, e

— estabelecer prioridades e conceitos que possibilitem o cumprimento da tarefa subsidiária dos órgãos internacionais.

Nesse sentido, continuam sendo essenciais a consolidação e o desenvolvimento de poderes judiciários modernos e eficazes que ofereçam a melhor garantia para a proteção dos direitos humanos e a consolidação do Estado de Direito.

 

Para debater e aprofundar esses e outros temas, a CIDH realizou um período extraordinário de sessões de 29 de março a 3 de abril. Durante esse período, a Comissão considerou e aprovou relatórios sobre casos individuais e dedicou-se à análise de seus procedimentos, enfatizando a realização de audiências, a tramitação de petições e as formas de solução amistosa. Quanto a essa última questão, a CIDH deseja deixar consignadas as valiosas experiências que foram sendo desenvolvidas em processos de solução amistosa junto ao novo Governo da Guatemala, bem como aos governos da Argentina e Colômbia.

 

Durante este período extraordinário a CIDH também modificou seu Regulamento com o propósito de aumentar a natureza confidencial dos procedimentos e preservar a autonomia dos membros da Comissão.

 

A Comissão realizou ainda duas importantes investigações in loco: a primeira, à Venezuela, de 13 a 18 de maio, e, posteriormente, ao México, de 15 a 24 de julho.

 

Essas visitas foram realizadas em resposta aos convites formulados pelos respectivos governos, aos quais a Comissão deseja expressar, mais uma vez, seu reconhecimento pelas atenções dispensadas para que a Comissão pudesse cumprir, de modo eficaz, o cronograma de atividades programado para cada uma dessas atividades.

 

Além disso, uma delegação da Comissão visitou o Centro Penitenciário de Allenwood, no Estado da Pensilvânia, em 26 de abril, e, no mês de julho, o Professor Robert Goldman, relator sobre a Argentina, transferiu-se para esse país a fim de participar, em representação da Comissão e a convite das autoridades argentinas, do acordo amistoso sobre vários casos que se encontram em tramitação junto à CIDH. Queremos agradecer aos governos da Argentina e dos Estados Unidos, respectivamente, o convite e as atenções dispensadas à Comissão nessas atividades.

 

Conforme tive oportunidade de informar aos senhores representantes, primeiro na Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente e posteriormente na Primeira Comissão da Assembléia Geral, a Comissão programou realizar um seminário sobre o futuro do sistema interamericano de direitos humanos, de 2 a 4 de dezembro deste ano. O propósito fundamental desse evento privado é apoiar o processo de desenvolvimento dos direitos humanos no Hemisfério com base num temário elaborado pela CIDH em consulta com os representantes dos Estados membros da Organização e com o Secretário-Geral.

 

O seminário abordará dois grandes temas: em primeiro lugar, analisará os propósitos gerais e os objetivos do sistema à luz da nova realidade hemisférica. Nesse sentido, pretendemos contribuir para identificar a agenda do sistema que seja relevante para o futuro.

 

Em segundo lugar, o seminário tratará de temas objetivos, tais como admissibilidade, solução amistosa e, em geral, tramitação de casos junto à Comissão e à Corte, bem como atividades de promoção e coordenação. A Comissão considera que esses temas são de grande relevância em vista das transformações que atualmente ocorrem na região. Além disso, alguns deles podem ser objeto de ação no curto prazo.

 

A CIDH tomou a iniciativa de convidar os membros da Corte e, aproveitando a presença deles no seminário, propôs uma reunião mista da Comissão e da Corte para considerar e coordenar assuntos de interesse comum e, ao mesmo tempo, dar cumprimento à incumbência de elaborar um documento sobre conflitos de interesse a ser submetido à Assembléia Geral. Essa reunião mista será realizada em 5 de dezembro.

 

Senhor Presidente, Senhores Representantes, após apresentar esta breve resenha de nossas atividades, desejaria referir-me a outros aspectos que a Comissão considera muito importantes.

 

Como bem sabemos, a vigência da democracia representativa constitui a maior garantia para o pleno respeito dos direitos humanos. Como observou o jurista estadunidense Tomas Franck, "a observância dos direitos humanos — e a autodeterminação — constituem, de fato e de direito, o fundamento sine quan non da legitimidade democrática" (o que ele denomina the power of democratic legitimacy).

 

A Comissão reconhece positivamente que nos Estados membros da OEA, com a única exceção de Cuba, atualmente existem condições mais adequadas para a consolidação dos sistemas democráticos que combinem legalidade com legitimidade, o que permitirá avançar, de modo significativo, na observância e proteção dos direitos humanos no Hemisfério.

 

No entanto, como assinalou meu antecessor na presidência da Comissão, o Embaixador Alvaro Tirado, "muito além dos resultados alcançados na consolidação dos sistemas democráticos na região, em matéria de promoção e proteção dos direitos humanos, ainda há um longo trecho a percorrer".

 

O Secretário-Geral da Organização, no documento que apresentou ao Conselho Permanente em 13 de dezembro de 1995, observou, nesse mesmo sentido, que "não basta nos cumprimentarmos porque ficaram para trás os tempos de borrasca" e que "tampouco é suficiente anunciar a chegada de uma nova era", e acrescenta que "agora nos deparamos com a tarefa de esculpir realidades das ilusões, de transformar os sonhos comuns em decisões e de assumir a responsabilidade de construir o futuro, em vez de nos contentarmos em contemplar as ruínas de um mundo que se perde no horizonte". O novo sistema democrático regional deve adequar seus procedimentos e mecanismos para promover, tanto em nível nacional como internacional, a cultura democrática no Continente a fim de que esta propicie, cada vez mais, a observância dos direitos humanos mediante a busca do que o jurista chileno Alejandro Alvarez denominava "soluções que se adeqüem aos tempos".

 

O direito de não ser privado arbitrariamente da vida, da integridade e da liberdade pessoal e da proteção das garantias judiciais são temas que constantemente preocupam a CIDH.

 

Para evitar as violações desses direitos, especialmente as ameaças à vida, foi revigorado o regime de medidas provisórias. Desejo destacar, nesse sentido, a colaboração dos governos que, na grande maioria dos casos, adotaram as medidas estabelecidas.

 

Com referência aos poderes judiciários, mantivemos conversações com os governos do Brasil e do Chile com vistas à organização de eventos de promoção em nível regional e sub-regional.

 

Independentemente dessas iniciativas, a Comissão considera que o sistema interamericano de proteção pode desempenhar um papel muito importante em matéria de aprofundamento e garantia da democracia no Hemisfério, promovendo os direitos humanos por outros meios como, por exemplo, a aplicação de medidas que garantam a igualdade de direitos da mulher. Tais direitos, não obstante se encontrarem regulamentados como um direito fundamental em todos os instrumentos internacionais sob a fórmula da igualdade jurídica, muitas vezes são objeto de restrições injustas, não necessariamente em razão de leis ou políticas discriminatórias legitimadas pelos Estados, mas sob formas ocultas. Com respeito a esse tema desejo lembrar que a Comissão encaminhou à consideração dos governos dos Estados membros um questionário elaborado durante a reunião de especialistas realizada em março deste ano. A CIDH tomou a iniciativa de convidar para participarem dessa reunião a Comissão Interamericana de Mulheres e a Organização Pan-Americana da Saúde.

 

Desejo referir-me, agora, ao tema dos direitos indígenas em que a Comissão vem trabalhando ativamente e sobre o qual recebeu um estímulo especial na afirmação dos Estados na "Declaração de Montrouis" ao expressar que:

 

... diversidade étnica e cultural representa um dos maiores potenciais do Hemisfério e que é dever da OEA valorizar e incorporar essa realidade na busca do desenvolvimento dos povos da América.

A Comissão já recebeu respostas de várias organizações indígenas e de alguns governos a respeito da minuta de Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas. Tal consulta foi realizada por meio de correspondência e de várias reuniões nas diferentes regiões do Continente e mediante sua publicação e análise em revistas técnicas. A Comissão expressou sua intenção de concluir a consulta em 30 de novembro deste ano a fim de rever o projeto de Declaração no período de sessões que realizará em março de 1997 e depois submetê-la à consideração da Assembléia Geral em seu Vigésimo Sétimo Período Ordinário de Sessões.

 

Quero aproveitar esta oportunidade para reiterar a importância que a Comissão atribui à opinião dos governos que, ao final, são os que decidirão sobre a Declaração e, ao mesmo tempo, fazer um apelo muito especial para que se aprofunde o intercâmbio sobre esse tema entre os senhores representantes e a Comissão.

 

Desejo, também, informar que estamos coordenando com o Secretário-Geral a consulta a outros órgãos do sistema interamericano, especialmente o Instituto Indigenista Interamericano, a Unidade para a Promoção da Democracia da Secretaria-Geral e o Fundo Interamericano para o Desenvolvimento dos Povos Indigenistas (com sede na Bolívia), com os quais estamos tramitando o apoio especial do Banco Interamericano de Desenvolvimento para realizar algumas reuniões que possibilitem maior nível de participação, análise e presença de governos, bem como de organizações indígenas nesse processo.

 

Outro tema que tem preocupado a Comissão nos últimos anos é o das condições desumanas nas prisões e o número excessivo de detentos a espera de julgamento. Do ponto de vista quantitativo, povavelmente a maior violação dos direitos humanos na atualidade seja precisamente a resultante das condições desumanas nos presídios. Uma das causas fundamentais desse problema é a superpopulação, somada à coexistência de pessoas condenadas e pessoas a espera de julgamento ou sentença, inclusive, presos primários. A Comissão considera que uma das maiores preocupações em matéria de direitos humanos deva ser precisamente modificar as normas processuais penais a fim de agilizar a tramitação dos casos e permitir que, mediante rápido julgamento, sob as garantias do devido processo legal, se possa determinar prontamente a culpabilidade ou inocência de um réu.

 

A comunidade regional, de outro lado, deve estar alerta para novas formas de discriminação. A Comissão expressou preocupação pela necessidade de continuar a criar sociedades onde a discriminação racial, a intolerância e o chauvinismo não sejam possíveis. A Comissão vê com satisfação o progresso da comunidade internacional em matéria de legitimidade e aberturas democráticas, assim como de universalidade de direitos para todos, mas está preocupada com a existência de tendências contraditórias com relação a nacionalismos mal-entendidos.

 

As democracias são, naturalmente, aperfeiçoáveis, e sua consolidação depende, em grande medida, da vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais. Um dos obstáculos que mais seriamente poderia impedir a consolidação dos processos democráticos é a difícil situação econômica e social por que atravessam alguns Estados da região.

 

A tarefa comum dos Estados membros da Organização, e da comunidade interamericana em geral, é resgatar os valores democráticos e reinseri-los no que constitui o seu fundamento e razão de ser: os direitos humanos, tanto no âmbito civil e político como no econômico e social.

 

Senhor Presidente, Senhores Representantes, como tive oportunidade de informar perante a Primeira Comissão da Assembléia Geral, atualmente a Comissão se encontra empenhada em aperfeiçoar os mecanismos de colaboração junto aos Governos dos Estados membros a fim de contribuir para o fortalecimento do sistema de promoção e proteção dos direitos humanos no Hemisfério. Nesse sentido, a Comissão já adotou uma série de iniciativas para fortalecer o sistema e aumentar sua capacidade de resposta em face das demandas cambiantes decorrentes do processo de consolidação e extensão do sistema democrático de governo na América.

 

Tais iniciativas, conforme já expressei, destinam-se fundamentalmente a fortalecer a metodologia jurídica de trabalho da Comissão, estimular as atividades de promoção e explorar formas complementares para adaptar nossos sistemas de proteção às novas realidades.

 

Com respeito à metodologia de trabalho que mencionei anteriormente, talvez uma das medidas mais importantes tenha sido a insistência da CIDH junto às partes com respeito à possibilidade de chegar a acordos amistosos sobre os casos, questão que pode ser viabilizada no novo contexto regional de promoção e proteção dos direitos humanos.

 

Em matéria de atividades de promoção, a Comissão está empenhada em continuar a realizar, junto aos Estados membros e a outros órgãos do sistema, cursos de treinamento e capacitação sobre direitos humanos com o propósito de melhorar o funcionamento das instituições, dos grupos sociais e das múltiplas formas de relação social entre as pessoas e entre essas e o Estado, bem como de criar um conhecimento ou cultura dos direitos humanos que questione, entre outros, o autoritarismo e a discriminação em todas as suas formas.

 

Estou certo de que todos nós compartilhamos o que afirmou o Embaixador Javier Pérez de Cuéllar, ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, no sentido de que "O anseio dos povos de todo o mundo por uma dignidade humana básica e sua crescente exigência de que seus direitos humanos se tornem realidade constituem fatos políticos da maior importância". Em matéria de legitimidade política e jurídica, o único esquema válido é o da democracia representativa que exclua o autoritarismo. É na realização plena dessa idéia democrática que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos continuará a trabalhar com o maior empenho a fim de contribuir para a nobre tarefa de respeito à dignidade humana.

 

Este é, Senhor Presidente e Senhores Representantes, em síntese, o contexto no qual a Comissão considera que deva desenvolver o compromisso que lhe impõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

 

Peço-lhes licença para concluir com uma reflexão pessoal. Em virtude das circunstâncias políticas que prevaleciam no Chile, durante alguns anos morei na Holanda. Próximo à minha cidade havia um lugarejo cujo nome traduzido significa Água Velha. Lá, a atração turística mais importante era "uma balança para bruxas", uma grande romana de madeira própria para pesar gente. Na Idade Média, centenas de milhares de pessoas foram queimadas por acusações de bruxaria. Um pequeno grupo de juristas holandeses decidiu enfrentar o problema. Eles diziam: "todos sabemos que as bruxas voam, portanto, pesam menos do que aparentam. Assim, vamos construir", disseram eles, "um peso para bruxas que nos permita identificá-las. Se alguém pesar o que aparenta, receberá um diploma concedido por um juiz, atestando que não é bruxo. Milhares de pessoas acorreram ao lugarejo em busca dos diplomas liberadores. Ninguém falhou no teste. O peso das bruxas passou a fazer parte de um processo que acabou com a destruição de milhares de vidas humanas, nenhuma das quais teria sido perdida nos dias de hoje. O peso das bruxas demonstrou a natureza liberadora do Direito, ou seja, como, aplicando o Direito, é possível chegar a resultados humanistas e

humanizadores.

 

Desde a caça às bruxas vimos inventando outras bruxarias — raciais, religiosas, políticas —, que às vezes nos deixam pessimistas quanto a nossa condição humana. Mas também inventamos "novos pesos" para as bruxas que, como o peso das bruxas de Água Velha, representam o ápice de nossa história. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é, junto com os senhores, parte desse permanente processo destinado a forjar sociedades em que, ante cada acusação de bruxaria, possamos pôr um peso das bruxas como o peso das bruxas de Água Velha. Muito obrigado.


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