RELATORIO SOBRE A SITUACAO DOS DEREITOS HUMANOS NO BRASIL

CAPÍTULO VII


A PROPRIEDADE DE TERRAS RURAIS E OS DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS

A. O DIREITO À PROPRIEDADE DA TERRA NO BRASIL

Antecedentes e situação

1. O Brasil possui um extenso território, com grande capacidade produtiva e de assentamento social; contudo, por razões históricas, a distribuição da propriedade das terras é extremamente desequilibrada, gerando em conseqüência, condições propícias para enfrentamentos sociais e violações de direitos humanos.

2. Autoridades do Ministério do Meio Ambiente assinalaram que o Brasil tem um sistema de distribuição de terras extremamente desigualitário. Aproximadamente 1% da população, ou seja, 1,5 milhões de pessoas, controla 47% de todas as propriedades imobiliárias. Altas autoridades(1) indicaram que existem 120 milhões de hectares de terras cultiváveis não-aproveitadas e, portanto, constitucional mente sujeitos à desapropriação. Em todo o Brasil, existem 10.735 imóveis com mais de 80.000 hectares cada um (ou seja, 20 km x 40 km). Somente em relação aos imóveis com área superior a 50.000 hectares, existem 35 milhões de hectares improdutivos. O Movimento dos Sem Terra (organização não-governamental) assinala que existem 12 milhões de pessoas, ou seja, 4,5 milhões de famílias de agricultores sem terras; o Ministério da Reforma Agrária calcula que 2 milhões de famílias estão nessa situação. O déficit total de emprego urbano e rural no Brasil é de 15 milhões de posições.

3. A situação não é homogênea no vasto território do país. Em geral, no Sul, onde o desenvolvimento econômico é mais avançado, a predominância do latifúndio e de terras improdutivas é muito menor. A maior incidência de latifúndio e de terras improdutivas corresponde à região Amazônica e ao Noroeste.

4. De acordo com um levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agraria (INCRA) , somente no Estado de Roraima, em relação a imóveis com área superior a 5.000 hectares, existem 2.394.686 ha de terras improdutivas. No Estado do Pará, existem 265 imóveis com área superior a 10.000 hectares, perfazendo um total de 16.547.651 hectares; destes imóveis, 175 são improdutivos, correspondendo a uma área de 14.552.549 hectares. Nesse Estado do Pará, os imóveis improdutivos abrangem uma extensão quatro vezes e meia maior do que a superfície da Bélgica.(2)

5. Em que pesem a rápida urbanização dos últimos anos e o crescimento do setor industrial como principal atividade econômica, cifras oficiais indicam que um quarto da população economicamente ativa vive da agricultura (14 milhões do total de 62 milhões). Desses 14 milhões, quatro milhões não auferem renda fixa e, em muitos casos são forçados a aceitar condições de emprego inferiores aos padrões mínimos de trabalho ou acabam por unir-se a grupos de inconformados que recorrem a medidas desesperadas para solucionar a questão do acesso à terra.(3)

6. Organizações não-governamentais religiosas(4) assinalam que, em 1995, ocorreram 554 conflitos rurais noticiados, dos quais 440 deveram-se a problemas de terras, 21 a trabalhos forçados e 93 a disputas trabalhistas ligadas ao fenômeno das secas ou à reforma agrária. No total, houve 69 conflitos a mais do que em 1994, envolvendo 3.250.731 pessoas. Em razão desses conflitos, 39 pessoas foram assassinadas ou perderam a vida de forma violenta. Outras fontes (5) indicam que mais de mil trabalhadores morreram na última década em conseqüência de conflitos ligados à reforma agrária e à distribuição de terras.

 

Antecedentes constitucionais

7. A Constituição Federal incorpora o conceito de reforma agrária e permite a desapropriação, pelo Estado, de terras que não cumpram uma função social. A lei define a unidade produtiva de posse da terra como aquela em que 80% da área é plena e efetivamente utilizada, em que os recursos naturais são adequadamente usados, em que as normas ecológicas e de trabalho são respeitadas e em que o uso se considera de benefício comum de proprietários e trabalhadores. A Constituição prevê a desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, com prévia indenização em dinheiro (CF Art. 5º, XXIV) e autorizando, como exceção constitucional no caso de reforma agrária, a indenização em títulos da dívida agrária (Art. 184), com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão.(6) Em geral, a desapropriação deve referir-se a minifúndios ou latifúndios, já que a própria Constituição considera insuscetíveis de desapropriação a pequena e média propriedade rural(7). A Constituição de 1988 prevê também o reconhecimento da propriedade das terras dos "quilombos", para comunidades negras que se organizaram autônomamente no interior, no século passado.

 

Ações governamentais

8. O Governo informou a CIDH que "a pesar de condicionantes decorrentes da reforma do Estado e da preservação da estabilidade econômica, o presente governo desapropriou, ate fevereiro de 1997, cerca de 4 milhões e 500 hectares de terras - área mais extensa do que o território da Bélgica - e mantém o objetivo de alcançar a cifra de 14 milhões de hectares de terras desapropriadas". Também remarca que em 1993 transcorriam em media 518 dias entre a desapropriação e o assentamentos e que hoje são 130 dias e a meta é chegar a 80 dias. Junta, ainda, a todos estes esforços a conclusão do Primeiro Censo Nacional da Reforma Agraria.

9. Em dezembro de 1996 foram aprovadas novas leis para estimular o uso racional da terra e incentivar a venda com fins de reforma agraria, de grandes propriedades improdutivas, especialmente através do aumento do imposto de grandes propriedades e a extinção da diferenciação segundo a localização geográfica. O Congresso Nacional aprovou a chamada "Lei do Rito Sumario" que reduz ao mínimo o período de maior incidência de conflitos fundiários a saber, o lapso entre a desapropriação e a emissão de posse.(8) Outras medidas de reforma financeira, como facilitação creditaria e desenvolvimento regional e fundiário tendem segundo o Governo, também a conferir maior fluidez e transparência a reforma agraria, descentralizando sua implementação e desestimulando as invasões.

10. A Comissão deseja ressaltar a aprovação, em fevereiro de 1997, da lei 9437/ que passou a definir como crime, e não mais como contravenção , o porte ilegal de armas; e que permite, em conseqüência, operações de desarmamento em massa no campo, tanto de fazendeiros como de sem terras.

 

A luta pela reforma agraria e suas vitimas

11. Segundo informações recebidas pela Comissão, o orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi de 1,25 bilhões de dólares em 1995. Com esses recursos, o INCRA esperava assentar naquele ano, aproximadamente 40.000 famílias. O governo atual indicou que pretende assentar 280.000 famílias durante os quatro anos do seu mandato.

12. Para esse fim, o Governo criou, em maio de 1996, o cargo de Ministro Extraordinário da Reforma Agrária. O Ministério informou à CIDH que mantinha contínuas relações de diálogo com as organizações representantes dos reclamantes de terras, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas e o Movimento dos Sem Terra.

13. O plano que o INCRA implementa no momento, outorga um título provisório correspondente às terras distribuídas que serve de base para a obtenção automática de um crédito de U$ 3.000 para alimentação, habitação e plantio iniciais e, no segundo ano, de um crédito de U$ 7.500 por família (ou de U$ 15.000 se a família estiver associada a uma cooperativa), para plantação e equipamento. Amortizados esses créditos, os agricultores obtêm a escritura definitiva de propriedade.

14. Ao mesmo tempo, indicou que a situação agrária é "aguda" e que existem numerosos conflitos e ocupações em agosto de 1996, envolvendo 50.000 famílias de agricultores instaladas em acampamentos precários nas áreas invadidas e enfrentando problemas de saúde, trabalho e educação, e confrontos com proprietários e forças policiais.

15. Tal como mencionado acima, essa situação de tensão entre o panorama real e as disposições constitucionais sustenta um alto grau de instabilidade, verificando-se contínuos enfrentamentos relativos à propriedade e ao usufruto de terras.

16. Em abril de 1996, em Eldorado de Carajás, 650 km ao sul de Belém do Pará, 19 pessoas perderam a vida e 40 resultara feridas em conseqüência de um conflito motivado pela invasão de uma fazenda por agricultores sem terras. Para evitar sua expulsão e chamar a atenção para o seu problema, os agricultores bloquearam um trecho da rodovia PA-150, que une Curionípolis e Marabá. Para fazê-los sair da estrada, a Polícia Militar do Estado, usando táticas de guerra, após disparar para o ar, abriu fogo direto contra os manifestantes e contra aqueles que se encontravam em áreas circundantes. Alguns soldados também foram atacados a pedradas pelos manifestantes, resultando feridos. O Presidente da República reconheceu a tragédia e a responsabilidade policial pelos abusos cometidos e expressou sua indignação com o incidente, condenando as ações deste tipo. Patologistas forenses declararam que dez dos mortos haviam sido executados quando já estavam feridos(9). O Governador do Estado determinou, na mesma noite, a "prisão disciplinar" do Coronel de Polícia que liderou a chacina.

 

B. DIREITOS HUMANOS DOS TRABALHADORES RURAIS

Trabalho forçado e servidão

17. Em seu artigo 6, assinala a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

Proibição da escravidão e da servidão

a. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.

b. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório....(10)

18. Por sua vez, o Código Penal do Brasil (Art. 149) sanciona a redução de uma pessoa a condições análogas à de escravo com pena de dois a oito anos de prisão; sanciona o aliciamento de trabalhadores com o fim de levá-los para outra localidade do território nacional com pena de dois meses a dois anos de prisão (Art. 207); e sanciona a frustração, mediante fraude ou violência, do gozo de direito assegurado pela legislação do trabalho com pena de multa e prisão (Art. 203).

19. Um renomado sociólogo da Universidade de São Paulo que tem estudado este tema calculou que, em 1993, o número real de vítimas de trabalho forçado (ou em condições de escravidão) era de 60 000(11).

20. Em 1991 a Comissão Pastoral da Terra documentou 27 casos de trabalhos forçados ou semi-forçados, envolvendo 4 883 trabalhadores; 18 casos em 1992, envolvendo 16 442 trabalhadores; 29 casos em 1993, envolvendo 19 940 trabalhadores; e 28 casos em 1994, envolvendo 25 193 trabalhadores. O Governo reconheceu a seriedade do problema, mas não conseguiu, por exemplo, investigar mais do que dois casos, entre mais de dez denunciados em 1995.

21. A forma típica dessa prática de servidão forçada consiste em aliciar os trabalhadores, geralmente em outro Estado onde existam condições de extrema pobreza e desemprego rural, como o Maranhão e Tocantins, e oferecer um salário atraente para trabalhar em outro Estado.

22. Ao chegarem à plantação onde deverão trabalhar, os trabalhadores verificam que já são "devedores" dos empreiteiros, a título de transporte e alimentação durante a viagem, que além disso, também devem pagar as refeições e a habitação no estabelecimento rural e que as condições de trabalho são muito piores do que o prometido e, em geral, ilegais. Seja porque o salário é menor do que o prometido, seja porque se mede o hectare trabalhado e as condições são mais difíceis do que se lhes havia indicado, o salário real não chega a cobrir as "dívidas" que lhes são atribuídas. Ao mesmo tempo, são advertidos de que não podem abandonar a fazenda sem efetuar previamente o pagamento da dívida. Nos casos em que tentam sair do lugar, sicários dos empreiteiros os detêm brandindo armas de fogo, e se a ameaça não surte efeito, disparam. Como as fazendas são isoladas, essas tentativas de recuperação da liberdade são difíceis e arriscadas e, em muitos casos, significam a morte.

23. Delitos deste tipo, em que os trabalhadores são transportados entre Estados, competem à Justiça Federal e à intervenção direta da Polícia Federal, que tem demonstrado não estar sujeita às restrições políticas que debilitam a ação das Polícias Estaduais.

24. Tal como apresentado no Capítulo "Violência contra Menores", na seção "Exploração do Trabalho do Menor", documentos oficiais denunciam que dois milhões de menores na faixa etária dos 10-13 anos trabalham em condições ilegais e alguns deles em tarefas agrícolas sob situação de servidão forçada.

 

Ações do Governo

25. A Comissão foi informada pelo Governo que, consciente de que somente a legislação não é suficiente para a erradicação do trabalho forçado, este vem pondo em marcha diversos mecanismos de repressão ao trabalho forçado. Nesse contexto, o Grupo pra Erradicaçâo do Trabalho Forçado (Gertraf), composto por representantes dos Ministérios do Trabalho, do Meio ambiente, da Agricultura, da Política Fundiária, da Previdência e Assistência Social da Justiça e da Industria, Comercio e Turismo, vem elaborando, colocando em pratica e supervisionando programas integrados de repressão ao trabalho forçado. Gertraf também propõe atos normativos e coordena a ação dos órgão competentes para combater o trabalho forçado e articula-se com os Ministérios Públicos da União e dos Estados, com o Ministério Publico do Trabalho e com a Policia Federal.

Dialoga, ainda em reuniões mensais, com o "Fórum Nacional contra a Violência no Campo"; entidade colegiada integrada por representantes governamentais, e da sociedade civil, a Comissão Pastoral da Terra e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) - ocasião em que são apresentadas denuncias e discutidas estratégias de fiscalização.

26. Para reforçar o sistema de fiscalização e garantir a investigação sistemática de denuncias sobre trabalho forçado, esta em atividade, desde março de 1996, o Grupo Móvel de Fiscalização (GMF). Subordinado a Secretaria Nacional de Fiscalização do Trabalho, o GMF é constituído por equipes de agentes de inspeção do trabalho especialmente treinadas e com autonômia para realizar ações de fiscalização em qualquer parte do território nacional. Nas 83 empresas fiscalizadas em 1995 foram alcançados 26.242 trabalhadores. No ano de 1996, com a intensificação das ações, foram fiscalizadas 239 empresas, num total de 82.395 trabalhadores. Todos os relatórios da fiscalização sobre denuncias de trabalho forçado são encaminhados ao Ministério Público Federal.

27. Um importante instrumento para o combate a pratica da exploração de trabalho forçado reside na aplicação da ordem No. 101, de janeiro de 1996, do Ministério do Trabalho. Segundo esta norma, ao ser comprovada pela fiscalização móvel a reincidência, por parte do empregador, da submissão de trabalhadores a formas degradantes de trabalho, caracteriza-se o desvirtuamento da função social da propriedade, e então enviará informação detalhada ao Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agraria.

28. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça, criou ainda o subgrupo de normalização, em atividade desde julho de 1996, que propôs os estabelecimento de mecanismos para a agilização do projeto de lei 929/95, que define como crimes as condutas que favoreçam ou configurem a exploração do trabalho forçado ou degradante. Este projeto de lei, está atualmente em discussão pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados(12).

 

A Situação no Sul do Estado do Pará. Trabalho forçado, ataques aos dirigentes trabalhistas, inoperancia judicial, e impunidade.

29. Diferentes denúncias gerais perante a Comissão e relatório sobre trabalhos forçados em algumas áreas do Brasil levaram a Comissão a investigar o assunto e a visitar zonas em que, segundo alegava, esse problema era extenso e crônico, principalmente no sul do Pará. A respeito, a Comissão recebeu amplos testemunhos de autoridades executivas e judiciárias do Estado, entre as quais o Governador, o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, juizes, promotores, advogados, líderes de trabalhadores rurais e familiares das vítimas. Os membros da delegação também tiveram acesso a autos e audiências judiciais referentes a estes tipos de casos.

30. Somente para citar o caso de 11 municípios do sul do Pará, a Comissão recebeu, de organizações religiosas e sindicais, informações que documentam a ocorrência de 148 denúncias, entre 1969 e 1995, contra 95 fazendas da região. Destas denúncias, formuladas à política e à justiça federal, tem-se conhecimento de apenas 47 fiscalizações efetuadas por agentes estaduais, quer através da Polícia Federal, da Delegacia Regional do Trabalho ou da Polícia Civil. Das 47 fiscalizações efetuadas por agentes(13) estaduais, não se identificou trabalho forçado em 18 casos; constatou-se esse delito em 14 casos; e houve discrepância entre órgãos estaduais em um caso. Desconhece-se a conclusão referente a 14 casos.(14)

31. As citadas denúncias contra 95 fazendas no sul do Pará, referentes ao período 1969-95 e documentadas judicialmente na maioria dos casos, referem-se a 13.322 trabalhadores em situação de semi-escravidão ou trabalho forçado, dos quais 904 conseguiram fugir, pelo menos 90 foram assassinados e 746 foram libertados pelas autoridades.

32. No período 1994-1995, documentaram-se 10 denúncias em 10 fazendas, indicativas da existência de 2 744 trabalhadores forçados. Em relação a seis dessas denúncias, 387 trabalhadores conseguiram fugir; cinco foram mortos; e cinco são tidos como desaparecidos. Em cinco procedimentos, 171 trabalhadores foram libertados pelas autoridades. Em sua maioria, os trabalhadores forçados foram contratados no Maranhão e outros no Pará. Não se efetuou qualquer detenção em relação aos casos denunciados em 1994 e 1995 e ninguém foi processado.

33. A Comissão pôde constatar, em documentos judiciais e em entrevistas com autoridades judiciais e advogados, vários casos que exemplificam a situação. Em março de 1989, foram levados para trabalhar numa fazenda do município de Conceição do Araguaia. 72 trabalhadores procedentes de São Luiz (Estado do Maranhão.) Lá chegados, foram submetidos a condições de trabalho forçado e impedidos de sair por jagunços armados. Em abril de 1990, 14 deles conseguiram fugir e denunciaram a situação. Apesar de todas essas denúncias e dos pedidos do Procurador da República, de defensores dos trabalhadores e de jornalistas, não foi efetuada nenhuma inspeção, em que pese o fato de os autores da denúncia haverem declarado que ainda existiam trabalhadores semi-escravizados dentro da fazenda. Não obstante a existência de testemunhas e as numerosas denúncias, a informação em poder da Comissão indica que o crime não foi objeto de qualquer sindicância judicial e que os responsáveis não foram punidos. Ao contrário: quando vários trabalhadores conseguiram escapar e formularam a denúncia, a Polícia os deteve durante dois dias.

34. Em outro caso, o da fazenda Espírito Santo, onde havia 40 trabalhadores em regime forçado em 1987, dois procuraram escapar. Um deles foi assassinado por jagunços da fazenda. O outro foi baleado e deixado como morto, mas sobreviveu e pôde formular a denúncia. Anos mais tarde, realizaram-se diligências policiais e sindicâncias judiciais, verificando-se a existência de trabalhos forçados. Alguns trabalhadores foram libertados. Até a data (dezembro de 1995), a investigação não havia sido concluída e ninguém fora processado.

35. Ainda em outro caso, o da fazenda Santo Antônio, em julho de 1986 agentes da Polícia Federal surpreenderam três homens que vigiavam trabalhadores forçados a fim de impedir sua fuga. Alguns desses trabalhadores, que haviam tentado escapar, foram recapturados e submetidos a torturas. A Polícia libertou-os. O Ministério Público só formulou a denúncia em 1994, ou seja, oito anos depois. Até a data, ninguém foi condenado ou detido.

36. Um exemplo da impunidade reinante é o caso de um empreiteiro, ex-vereador e prefeito municipal de Santana do Araguaia. A Comissão teve acesso a documentação que informa sua participação, nos últimos 15 anos, em 26 crimes referentes a trabalho forçado em 17 fazendas, cinco dos quais entre 1994 e 1995. Tramitam contra esse empreiteiro 5 processos, referentes a 5 dos 26 crimes. Em relação aos outros 21 crimes, não foram instaurados processos. Contra ele, correm também outros processos por homicídios. Em nenhum dos casos foi ainda proferida sentença definitiva. Detido a quase 10 anos depois de ter sido decretada a sua prisão preventiva, o empreiteiro continuou a agir delitivamente a partir da própria prisão e acabou por ser libertado. Em relação a vários casos, nem sequer se decretou sua prisão preventiva e, nos casos em que fora decretada, acabou por ser revogada com base em depoimentos que sustentavam a sua boa conduta e seu compromisso de se manter à disposição do juiz.

37. Em vários casos, o empreiteiro em questão foi processado juntamente com outros réus que agiram como seus cúmplices em vários casos de homicídio e trabalho forçado. Alguns dos seus cúmplices, depois de detidos, evadiram-se facilmente das prisões estaduais.

38. Outro caso de impunidade e inação judicial é o da fazenda Vale do Rio Cristalino, no município de Santana do Araguaia, de propriedade da empresa Volkswagen do Brasil. Em 1983 e 1984, várias centenas de trabalhadores foram contratados para obras de nivelação e acabaram trabalhando na condição de escravos, sem receber salário, ameaçados de morte em caso de fuga e maltratados e torturados quando tentavam fugir. A situação foi denunciada por trabalhadores fugitivos e uma delegação interpartidária de deputados estaduais visitou a empresa e comprovou as denúncias, que foram documentadas no relatório "Escravidão em Rio Cristalino", preparado por um deputado estadual. O juiz competente recebeu as denúncias em 1984 e determinou a intervenção policial. O delegado de Polícia de Santana do Araguaia comprovou a veracidade das denúncias, mas ninguém impetrou processo contra ninguém. Em 1983, o próprio Secretário de Segurança Pública do Estado solicitou ao Governador a urgente instauração de novo inquérito policial. Apesar da transcendência nacional e internacional do caso, em razão da importância da firma proprietária, decorridos 13 anos dos fatos não existe qualquer evidência ou informação de haver sido completado o inquérito e identificado ou processado quaisquer responsáveis, sejam estes os executores materiais ou os proprietários.

39. Também serve de exemplo um caso recente, ocorrido em 16 de julho de 1995. Fiscais de Delegacia Regional do Trabalho e agentes da Polícia Federal surpreenderam, flagrante delicto, a exploração de 52 trabalhadores em situação de trabalho escravo na fazenda Sucuapará, em Santa Maria das Barreiras, Estado do Pará. Os trabalhadores foram libertados. Segundo se alega, o empreiteiro envolvido era o mesmo já mencionado. Fiscais do Trabalho prepararam o relatório administrativo. Por sua vez, segundo os depoimentos prestados, a Polícia Federal não lavrou o flagrante e não abriu o correspondente inquérito. A Polícia Civil concluiu um inquérito e o Ministério Público ofereceu sua denúncia, iniciando o processo criminal que está em andamento. A prisão preventiva desta pessoa foi decretada em agosto de 1995 e revogada em outubro do mesmo ano, já que testemunhas atestaram sua boa conduta e seu interesse em manter-se à disposição do tribunal.

40. Na visita que realizou a essa região do sul do Pará, a Comissão, na presença e com a colaboração de delegados dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, pôde comprovar que existe uma situação geral de atemorização da população e das autoridades, e de impotência em face da impunidade. Essa informação foi prestada unanimemente mediante depoimentos diretos de familiares, líderes sindicais, promotores de justiça, juizes, autoridades municipais, civis e religiosas. Tanto a população como numerosas autoridades indicaram à CIDH que a situação é atribuível à inação, à negligência e à incapacidade do sistema policial e judicial, às óbvias conexões entre delinqüentes e autoridades dos diferentes poderes e, além disso, à própria intimidação que estas sofrem.

41. As conseqüências desta situação de violação crônica dos direitos humanos excedem por larga margem a exploração dos trabalhadores e os assassínatos e ataques aos que querem libertar-se ou aos que os defendem. Três presidentes anteriores do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da região foram assassinados. O presidente atual, parente de uma dessas vítimas, foi ameaçado em várias oportunidades por pessoas vinculadas aos empreiteiros ilegais. Também sofrem ameaças permanentes os seus defensores, especialmente os religiosos da Comissão Pastoral da Terra, Padres Ricardo Rezende e Henri Burin des Roziers. Processos que não se iniciam durante anos e que, quando se iniciam, percorrem caminhos tortuosos e labirintos inconseqüentes, e acabam por serem arquivados. Responsáveis processados dezenas de vezes continuam a agir delitivamente sem dificuldade, exibindo, com o seu enriquecimento ilícito, o produto de suas atividades, e comprovando publicamente sua impunidade e sua capacidade de burlar a justiça.

42. Informações fidedignas chegadas à Comissão indicam que o Poder Judiciário do Estado do Pará atua de modo a facilitar a impunidade e a continuidade do crime organizado no sul do Estado. Entre os fatos mais salientes ocorridos nos últimos meses de 1996, estão a suspensão do processo contra o investigador Lucival Haroldo Sampaio Cruz, da Polícia Civil de Xinguara, acusado de facilitar a fuga de Wanderley Borges de Mendonça, assassino condenado pelo homicídio de um juiz em Goiás, e processado em Xinguara (sul do Pará) por outros dois homicídios. Wanderley trabalhava como gerente de Jerônimo Alves de Amorim, acusado de ser o chefe de uma organização de jagunços a serviço de proprietários de terras e empreiteiros e mandante de vários crimes, entre os quais o homicídio de Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, ocorrido em 1991.

43. A suspensão do processo contra o policial a partir de julho de 1996 soma-se ao atraso da própria Polícia em executar o mandado de prisão do investigador que facilitou a fuga e que, durante esse tempo, continuou a integrar o quadro policial de Belém. Este clima de insegurança agravou-se em janeiro de 1997, quando pistoleiros notoriamente ligados a proprietários de terras locais assassinaram três trabalhadores rurais desarmados na fazenda Santa Clara, na localizada vizinha de Ourilândia do Norte.

44. Juizes e promotores cerceados pelas complexidades de um sistema processual inoperante e pelo temor de represalias, caso tomen decissões judiciais más efetivas; autoridades federais distantes e com um interesse objetivo inconstante a respeito do problema, sempre adotando medidas débeis e ineficientes; e uma população cuja capacidade de exercer seus direitos de reunião, associação, liberdade de comércio e trabalho e até política, são seriamente desafiados pela presença do poder paralelo dessas empresas perversas de exploração ilegal de trabalhadores.

 

C. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

45. Com base no exposto a Comissão conclui que:

a. Existe no Brasil uma situação historica de grave desigualdade na distribuição de terras e nas oportunidades econômicas nas áreas rurais. Apesar da capacidade constitucional do Estado e de Autoridades para resolver tal situação, esta se mantém. Embora a atual administração tenha iniciado programas para reduzir a gravidade do problema e facilitar o acesso a terra e credito aos pequenos produtores, o alcance de tais medidas e reduzido e, especialmente o Norte e Nordeste do pais mantêm situações de pobreza e desigualdade generalizadas no gozo dos direitos básicos.

b. Os atritos e as situações de tensão provocados pela desigualdade na distribuição de terras e de credito, dão origem a confrontos que criam condições para que sejam cometidos excessos na repressão e violações de direitos humanos.

c. A mesma situação de pobreza e de falta de oportunidades provocadas pela ma distribuição de oportunidades de acesso a terra e serviços, leva a exploração, em condições de servidão, dos trabalhadores rurais. A Comissão comprovou a existência no Pará, de grupos que se aproveitam dessas condições para conduzir trabalhadores desse e de outros Estados a situações de semi-escravidão, estabelecendo ainda, um clima de insegurança e ilegalidade através de agressões físicas tanto contra os trabalhadores como contra seus defensores. Sua impunidade está assegurada pela lentidão e inoperância do sistema judicial, bem como pela falta de eficácia das autoridades para prevenir e punir suas atividades.

d. A Comissão reconhece a série de medidas legislativas, administrativa e policiais adiantadas pelo presente Governo para resolver os problemas de direitos humanos relativos à posse e usufruto da terra, e a situação de trabalho em condições de servidão. Reconhece também a Comissão que essas medidas estão orientadas corretamente e que a magnitude destes problemas dificulta sua solução. Mas isso não pode fazer esquecer responsabilidade do Estado de resolve-los e a necessidade de uma vontade política plena do Governo para levar a fundo essas políticas e as medidas necessárias, assim como de todas as pessoas de compreender a urgência e importância de sua solução.

48. Em conseqüência, a Comissão recomenda:

a. Ampliar a ação do Ministério da Reforma Agrária e dos organismos de implementação da mesma para acelerar sua ação e oferecer possibilidades de acesso à terra e crédito às famílias de poucos recursos.

b. Ampliar e aprofundar as políticas, sistemas e medidas de negociação para reduzir os confrontos e situações de tensão e por sua vez acelera o processo anterior de redistribuição de terras e crédito. Implantar diretrizes firmes para o manejo das contínuas situações de protesto contra a desigualdade na situação rural, de maneira que se respeite o direito de expressão, de reunião, à vida, integridade e liberdade por parte das forças de segurança federais e estaduais.

c. Adotar legislação e políticas efetivas para por fim às situações de trabalho em condições de servidão e das ações de empreiteiros e criminosos que perpetuam sua existência. Criar condições especiais de segurança e plena vigência de direitos aos líderes sindicais e trabalhadores rurais, especialmente em áreas onde ocorrem maior número de denúncias a respeito da persistência de trabalho em condições de servidão rural.

d. Estabelecer normas e procedimentos especiais a respeito dos delitos ligados à exploração do trabalho humano em condições de servidão, assim como dos crimes, ameaças e associações ilegais realizadas para perpetrar e manter tais situações. Estabelecer ou implementar conforme o caso, legislação e medidas para a federalização de ditos delitos e sua severa repressão a todos os níveis policiais e judiciais.

e. Estabelecer medidas especiais de proteção para os defensores dos direitos humanos dos trabalhadores rurais, em regiões de maior desproteção, em particular na área do sul do Estado do Pará, assim como implementar medidas especiais para fazer mais efetiva a ação fiscalizadora, de investigação, de julgamento e punição dos que infrinjam a proibição da servidão, sejam eles autores intelectuais, sejam cúmplices diretos das mesmas.

 

NOTAS DEL CAPÍTULO VII




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